domingo, 8 de março de 2009


Lima Barreto e a mulher - II

Clara dos Anjos (a Andrade Murici)


O carteiro Joaquim dos Anjos não era homem de serestas e serenatas, mas gostava de violão e de modinhas. Ele mesmo tocava flauta,instrumento que já foi muito estimado, não o sendo tanto atualmentecomo outrora. Acreditava-se até músico, pois compunha valsas, tangose acompanhamentos para modinhas.Aprendera a "artinha" musical na terra de seu nascimento, nosarredores de Diamantina, e a sabia de cor e salteado; mas não safra daí.Pouco ambicioso em música, ele o era também nas demais manifestações de sua vida. Empregado de um advogado famoso, sempre quisera obter um modesto emprego público que lhe desse direito àaposentadoria e ao montepio, para a mulher e a filha. Conseguiraaquele de carteiro, havia quinze para vinte anos, com o qual estavamuito contente, apesar de ser trabalhoso e o ordenado ser exíguo.Logo que foi nomeado, tratou de vender as terras que tinha nolocal de seu nascimento e adquirir aquela casita de subúrbio, porpreço módico, mas, mesmo assim, o dinheiro não chegara e o restopagou ele em prestações. Agora, e mesmo há vários anos, estava deplena posse dela. Era simples a casa. Tinha dois quartos, um que davapara a sala de visitas e outro, para a de jantar. Correspondendo a umterço da largura total da casa, havia nos fundos um puxadito que eraa cozinha. Fora do corpo da casa, um barracão para banheiro, tanque,etc.; e o quintal era de superfície razoável, onde cresciam goiabeirasmaltratadas e um grande tamarineiro copado.A rua desenvolvia-se no plano e, quando chovia, encharcavaque nem um pântano; entretanto, era povoada e dela se descortinavaum lindo panorama de montanhas que pareciam cercá-la de todos oslados, embora a grande distância. Tinha boas casas a rua. Havia atéuma grande chácara de outros tempos com aquela casa característicade velhas chácaras de longa fachada, de teto acaçapado, forrada deazulejos até â metade do pé-direito, um tanto feia, é fato, sem garridice, mas casando-se perfeitamente com as anosas mangueiras, com as robustas jaqueiras e com todas aquelas grandes e velhas árvoresque, talvez, os que as plantaram, não tivessem visto frutificar.Por aqueles tempos, nessa chácara, se haviam estabelecido as"bíblias". Os seus cânticos, aos sábados, quase de hora em hora,enchiam a redondeza. O povo não os via com hostilidade, mesmoalguns humildes homens e pobres raparigas simpatizavam com eles,porque, justificavam, não eram como os padres que, para tudo,querem dinheiro.Chefiava os protestantes um americano, Mr. Sharp, homemtenaz e cheio de uma eloqüência bíblica que devia ser magnífica eminglês; mas que, no seu duvidoso português, se fazia simplesmentepitoresca. Era Sharp daquela raça curiosa de yankees que, de quandoem quando, à luz da interpretação de um ou mais versículos da Bíblia,fundam seitas cristãs, propagam-nas, encontram adeptos logo, osquais não sabem bem por que foram para a nova e qual a diferençaque há entre esta e a de que vieram.Fazia prosélitos e, quando se tratava de iniciar uma turma, osnoviços dormiam em barracas de campanha, erguidas no eirado dachácara ou entre as suas velhas árvores maltratadas e desprezadas. Ascerimônias preparatórias duravam uma semana, cheia de cânticosdivinos; e a velha propriedade, com as suas barracas e salmodias,adquiria um aspecto esquisito de convento ao ar livre de mistura comum certo ar de acampamento militar.Da redondeza, poucos eram os adeptos ortodoxos; entretanto,muitos lá iam por mera curiosidade ou para deliciar-se com a oratória de Mr. Sharp.Iam sem nenhuma repugnância, pois é próprio do nossopequeno povo fazer um extravagante amálgama de religiões ecrenças de toda sorte, e socorrer-se desta ou daquela, conforme ostranses de sua existência. Se se trata de afastar atrasos de vida, apelapara a feitiçaria; se se trata de curar uma moléstia tenaz e resistente,procura o espírita; mas não falem à nossa gente humilde em deixar debatizar o filho pelo sacerdote católico, porque não há quem não sezangue: Meu filho ficar pagão! Deus me defenda!Joaquim não fazia exceção desta regra e sua mulher, a Engrácia,ainda menos.Eram casados há quase vinte anos, mas só tinham uma filha, aClara. O carteiro era pardo claro, mas com cabelo ruim, como se diz;a