domingo, 1 de junho de 2008

pelos idos de maio


não há como encerrar o mês de maio – continente de uma das mais significativas questões de toda a História brasileira -- sem corrigir uma das mais equivocadas interpretações dessa mesma História.
"Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente sancionou, e todos saímos à rua. Sim, também eu saí à rua, eu o mais encolhido dos caramujos, também eu entrei no préstito, em carruagem aberta, se me fazem favor, hóspede de um gordo amigo ausente; todos respiravam felicidade, tudo era delírio. Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra ter visto."
Na descrição da alegria popular pela conquista da liberdade, em crônica publicada em 14 de maio de 1893, fica evidente o olhar fascinado de um Machado comprometido com o debate da questão escravocrata. E hoje, exatos 120 anos depois do 13 de maio de 1888 já é mais do que tempo de obrigatória releitura da equivocadissima omissão machadiana em relação à escravidão e à campanha abolicionista, de seu absurdamente propalado “aburguesamento” e da ridícula “denegação das origens” conferida à sua obra. Os detratores e ressentidos costumam apontar, como uma espécie de carro-chefe crítico, a ausência de um “herói negro” em sua ficção – como se isso fornecesse convincente e taxativo certificado de consciência política , como se fosse elemento imprescindível na construção de romances e contos de qualidade...
Machado de Assis nunca deixou de exprimir seu mais absoluto horror à escravatura – fosse como funcionário da Diretoria da Agricultura do Ministério da Agricultura (órgão que tratava da política de terras e da aplicação da Lei do Ventre Livre, de 1871), na qual emitiu centenas de pareceres e réplicas no sentido de fazer cumprir a Lei e o preceito de liberdade para os filhos de escravos nascidos, fosse em artigos e crônicas e,em especial, em romances e contos. Exatamente ao contrário da equivocada e distorcida interpretação difundida ao longo dos anos,no sentido de não ter ele se integrado à causa abolicionista (sic) .Ledo e puro engano : os detratores teimam em julgar o homem com base nos raramente compreendidos e assimilados artifícios do ficcionista e do cronista – ainda mais quando este utiliza ad nauseam os recursos da sutileza,do subterfúgio, da dissimulação.Justamente os recursos da ficção literária, sempre propícia a esse fim, foram os instrumentos que lhe permitiram expressar com nitidez seu total e visceral repúdio ao sistema escravocrata do Brasil do século XIX. Por meio de alguns de seus contos, por exemplo, é possível observar as relações inter-raciais de sua época através do olhar literário, arrancando da realidade crua da sociedade imperial (e da História)a própria substância de suas narrativas – e especificamente seis deles , abordando as tensas relações,inclusive as de ordem afetiva e sexual, entre os membros da família patriarcal típica do século XIX e seus criados negros , abrigam tema,trama,ambiência, personagens e ‘ideologia’ inerentes à questão, escritos sob o mesmo clamor crítico-satírico do olhar machadiano feito testemunho incomparável sobre a vida política,social e institucional brasileira nas cinco últimas décadas do século XIX.
Machado fez da escravatura objeto crítico – por vezes desenhada pelas tintas da sutileza,do subterfúgio, da ‘entrelinha’, por vezes direta, nada oblíqua ou dissimulada -- de crônicas, de poemas, de peças teatrais, e especialmente de contos, além de torná-la pano de fundo de alguns romances, tanto os primeiros como aqueles pós-1880.
A tese da ‘alienação’ machadiana desmorona ao se examinar o naipe de contos em que a “iníqua escravidão” é exibida criticamente,nas linhas e entrelinhas, com todos seus horrores ; é solapada ao se ler,por exemplo, as crônicas de 18.07.1864, de 04.04.1885,01.10.1876,15.06.1877,14.07.1878,01.11.1883,23.11.1885,30.08.1887,27.09.1887,11.05.1888,19.05.1888,20.05.1888,27.05.1888,01.06.1888,26.06.1888,14.05.1893,04.11.1897 (todas integrantes de minha obra “Machado de Assis e a política : crônicas” (Senado Federal) ; perde vigor ao se deparar com os poemas “Sabina”(1875) e “13 de maio”(1888) , ou ao conhecer a crítica teatral à peça “Mãe”(1860), de José de Alencar, e o texto “O teatro de José de Alencar”(1866); além das referências,citações,comentários e verdadeiros libelos expostos na antológica novela Casa Velha(1885) e nos romances Ressureição (1872),Helena(176),Iaiá Garcia(1878),Memórias póstumas de Brás Cubas(1881), Quincas Borba(1891),Dom Casmurro(1899) – observando-se o quanto o processo histórico que resultou da lei de 1871, assim como suas conseqüências, encontra-se no cerne da concepção desses seis romances -- Esaú e Jacó(1904) e no derradeiro Memorial de Aires(1908) – cujo centenário de publicação deve constituir em imperdível oportunidade de ,primeiro, conhecer uma obra-prima, das maiores que a literatura brasileira já produziu , além de acompanhar a encenação da decadência e extinção da própria escravocracia, personalizada no Barão de Santa-Pia,sob uma narrativa revestida de contundente historicidade e , como o condizente grand finale da obra de um portentoso escritor, finalizada pela mensagem ressaltando o papel político da literatura como guardiã dos fatos passados e da memória coletiva de um país.

Importante notar que se o tema é pouco, ou apenas ‘tangencialmente’ e superficialmente tratado nas obras do período pré- Abolição -- nos contos “Frei Simão”(1864), “Virginius”(1864) e a 1ª. versão de “Mariana”(1971) -- depois, num período portanto em que as coisas podiam ser ditas mais clara e contundentemente – isto é, em “O caso da vara”(1891), a 2ª. versão de “Mariana”(1891), “Pai contra mãe” (1906) -- adquire tamanho vigor temático, tramático ,narrativo e de linguagem , que induzem a considerar uma espécie de ‘desforra’ de Machado quanto a uma questão que não pudera até então abordar como merecia, e como ele almejava.

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