sábado, 7 de março de 2009


Lima Barreto e a mulher - I

Livia


E todos os dias quando ela, de manhã cedo, ia, ainda morrinhenta da cama, preparar o café matinal da família, ia toda envolvida num nevoeiro de sonhos, sonhados durante um demorado dormirde oito horas a fio. Por vezes - lá na cozinha, só, vigiando pacientemente a água que fervia - ao lhe chegarem as reminiscências delesem tumulto, juntas, borbulhava-lhe nos lábios uma interjetiva qualquer,eco desconexo do muito que lhe falavam por dentro.De quando em quando, sofreando um gesto glorioso de satisfação, dizia - é ele - e isso de leve traduzia a grande carícia que lheera dado gozar naquele instante, refazendo aquele sonho bom - tãobom e acariciador que bem lhe parecia um inebriamento de capitososperfumes a se evolar do Mistério vagarosamente, suavemente...Depois, logo que o café se aprontava e, na sala de jantar, todos aoredor da mesa se punham a sorvê-lo, mastigando o pão de cada dia- ela, d'olhos parados, presos a uma linha do assoalho, levandocompassadamente a xícara aos lábios, ficava a um canto a pensar,remoendo a cisma, procurando decifrar naqueles traços nebulosos - tão mal grudados pela memória - a figura viva daquele com quem,em sonhos, se vira indo de braço dado ruas em fora.Esforço a esforço, de evocação em evocação, aparecia-lhe aospoucos a sua figura, o seu ar; e, após esse paciente trabalho dereconstrução, lhe vinha, anunciado por um sorriso reprimido que lheencrespava radiosamente o semblante, o seu nome sílaba por sílaba...Go-do-fre-do. Então com volúpia, ela lhe pesava os recursos: ganhava cento e vinte, no emprego da Central, talvez, em breve, viesse a termais. Quarenta para casa e o resto para o vestuário e alimentos.Era pouco - convinha - mas servia, pois, assim ficaria livre datirania do cunhado, das impertinências do pai; teria sua casa, seusmóveis e, certamente, o marido lhe dando algum dinheiro, ela -quem sabe! - que tão bons sonhos tinha, arriscando no "bicho",aumentaria a renda do casal; e, quando assim fosse, havia de comprar um corte de fazenda boa, um chapéu, de jeito que, sempre, peloCarnaval, iria melhorzinha à rua do Ouvidor, assistir passarem as sociedades.O café já se havia acabado; e ela ficara ainda distraída e sentada, quando soou de lá da sala de visitas a voz vigorosa do cunhado:- Lívia! Traz o meu guarda-sol que ficou atrás da poita do quarto.Depressa!... Anda que faltam só oito minutos para o trem!E como se demorasse um pouco, o Marques, redobrando devigor no timbre, gritou:- Oh! Cos diabos! Você ainda não achou! Safa! Que gente mole!Humildemente, Lívia lá foi aos pulos, como uma corça domesticada, entregar o objeto pedido, para lhe ser arrancado bruscamente das mãos...Envolvida ainda naquele sonho que lhe soubera tão bem amanhã, ela, através das frinchas da veneziana viu o cunhado atravessara rua e se perder por entre o dédalo de casas.Certificada disso, abriu a janela. O subúrbio todo despertavalanguidamente.As montanhas, verde-negras, quase desnudas de vegetação,confusamente surgiam do seio da cerração tênue e esgarçada. Ascasas listravam de branco e ocre o pardacento geral, enquanto bocadosde neblina, finos, adelgaçados, flutuavam sobre elas como sombras erradias.As ruas descalças e enlameadas eram atravessadas por algunstranseuntes cabisbaixos, mal vestidos, andando céleres em busca do embarcadouro.Corria, de resto, como sempre, morosamente o viver diário; e aLívia, sacudida pelo silvo agudo de uma locomotiva, levantou derepente os olhos, até ali fitos na estação que emergia do ambientepardo a clarear-se, para pregá-los numa nesga do céu que o sol abria, por entre a névoa, furiosamente, vitoriosamente.A súbitas, sua alma voou, asas abertas, vôo rasgado, para outrasbandas, outras regiões. Voou para a cidade de luxo e elegância que,ao fim daquelas fitas de aço, refulgia e