quarta-feira, 25 de junho de 2008

O radiante brilho da mestra

Apagou-se uma luz no cenário cultural brasileiro – mas só corporeamente.No amplo e indissolúvel âmbito intelectual continuará ad infinitum a brilhar, qual centelha inextinguível.

Ruth Cardoso tinha luz própria. São sobejamente conhecidas seu elevadíssimo embasamento intelectual e sobretudo sua personalidade independente, ao mesmo tempo austera,sensata e discreta. Detestava essa ‘breguice’ (bem brasileira, pois não existe em nenhum país do mundo esse termo) de “primeira-dama”. Como antropóloga, foi referência intelectual – primeiro como professora (doutora pela USP e pós-doutora pela Universidade de Columbia, EUA), depois como uma das mais profícuas orientadoras acadêmicas que o meio universitário brasileiro já teve – e como ensaísta , autora de um dos livros basilares da antropologia entre nós, A aventura antropológica:teoria e pesquisa , de Terceiro Setor : desenvolvimento social sustentado , de Bibliografia sobre a juventude ( em parceria com Helena Sampaio) e em especial Estrutura familiar e mobilidade social: estudos dos japoneses no Estado de São Paulo ,que recebeu edição bilíngüe português-japonês ,obra que assume neste momento dimensões significativas de atualidade histórica,quando se comemora o centenário da imigração japonesa no Brasil, ao mesmo tempo em que emblematiza o quanto ela marcou sua carreira acadêmica pela inovação : ainda em meados da década de 1950, quando o tema ainda era muito árido e distante, estudou a imigração japonesa para São Paulo, transformando-a em brilhante tese universitária,na USP em 1972. Também foi ela um dos primeiros acadêmicos brasileiros a perceber a emergência dos movimentos sociais que abrigavam diversidades como os feministas, étnico-raciais e de orientação sexual (até a década de 1970, a academia considerava que esses movimentos não tinham status para merecer a atenção da universidade) . Foi precursora no estudos contemporâneos sobre a “condição feminina”,preconizando e pregando intransigentemente a necessidade de políticas públicas para a mulher.
Depois do golpe de 1964 enfrentou o exílio ao lado de Fernando Henrique , em Santiago,Chile, onde foi professora da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) . Por essa época – também exilado eu na capital chilena -- conheci-os intimamente e freqüentava sua casa e por vezes assistia a algumas de suas aulas, sempre freqüentada (de frequência disputada, diga-se) por estudantes de muitos países. Do Chile, Ruth e Fernando foram para a França e, de volta ao Brasil, fundaram o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), que marcaria a pesquisa social no Brasil.
No início da década de 1980, enquanto Fernando Henrique se envolvia na política,primeiro no Senado e mais tarde na Presidência da República, Ruth se aprofundou na vida acadêmica. No Cebrap, pioneira na percepção da emergência dos movimentos sociais, desenvolveu programas específicos de pesquisa sobre eles, quando as organizações não-governamentais ainda eram desconhecidas.Na década de 1990, Ruth Cardoso ajudou a mudar os rumos da política social no Brasil, foi peça fundamental na idéia de unir os vários programas sociais e de transferência de renda em um único programa, e criou o programa Comunidade Solidária – mais uma vez como autêntica precursora , pois o programa veio a ser a base originária do excepcional Bolsa-Escola, hoje totalmente desvirtuado e ‘dilacerado’ no inócuo Bolsa-Família.

Eram outros tempos, de maior competência governamental, lastreada em sólidos pilares intelectuais – iluminados,direta e indiretamente, pela consciência, lucidez e brilhantismo de Ruth.

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