mulher, porém, apesar de mais escura, tinha o cabelo liso.Na tez, a filha puxava o pai; e no cabelo, à mãe. Na estatura,ficara entre os dois. Joaquim era alto, bem alto, acima da médiaombros quadrados; a mãe, não sendo muito baixa, não alcançava amédia, possuindo uma fisionomia miúda, mas regular, o que nãoacontecia com o marido que tinha o nariz grosso, quase chato. A filha,a Clara, tinha ficado em tudo entre os dois; média deles, era bem afilha de ambos. Habituada às musicatas do pai, crescera cheia devapores das modinhas e enfumaçara a sua pequena alma de raparigapobre com os dengues e a melancolia dos descantes e cantarolas.Com dezessete anos, tanto o pai como a mãe tinham por elagrandes desvelos e cuidados. Mais depressa ia Engrácia à venda de"seu" Nascimento, buscar isto, ou aquilo, do que ela. Não que a vendade "seu" Nascimento fosse lugar de badernas; ao contrário: as pessoasque lá faziam "ponto" eram de todo o respeito.O Alípio, uma delas, era um tipo curioso de rapaz, que, conquanto pobre, não deixava de ser respeitador e bem comportado.Tinha um aspecto de galo de briga; entretanto, estava longe de possuir a ferocidade repugnante desses galos malaios de apostas, nãopossuindo - é preciso saber - nenhuma.Um outro que aparecia sempre lá era um inglês, Mr. Persons,desenhista de uma grande oficina mecânica das imediações. Quandosaía do trabalho, passava na venda, lá se sentava naqueles característicos tamboretes de abrir e fechar, e deixava-se ficar até ao anoitecerbebericando ou lendo os jornais do senhor Nascimento. Silenciosoquase taciturno, pouco conversava e implicava muito com quem otratava por mister.Havia lá também o filósofo Meneses, um velho hidrópico, quese tinha na conta de sábio, mas que não passava de um simples dentista clandestino, e dizia tolices sobre todas as cousas. Era um velho branco, simpático, com um todo de imperador romano, barbas alvase abundantes.Aparecia, às vezes, o J. Amarante, um poeta, verdadeiramentepoeta, que tivera o seu momento de celebridade em todo o Brasil, seainda não a tem; mas que, naquela época, devido ao álcool e a desgostos íntimos, era uma triste ruína de homem, apesar dos seus dezvolumes de versos, dez sucessos, com os quais todos ganharamdinheiro menos ele. Amnésico, semi-imbecilizado, não seguia umaconversa com tino e falava desconexamente. O subúrbio não sabiabem quem ele era; chamava-o muito simplesmente - o poeta.Um outro freqüentador da venda era o velho Valentim, um por-tuguês dos seus sessenta anos e pouco, que tinha o corpo curvadopara diante, devido ao hábito contraído no seu oficio de chacareiroque já devia exercer há mais de quarenta. Contava 'casos" e anedotasde sua terra, pontilhando tudo de rifões portugueses do maissaboroso pitoresco.Apesar de ser assim decente, Clara não ia à venda; mas o pai, emalguns domingos, permitia que fosse com as amigas ao cinema doMéier ou Engenho de Dentro, enquanto ele e alguns amigos ficavamem casa tocando violão, cantando modinhas e bebericando parati.Pela manhã, logo nas primeiras horas, os companheiros apareciam, tomavam café, iam em seguida para o quintal, para debaixo dotamarineiro, jogar a bisca, com o litro de cachaça ao lado; e ai, sem dar uma vista d'olhos sobre as montanhas circundantes, nuas e empedrouçadas, deixavam-se ficar até à hora do "ajantarado" que a mulher e a filha preparavam.Só depois deste é que as cantorias começavam. Certo dia, umdos companheiros dominicais do Joaquim pediu-lhe licença paratrazer, no dia do aniversário dele, que estava próximo, um rapaz desua amizade, o Júlio Costa, que era um exímio cantor de modinhas.Acedeu. Veio o dia da festa e o famoso trovador apareceu. Branco,sardento, insignificante, de rosto e de corpo, não tinha as tais melenasdenunciadoras, nem outro qualquer traço de capadócio. Vestia-seseriamente com um apuro muito suburbano; sob a tesoura de alfaiate de quarta ordem. A única pelintragem adequada ao seu mister que apresentava consistia em trazer o cabelo repartido no alto da cabeça, dividido muito exatamente pelo meio. Acompanhava-o o violão.A sua entrada foi um sucesso.Todas as moças das mais diferentes cores que, ai, a pobrezaharmonizava e esbatia, logo o admiraram. Nem César Bórgia,entrando mascarado, num baile à fantasia dado por seu pai, noVaticano, causaria tanta emoção.Afirmavam umas para as outras:-É ele! É ele, sim!Os rapazes, porém, não ficaram muito contentes com isto; e,entre eles, puseram-se a contar histórias escabrosas da vida galantedo cantor de modinhas.Apresentado aos donos da casa e à filha, ninguém notou o olharguloso que deitou para os seios empinados de Clara.O baile começou com a música de um "terno" de flauta, cavaquinho e violão. A polca era a dança preferida e quase todos a dançavam com requebros próprios de samba.Num intervalo Joaquim convidou:- Por que não canta, "seu" Júlio?- Estou sem voz, respondeu ele.Até ali, ele tinha tomado parte no "remo"; e, repinicando as cordas, não deixava de devorar com os olhos os bamboleios de quadris deClarinha, quando dançava. Vendo que seu pai convidara o rapaz,animou-se a fazê-lo também:- Por que não canta, "seu" Júlio? Dizem que o senhor canta tãobem...Esse - "tão bem" - foi alongado maciamente. O cantadoracudiu logo:- Qual, minha senhora! São bondades dos camaradas...Concertou a "pastinha" com as duas mãos, enquanto Clara dizia:- Cante! Vá!- Já que a senhora manda, disse ele, vou cantar.Com todo o dengue, agarrou o violão, fez estalar as cordas e anunciou:- Amor e sonho.E começou com uma voz muito alta, quase berrando, a modinha,para depois arrastá-la num tom mais baixo, cheio de mágoa e langor,sibilando os "ss", carregando os "rr" das metáforas horrendas de queestava cheia a cantoria. A cousa era, porém, sincera; e mesmo as comparações estrambóticas levantavam nos singelos cérebros das ouvintes largas perspectivas de sonhos, erguiam desejos, despertavam anseios e visões douradas. Acabou. Os aplausos foram entusiásticos e só Clarínha não aplaudiu, porque, tendo sonhado durante toda a modinha, ficara ainda embevecida quando ela acabou...Dias depois, vindo à janela por acaso - era de tarde - semgrande surpresa, como se já o esperasse, Clara recebeu o cumprimento do cantor magoado. Não pôs malícia na cousa, tanto assim quedisse candidamente à mãe:- Mamãe, sabe quem passou aí?- Quem?- "Seu" Júlio.- Que Júlio?- Aquele que cantou nos "anos" de papai.A vida da casa, após a festança de aniversário do Joaquim, continuou a ser a mesma. Nos domingos, aquelas partidas de bisca como Eleutério, servente da biblioteca, e com o Augusto, guarda municipal,acompanhadas de copitos de cachaça, e o violão, à tarde. Não tardouque se viesse agregar um novo comensal: era o Júlio Costa, o famosomodinheiro suburbano, amigo íntimo do Augusto e seu professor detrovas.Júlio quase nunca jantava, pois tinha sempre convites em todos osquatro pontos cardeais daquelas paragens. Tomava parte nas partidasde bisca, de parceirada, e pouco bebia. Apesar de não demorar-sepela tarde adentro, pôde ir cercando a rapariga, a Clara, cujos seiosempinados, volumosos e redondos fascinavam-lhe extraordinariamente e excitavam a sua gula carnal insaciável. Em começo foram sóolhares que a moça, com os seus úmidos olhos negros, grandes,quase cobrindo toda a esclerótica, correspondia a furto e com medo;depois, foram pequenas frases, galanteios, trocados às escondidas,para, afinal, vir a fatídica carta.Ela a recebeu, meteu-a no seio e, ao deitar-se, leu-a, sob a luz davela, medrosa e palpitante. A carta era a cousa mais fantástica, no quediz respeito à ortografia e à sintaxe, que se pode imaginar; tinha,porém, uma virtude: não era copiada do Secretário dos amantes, eraoriginal. Contudo a missiva fez estremecer toda a natureza virgem deClara que, com a sua leitura, sentiu haver nela surgido alguma cousade novo, de estranho, até ali nunca sentida. Dormiu mal. Não sabiabem o que fazer: se responder, se devolver. Viu o olhar severo do pai;as recriminações da mãe. Ela, porém, precisava casar-se. Não havia deser toda a vida assim como um cão sem dono... Os pais viriam a morrere ela não podia ficar pelo mundo desamparada... Uma dúvida lheveio: ele era branco; ela, mulata... Mas que tinha isso? Tinham-se visto tantos casos... Lembrou-se de alguns... Por que não havia de ser? Ele falava com tanta paixão... Ofegava, suspirava, chorava; e os seus seios duros estouravam de virgindade e de ansiedade de amar...Responderia; e assim fez, no dia seguinte. As visitas de Costatomaram-se mais demoradas e as cartas mais constantes. A mãedesconfiou e perguntou à filha:- Você está namorando "seu" Júlio, Clarinha?