quinta-feira, 19 de março de 2009

Machado e os fanfarrões sul-americanos(do Paraguai de ontem; da Venezuela,Bolivia,Equador, de hoje...)


24 de outubro de 1864
Diário do Rio de Janeiro – Ao Acaso

sobre López, no Paraguai
sobre “democracia americana”
sobre os ‘não-direitos’ da mulher

Se há nesta boa cidade do Rio de Janeiro algum Homero disponível, é chegada a ocasião de ilustrar o seu nome, e mandar um homem à posteridade.
Canta, ó deusa, a cólera do presidente Lopez ! O presidente Lopez não quis deixar passar esta ocasião de brilhar; conseguiu apanhá-la pelos cabelos . Era a mais propícia para trazer à tona da água os seus sentimentos de liberdade, de independência e de democracia --três vocábulos sonoros que têm conceituado muita gente, debaixo do sol.
Dizia-se há muito que o presidente Lopez nutria pretensões monárquicas e preparava o terreno para cingir um dia a coroa paraguaia; mas S. Excia. é, antes de tudo, democrata americano; onde quer que ouça gemer a democracia americana, não hesita - pede a sua espada de Toledo, cinge o capacete de guerra e dispõe-se a ir verter o sangue em defesa da mãe comum.
Democracia americana - naqueles climas - quer dizer: companhia de exploração dos direitos do povo e da paciência dos vizinhos. Déspotas com os seus, turbulentos com os estranhos, sem grandeza moral, sem dignidade política, incapazes, presumidos, gritadores, tais são os pretendidos democratas de Montevidéu e da Assunção.
É uma santa coisa a democracia - não a democracia que faz viver os espertos, a democracia do papel e da palavra - mas a democracia praticada honestamente, regularmente, sinceramente. Quando ela deixa de ser sentimento para ser simplesmente forma, quando deixa de ser idéia para ser simplesmente feitio, nunca será democracia - será esperto-cracia, que é sempre o governo de todos os feitios e de todas as formas.
A democracia, sinceramente praticada, tem os seus Gracos e os seus Franklins ; quando degenera em outra coisa tem os seus Quixotes e os seus Panças. Quixotes no sentido da bravata. Panças no sentido do grotesco. Arreia-se então a mula de um e o rocinante de outro. Cinco palmos de seda, meia dúzia de vivas, uma fila de tambores - é quanto basta então para levar o povo atrás de um fanfarrão – ao ataque de um moinho ou à defesa de uma donzela.

Donzela ! Nem isto mesmo encontra agora o cavaleiro paraguaio. Aquela por quem ele vai fazer reluzir a espada ao sol, não cinge a coroa virginal. É a matrona arrancada ao sono e entregue aos afagos brutais da soldadesca. O que perdeu em viço ganhou em desenvoltura. As mãos torpes e grosseiras dos seus adoradores deram-lhe um ar desvergonhado e insolente. Tal é a heroína ameaçada, a favor de quem vai combater - com a lança em riste - o cavaleiro de la Mancha.
Pobre heroína ! pobre cavaleiro !
Mas o cavaleiro está de boa fé. Todo o seu desejo é o de equilibrar o Rio da Prata. Opor uma barreira às invasões imperialistas, eis o dever da um bom democrata americano, que ama deveras a liberdade e quer a independência da livre América : vinte quilômetros de baboseiras neste gosto, como se diz na comédia “Montjoye”.
Para isto o cavaleiro paraguaio convoca as multidões, prepara as manifestações públicas, fala-lhes a linguagem da liberdade e do valor. Tudo se extasia, tudo aplaude; corre uma faísca elétrica por todos os peitos; uma centelha basta para inflamá-los; ninguém mais hesita; todos vão depor no altar da pátria o óbolo do seu dever –“os homens o seu sangue, as mulheres a sua honra”
[1]
É um delírio .
Devem tomar-se ao sério estas demonstrações? Devemos estremecer à notícia do aspecto bélico do equilibrista paraguaio? Ninguém responderá afirmativamente. Só em Montevidéu é que ninguém ri do presidente López e do entusiasmo de Assunção. A razão é clara. Confederam-se os espertos e os impotentes para a obra comum de salvar uma democracia nominal, sem a força da dignidade nem o alento da convicção.
Quanto aos infelizes povos, sujeitos aos caprichos de tais chefes, se devemos lamentá-los, nem por isso deixaremos de reconhecer que a Providência consente às vezes na dominação dos Lopez e dos Aguirres, como flagelos destinados a fazê-los pagar, pelo abatimento e pelo ridículo, a fraqueza de que se não sabem despir.
O presidente Lopez - que eu continuo a recomendar a algum Homero disponível -- entra com direito nos assuntos amenos da semana.
Foi ele, com efeito, um dos assuntos mais falados depois da chegada das últimas notícias, relativas à aproximação de forças paraguaias.
Fora disso tivemos apenas uma preocupação : a das festas que se hão de celebrar hoje e amanhã por motivo do casamento de S. A. Imperial.
Os augustos consortes devem chegar hoje de Petrópolis. Preparam-se festas que, além das cerimônias oficiais da Corte, constarão dos espetáculos de gala e da iluminação das casas, arcos e coretos.
O Rocio, segundo se diz, tomará novo aspecto, diverso daquele que apresentava no dia 15. Quanto ao arco da rua Direita, que no dia 15 ainda se achava em trajes menores, trata de vestir-se aceleradamente para os dias de hoje e de amanhã.
Só uma das festas do programa fica adiada - a ascensão do aeronauta Wells.
Noticiei no meu folhetim passado que uma dama americana pretendia acompanhar o sr. Wells, na sua excursão ao ar. Segundo me afirmam agora, irá igualmente com o corajoso Wells uma brasileira. É uma glória que não deixarei de mencionar nestas páginas.
Mas que farão os homens? Deixarão acaso que o sexo frágil, o sexo das cinturas quebradiças, o sexo dos desmaios, o sexo excluído da guerra, da urna, da Câmara, o sexo condenado a viver debaixo dos tetos, ao pé das crianças - deixarão acaso, pergunto eu, que este sexo apresente um tal exemplo, sem que atrás dele corra uma legião de homens?
Faço simplesmente a pergunta.
Prepara-se no Teatro Lírico, o Haroldo, de Verdi. Durante a semana houve apenas um espetáculo, creio eu; cantou-se o Baile de Máscaras. A representação em geral correu bem. Mereceram as honras da noite o soprano e o tenor. Quanto ao novo contralto, sem condená-la inteiramente, a opinião geral é que devem haver novas provas para um julgamento definitivo. Afigura-se-me que a artista, cuja voz está longe de ser condenada, sair-se-á bem nas provas requeridas.
A pressa obriga-me hoje a muito pouca demora nos assuntos e nenhum cuidado no enlace necessário entre eles.
Ainda não tive ocasião de falar de Emília das Neves, na nova peça em que atualmente representa, “Adriana Lecouvreur”. Como o objeto principal, direi mesmo exclusivo, da concorrência pública, é a eminente artista, acontece que ainda não mencionei um grande melhoramento que se observa nos espetáculos dramáticos no Teatro Lírico. Refiro-me ao vestuário e aos arranjos de cena, em que se nota sempre muita propriedade e asseio, e muitas vezes um luxo a que não andávamos acostumados.
A representação da comédia de Scribe foi uma ocasião que tivemos de apreciar este melhoramento tão reclamado.
Emília das Neves é uma artista julgada. (.....)

(...........)
M.A.

[1] Segundo matéria do Correio Mercantil, à época, assim declarou o Semanário, de Assunção.

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