quinta-feira, 5 de março de 2009


Arthur Azevedo e a mulher - I

A berlinda

Um dia o poeta Passos Nogueira foi instantemente convidado para as terças-·feiras do Cunha.
-- Apareça, que diabo ! dizia-lhe este sempre que o encontrava. Minha senhora faz questão da sua pessoa e me recomenda com muito empenho que o convide. Ela adora a poesia, e por seu gosto vivia cercada de poetas.
-- Mas eu não sou poeta, meu caro sr. Cunha.
-- lsso agora é modéstia sua.O meu amigo não é ainda um Casimiro de Abreu
[1] nem um Rozendo Moniz; mas em todo o caso é um bom poeta.
Passos Nogueira não podia resistir à tanta amabilidade, e uma terça-feira lá foi à casa do Cunha, na rua Mariz e Barros.
A sala estava cheia de visitas. A dona da casa recebeu o poeta com grandes demonstrações de agrado ... e um aperto de mão fortíssimo.
Era uma bonita mulher, não há dúvida, aquela dona Helena dos olhos lânguidos, com arrebitado e petulante nariz cavalgado pelo pince-nez de ouro, e a boca -- uma boca adorável, primorosamente rasgada -- mostrando sempre os dentes alvos e brilhantes.
Os homens, quando se aproximavam dela, ficavam como envolvidos num vapor de sensualidade e volúpia.
Com aquele sorriso que murmurava : “Cheguem-se !”, aqueles olhos que diziam “Amem- me !”, e aquelas narinas que gritavam “Gozem-me !”, não podia dona Helena escapar da maledicência pública. Efetivamente a mísera não gozava da fama de uma Penélope, três ou quatro amantes sucessivos lhe apontava a vox populi . Sabia disso toda a gente ... , exceção do Cunha que - vamos e venhamos -- não era precisamente um Ulysses.
Passos Nogueira estava ao corrente da reputação de dona Helena, e, portanto, poderia quase sem remorsos aceitar o combate amoroso que ela visivelmente lhe oferecia. A boca, os olhos e as narinas da moça diziam-lhe : “Chega-te ! Ama-me ! Goza-me !”
Ele chegou-se; na ocasião era o mais que podia fazer . Ali, naquela sala pequena e cheia de gente, o combate deveria necessariamente limitar-se à fuzilaria dos olhos; não era possível recorrer à artilharia dos lábios.
-- Sr. Passos Nogueira, disse dona Helena em voz alta, queira recitar-nos uma das suas mimosas poesias.
-- Oh,excelentíssima ! poupe-me pelo amor de Deus o dissabor de vir trazer o sono a uma sociedade tão divertida .
-- Não apoiado ! não apoiado !... gritaram diversas vozes.
-- Vamos ! não se faça rogado, suspirou dona Helena.
-- Pois bem ; recitarei a minha última produção poética : algumas quintilhas que escrevi ontem para responder a certa pessoa que me perguntou se eu amava.
E os olhos do poeta encontraram-se com os da dona da casa. Fuzilaria.
-- Quer que dona Xandoquinha toque a “Dalila” enquanto o senhor recita? perguntou o Cunha.
-- Não, não é preciso acompanhamento, gemeu o poeta, penteando com os dedos a cabeleira farta .
Dispensem-me os leitores de reproduzir a poesia inteira; basta dizer-lhes que a terceira quintilha rezava assim :
“Queres saber, porém,
Se algum afeto escondo
No coração; pois bem,
Senhora, eu te respondo
Que nunca amei ninguém.”
E que a última era do teor seguinte :
“Em busca do meu bem,
Irei como a andorinha
Por esse mundo além;
E uma alma irmã da minha
Hei de encontrar também.”
Sentou-se o poeta, e os aplausos rebentaram de todos os ângulos da sala. Dona Helena dava claramente a perceber com os olhos, a boca e as narinas que ela possuía uma alma irmã da de Passos Nogueira.
E com tanta franqueza se entregava ao poeta, que este, aproveitando um momento em que a conversação se tornou geral, perguntou-lhe rapidamente:
-- Como poderei falar-lhe ?
Ela respondeu-lhe com um olhar docemente repreensivo, que ao mesmo tempo exprimia a impossibilidade de contestar por outra forma. Ele resignou-se.
Mas dona Helena, ardilosa como todas as criaturas do seu sexo, propôs à sociedade um jogo de prendas. Alguns tímidos protestos se levantaram; a maioria, porém, acolheu com entusiasmo a proposta, e formou -se uma grande roda.
Na ocasião da berlinda... Os leitores sabem o que é, num jogo de prendas, a berlinda? ... A pessoa sentenciada afasta-se para um canto da sala, e um dos circunstantes vai perguntar em segredo a cada um dos que tomaram parte no jogo porque aquela pessoa está na berlinda; depois repete alto e bom som todas as respostas.
Passos Nogueira foi designado por dona Helena para esse serviço.
Na berlinda estava um moço muito empomadado, caixeiro de um grande armarinho da rua do Ouvidor.
O poeta vergava-se diante de todos para que sucessivamente lhe segredassem a resposta.
Dizia um :
-- Está na berlinda, porque gosta de andar de calças brancas.
Outro:
-- Está na berlinda, porque é muito amável.
Dona Xandoquinha, a pianista :
-- Está na berlinda, porque há uma baroneza viúva que simpatiza muito com ele.
Chegou a vez de dona Helena. O poeta curvou-se e ela disse-lhe ao ouvido :
-- Amanhã, ao meio - dia,na travessa de São Salvador. Leve um carro fechado.

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