- Eu, mamãe! Nem penso nisso...- Está, sim! Então não vejo?A menina pôs-se a chorar; a mãe não falou mais nisso; e Clara,logo que pôde, mandou pelo Aristides, um molecote da vizinhança,uma carta ao modinheiro, relatando o fato.Júlio morava na estação próxima e a situação de sua família erabem superior à sua namorada. O seu pai tinha um emprego regularna prefeitura e era, em tudo, diferente do filho. Sisudo, grave, sério,ia até a imponência grotesca do bom funcionário; e não seria capazde admitir que a namorada do filho dançasse na sua sala. Sua mulhernão tinha o ar solene do marido, era, porém, relaxada de modos ehábitos. Comia com a mão, andava descalça, catava intrigas e "novidades" da vizinhança; mas tinha, apesar disso, uma pretensão intima de ser grande cousa, de uma grande família. Além do Júlio, tinha três filhas, uma das quais já era adjunta municipal; e, das outras duas, uma estava na Escola Normal e a mais moça cursava o Instituto de Música.Tiravam muito ao pai, no gênio sobranceiro, no orgulho fofo dafamília; e tinham ambição de casamentos doutorais. Mercedes,Adelaide e Maria Eugênia, eram esses os nomes, não suportariam denenhuma forma Clara como cunhada, embora desprezassem soberbamente o irmão pelos seus maus costumes, pelo seu violão, pelosseus plebeus galos de briga e pela sua ignorância crassa.Pequeno-burguesas, sem nenhuma fortuna, mas, devido à situaçãodo pai e a terem freqüentado escolas de certa importância, elas nãoadmitiriam, para Clara, senão um destino: o de criada de servir.Entretanto, Clara era doce e meiga; inocente e boa, podia-sedizer que era muito superior ao irmão delas pelo sentimento, ficandotalvez acima dele pela instrução, conquanto fosse rudimentar, comonão podia deixar de ser, dada a sua condição de rapariga pobríssima.Júlio era quase analfabeto e não tinha poder de atenção suficientepara ler o entrecho de uma fita de cinematógrafo. Muito estúpido, asua vida mental se cifrava na composição de modinhas delambidas,recheadas das mais estranhas imagens que a sua imaginação erótica,sufocada pelas conveniências, criava, tendo sempre perante seusolhos o ato sexual.Mais de uma vez, ele se vira a braços com a polícia por causa dedefloramento e seduções de menores.O pai, desde a segunda, recusara intervir; mas a mãe, dona Inês,a custo de rogos, de choro, de apelo - para a pureza de sangue dafamília, conseguira que o marido, o capitão Bandeira, procurasseinfluenciar, a fim de evitar que o filho casasse com uma negrinha dedezesseis anos, a quem o Júlio "tinha feito mal".Apesar de não ser totalmente má, os seus preconceitos junto àestreiteza da sua inteligência não permitiram ao seu coração queagasalhasse ou protegesse o seu infeliz neto. Sem nenhum remorso,deixou-o por aí, à toa, pelo mundo...O pai, desgostoso com o filho, largara-o de mão; e quase não seviam. Júlio vivia no porão da casa ou nos fundos da chácara ondetinha gaiolas de galos de briga, o bicho mais hediondo, mais repugnantemente feroz que é dado a olhos humanos ver. Era a sua indústriae o seu comércio, esse negócio de galos e as suas brigas em rinhadeiros.Barganhava-os, vendia-os, chocava as galinhas, apostava nas rinhas;e com o resultado disso e com alguns cobres que a mãe lhe dava,vivia e obtinha dinheiro para vestir-se. Era o tipo completo dovagabundo doméstico, como há milhares nos subúrbios e em outrosbairros do Rio de Janeiro.A mãe, sempre temendo que se repetissem os seus ajustes decontas com a polícia, esforçava-se sempre por estar ao corrente dosseus amores. Veio a saber do seu último com a Clara e repreendeu-onos termos mais desabridos. Ouviu-a o filho respeitosamente, semdizer uma palavra; mas, julgou da boa política relatar, a seu modo,por carta, tudo à namorada. Assim escreveu:
"Queridinha confeço-te que ontem quando recebi a tua cartaminha mãe viu e fiquei tão louco que confecei tudo a mamãeque lhe amava muito e fazia por você as maiores violências,ficaram todos contra mim é a razão porque previno-te que nãoligues ao que lhe disserem, por isso pesso-te que preze bem omeu sofrimento. Pense bem e veja se estás resolvida a fazer o que lhe pedi na última cartinha.Saudades e mais saudades deste infeliz que tanto lhe adora enão é correspondido. O teu Júlio".