brilhava.Representaram-se-lhe os teatros de luxo, os bailes do tom, a ruada moda onde triunfavam as belezas. Ao considerar isso, viu-se alitambém, ela, sim! ela, que não era feia, tendo o seu porte flexível elongo, envolvido de rendas, a desprender custosas essências e aquelesseus dedos de unhas de nácar, ornados de ouro e pérolas, escolhendo,na mais chique loja, cassas, baptistes, voiles...Numa galopada de sonhos, supós maiores cousas e - lembrando-se do que lhe contara a madrinha (oh! como era rica!) - imaginoua Europa, aquelas terras soberbas, por onde a "Dindinha" passeava asua velhice e o seu egoísmo.Doidamente revolvia a alma e as cismas... Calculou-se lá também,na alameda de um soberbo jardim, de landau, com ricas vestes aocorpo unidas, ressaltando delas o esplendor de suas formas e o esguiopatrício de seu corpo. Imaginou que, através de um caro chapéu depalhinha branca, se coasse a luz macia do sol da Europa, polvilhando-lhea tez de ouro, em cujo fundo brilhassem muito os seus olhos vivos,negros e redondos.- Oh! que bom! Quem me dera! - quase exclamou por esse tempo.De reviravolta, Lívia adivinhou outra cousa no sonho. Não pensara bem; era outro que não o Godofredo, o rapaz que imaginara.Aquele nariz grosso, aquela testa alta, o bigode ralo, não eramdele; eram antes do Siqueira, estudante de farmácia, filho do agente.Esse poderia lhe dar aquilo - a Europa, o luxo - pois que formadoganharia muito.Dessa forma - resolvera- "amarraria a lata" no Godofredo e"pegaria" com o Siqueira. E era muito melhor! O Siqueira, afinal, iaformar-se, seria um marido formado, ao braço do qual, se não fosse àEuropa, viria a gozar de maior consideração...Demais a Europa era desnecessária - para quê? Era querermuito. Quem muito quer nada tem; e ela para ter alguma cousa deviaquerer pouco. Bastava pois que lhe tirassem dali, fosse esse, fosseaquele; mas... se em todo o caso pudesse ser um mais assim... seria muito melhor.E desde quando vinha ela querendo aquilo? Havia muitos anos;havia dez talvez. Desde os doze que namorava, que "grelava" só paraaquele fim; entretanto, apesar de haver tido mais de quinze namorados,ainda ali estava, ainda ali ficava, sob o mando do cunhado.Quinze namorados!Quinze! De que lhe serviram?Um levara-lhe beijos, outro abraços, outro uma e outra cousa; esempre, esperando casar-se, isto é, libertar-se, ela ia languidamente,passivamente deixando. Passavam um, dous meses, e os namoradosiam-se sem causa. Era feio, diziam; mas que fazer? como casar-se? Porconsequência, como viver? A sua própria mãe não lhe aconselhava?Não lhe dizia: "Filha, anda com isso; preciso ver esta letra vencida"?De resto, o amor lhe desculparia, pois não é o amor o máximotirano? Não é a própria essência da vida, das cousas mudas, dos seres, enfim?Porventura ela os amara? Teria ela amado aquela legião denamorados? Amara um, sequer? Não sabia...- O que é amar? interrogava fremente.Não é escrever cartas doces? Não é corresponder a olhares? Nãoé dar aos namorados as ameaças da sua carne e da sua volúpia?- Se era isso, ela amara a todos, um a um; se não era, a nenhumamara...E o que era amar? Que era então?Ao lhe chegar essa interrogação metafisica, para o seu entendimento, ela se perdeu no próprio pensamento; as idéias se baralharam, turbaram-se; e, depois, fatigada, foi passando vagarosamente a mãoesquerda pela testa, correu-a pacientemente pela cabeça toda até à nuca.Por fim, como se fosse um suspiro, concluiu:- Qual amor! Qual nada! A questão é casar e para casar,namorar aqui, ali, embora por um se seja furtada em beijos, por outro em abraços, por outro...- Ó Lívia! Você hoje não pretende varrer a casa, rapariga? Quefazes há tanto tempo na janela?!Obedecendo ao chamado de sua mãe, Lívia foi mais uma vezretomar a dura tarefa, da qual, ao seu julgar, só um casamento haviade livrá-la para sempre, eternamente...

Nenhum comentário: