domingo, 29 de junho de 2008

Por trás da crítica estava muito mais do que uma questão literária ou mera contestação do papel de redenção social que Coelho Neto atribuía ao futebol: Lima via nele um fator de degeneração da cultura e da política nacionais, pois patrocinava uma injusta e gritante diferenciação social e regional, como declarou em entrevista ao Rio-Jornal em 13 de março de 1919 :“ – Está aí, uma grande desvantagem social do nosso foot-ball. Nos dias em que, para maior felicidade dos homens, todos os pensadores procuram apagar essas diferenças acidentais entre eles, no intuito de obter um mútuo e profundo entendimento entre as várias partes da humanidade, o jogo do ponta-pé propaga sua separação e o governo o subvenciona.“
Lima criticava os “favores e favorezinhos” que os clubes de futebol recebiam do governo para “criar distinções idiotas e anti-sociais entre os brasileiros, e longe de tal jogo contribuir para o congraçamento, para uma mais forte coesão moral entre as divisões políticas da União, separa-as”: segundo ele, os clubes de futebol seriam “portadores de uma pretensão absurda, de classe, de raça, etc”. Isso porque os defensores do futebol, Coelho Neto à frente, sustentavam ser “um sport que só pode ser praticado por pessoas da mesma educação e cultivo” (jornal Sports, de 6 de agosto de 1915 ) e reclamavam “que alguns jogadores não tinham o nível social de há uns anos atrás” (Jornal do Brasil, de 3 de maio de 1920).
Porém, não eram apenas econômicas e sociais as distinções combatidas por Lima Barreto, mas também raciais,vedando aos negros participação nos grandes clubes de futebol: em 1921 quando o próprio presidente Epitácio Pessoa proibiu jogadores “de cor” de fazerem parte do selecionado que ia à Argentina disputar um campeonato, Lima foi duro nas críticas , publicando no mesmo dia 1 de outubro de 1921 dois artigos — “O meu conselho” e “Bendito foot-ball” — no jornal A . B. C., onde afirma que “quando não havia foot-ball, a gente de cor podia ir representar o Brasil em qualquer parte”, e apontando o caráter nocivo do futebol para o país :“ É o fardo do homem branco : surrar os negros, a fim de trabalharem para ele. O foot-ball não é assim : não surra, mas humilha, não explora, mas injuria e come as dízimas que os negros pagam.”
Vendo nos sócios dos grandes clubes os herdeiros dos antigos senhores de escravos, Lima enxerga no futebol “uma das formas de continuação da dominação exercida durante décadas pelo regime escravista, onde se troca a violência pela humilhação de quem paga impostos para sustentar, com subvenções oficiais, um jogo ao qual não tem acesso”, como “um poderoso instrumento de domínio utilizado por uma raça que se julga eleita por Deus graças às suas habilidades nos pés; como a escravidão, sua única finalidade é criar uma separação idiota entre os brasileiros, perpetuando as desigualdades e continuando um passado de diferenciação e segregação” (artigo “O nosso esporte”, no l A . B. C., de 26 de agosto de 1922 ).
Direta ou indiretamente, não há dúvida de que os literatos como Coelho Neto e Lima Barreto e suas polêmicas alimentavam um processo que anos depois faria do futebol, como o é hoje , uma verdadeira instituição nacional. A dinâmica da transformação do jogo em fenômeno nacional — com suas implicações sociológicas, políticas e culturais — não foi devidamente compreendida por Lima Barreto, que indignado com o fato de “indivíduos que não davam para nada” serem transformados em verdadeiros “heróis nacionais”, refutava a lógica que fazia desses “pobres esforçados, que nada fazem para o benefício comum, injustas ‘glórias do Brasil’” – no último artigo escrito antes de morrer ( “O herói”, para Careta de 18 de novembro de 1922 ).

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