Clara já estava habituada com a redação e ortografia do seunamorado, mas, apesar de escrever muito melhor, a sua instrução erainsuficiente para desprezar um galanteador tão analfabeto. Ainda porcima, a sua fascinação pelo modinheiro e a sua obsessão pelo casamento lhe tiravam toda a capacidade critica que pudesse ter. A cartaproduziu o efeito esperado por Júlio. Choro, palpitações, anseios vagos,esperanças nevoentas, vislumbres de céus desconhecidos e encantados- tudo isso aquela carta lhe trouxe, além do halo de dedicação e amorpor ela com que Clara fez resplandecer, na imaginação, as pastinhasdo violeiro. Daí a dias, fez o prometido, isto é, deixou a janela doquarto aberta para que ele entrasse no aposento. Repetiu a façanhaquase todas as noites seguidas, sem que ele se demorasse muito no quarto.Nos domingos, aparecia, cantava e semelhava que entre ambosnão havia nada. Um belo dia, Clara sentiu alguma cousa de estranhono ventre. Comunicou ao namorado. Qual! Não era nada, disse ele.Era, sim; era o filho. Ela chorou, ele acalmou-a, prometendo casamento. O ventre crescia, crescia...O cantador de modinhas foi fugindo, deixou de aparecer amiúdo; e Clara chorava. Ainda não lhe tinham percebido a gravidez.A mãe, porém, com auxilio de certas intimidades próprias de mãepara filha, desconfiou e pó-la em confissão. Clara não pôde esconder,disse tudo; e aquelas duas humildes mulheres choraram abraçadasdiante do irremediável... A filha teve uma idéia:- Mamãe, antes da senhora dizer a papai, deixa-me ir até à casadele, para falar com a sua mãe?A velha meditou e aceitou o alvitre:- Vai!Clara vestiu-se rapidamente e foi. Recebida com altaneria poruma das filhas, disse que queria falar à mãe de Júlio. Recebeu-a estarispidamente; mas a rapariga, com toda a coragem e com sangue-friodifícil de crer, confessou-lhe tudo, o seu erro e a sua desdita.- Mas o que é que você quer que eu faça?- Que ele se case comigo, fez Clara num só hausto.- Ora, esta! Você não se enxerga! Você não vê mesmo quemeu filho não é para se casar com gente da laia de você! Ele nãoamarrou você, ele não amordaçou você... Vá-se embora, rapariga!-Ora já se viu! Vá!Clara saiu sem dizer nada, reprimindo as lágrimas, para que narua não lhe descobrissem a vergonha. Então, ela? Então ela não se podia casar com aquele calaceiro, sem nenhum título, sem nenhumaqualidade superior? Por quê?Viu bem a sua condição na sociedade, o seu estado de inferioridade permanente, sem poder aspirar a cousa mais simples a que todasas moças aspiram. Para que seriam aqueles cuidados todos de seuspais? Foram inúteis e contraproducentes, pois evitaram que ela conhecesse bem justamente a sua condição e os limites das suas aspirações sentimentais... Voltou para casa depressa. Chegou; o pai ainda não viera.Foi ao encontro da mãe. Não lhe disse nada; abraçou-a chorando. A mãe também chorou e, quando Clara parou de chorar, entre soluços, disse:- Mamãe, eu não sou nada nesta vida.

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