a propósito do evento Fantasticon 2012 – VI Simpósio de Literatura Fantástica (promovido pela Biblioteca Viriato Corrêa - Temática em Literatura Fantástica, São Paulo, em (15 e 16.09 e 22 e 23.09. e para quem não sabe: Machado de Assis praticou,'avant la lettre', o gênero fantástico em 17 contos [vide http://www.facebook.com/pages/Di%C3%A1rio-das-Letras/394367320630177?notif_t=page_new_likes]
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aqui, 2 contos da coletânea que organizei e veiculei online em 2008.
O país das quimeras
(conto fantástico)
publicado
originalmente in
O Futuro ,1862
Arrependera-se Catão de haver ido
algumas vezes por mar quando podia ir por terra. O virtuoso romano tinha razão.
Os carinhos de Anfitrite são um tanto raivosos, e muitas vezes funestos. Os
feitos marítimos dobram de valia por esta circunstância, e é também por esta
circunstância que se esquivam de navegar as almas pacatas, ou, para falar mais
decentemente, os espíritos prudentes e seguros.
Mas, para justificar o provérbio
que diz: debaixo dos pés se levantam os trabalhos — a via terrestre não é
absolutamente mais segura que a via marítima, e a história dos caminhos de
ferro, pequena embora, conta já não poucos e tristes episódios.
Absorto nestas e noutras
reflexões estava o meu amigo Tito, poeta aos vinte anos, sem dinheiro e sem
bigode, sentado à mesa carunchosa do trabalho, onde ardia silenciosamente uma
vela.
Devo proceder ao retrato físico e
moral do meu amigo Tito.
Tito não é nem alto nem baixo, o
que equivale a dizer que é de estatura mediana, a qual estatura é aquela que se
pode chamar francamente elegante na minha opinião. Possuindo um semblante
angélico, uns olhos meigos e profundos, o nariz descendente legítimo e direto
do de Alcibíades, a boca graciosa, a fronte larga como o verdadeiro trono do
pensamento, Tito pode servir de modelo à pintura e de objeto amado aos corações
de quinze e mesmo de vinte anos.
Como as medalhas, e como todas as
coisas deste mundo de compensações, Tito tem um reverso. Oh! triste coisa que é
o reverso das medalhas! Podendo ser, do colo para cima, modelo à pintura, Tito
é uma lastimosa pessoa no que toca ao resto. Pés prodigiosamente tortos, pernas
zambras, tais são os contras que a pessoa do meu amigo oferece a quem se
extasia diante dos magníficos prós da cara e da cabeça. Parece que a natureza
se dividira para dar a Tito o que tinha de melhor e o que tinha de pior, e
pô-lo na miserável e desconsoladora condição do pavão, que se enfeita e
contempla radioso, mas cujo orgulho se abate e desfalece quando olha para as
pernas e para os pés.
Na moral Tito apresenta o mesmo
aspecto duplo do físico. Não tem vícios, mas tem fraquezas de caráter que
quebram, um tanto ou quanto, as virtudes que o enobrecem. É bom e tem a virtude
evangélica da caridade; sabe, como o divino Mestre, partir o pão da
subsistência e dar de comer ao faminto, com verdadeiro júbilo de consciência e
de coração. Não consta, além disso, que jamais fizesse mal ao mais impertinente
bicho, ou ao mais insolente homem, duas coisas idênticas, nos curtos dias da
sua vida. Pelo contrário, conta-se que a sua piedade e bons instintos o levaram
uma vez a ficar quase esmagado, procurando salvar da morte uma galga que dormia
na rua, e sobre a qual ia quase passando um carro. A galga, salva por Tito,
afeiçoou-se-lhe tanto que nunca mais o deixou; à hora em que o vemos absorto em
pensamentos vagos está ela estendida sobre
a mesa a contemplá-lo grave e sisuda.
Só há que censurar em Tito as
fraquezas de caráter, e deve-se crer que elas são filhas mesmo das suas
virtudes. Tito vendia outrora as produções da sua musa, não por meio de uma
permuta legítima de livro e moeda, mas por um meio desonroso e nada digno de um
filho de Apolo. As vendas que fazia eram absolutas, isto é, trocando por
dinheiro os seus versos, o poeta perdia o direito da paternidade sobre essas
produções. Só tinha um freguês; era um sujeito rico, maníaco pela fama de
poeta, e que, sabendo da facilidade com que Tito rimava, apresentou-se um dia
no modesto albergue do poeta e entabulou a negociação por estes termos:
-- Meu caro, venho propor-lhe um
negócio da China.
— Pode falar, respondeu Tito.
— Ouvi dizer que você fazia
versos... É verdade?
Tito conteve-se a custo diante da
familiaridade do tratamento, e respondeu:
— É verdade.
— Muito bem. Proponho-lhe o
seguinte: compro-lhe por bom preço todos os seus versos, não os feitos, mas os
que fizer de hoje em diante, com a condição de que os hei de dar à estampa como
obra da minha lavra. Não ponho outras condições ao negócio: advirto-lhe, porém,
que prefiro as odes e as poesias de sentimento. Quer?
Quando o sujeito acabou de falar,
Tito levantou-se e com um gesto mandou-o sair. O sujeito pressentiu que, se não
saísse logo, as coisas poderiam acabar mal. Preferiu tomar o caminho da porta,
dizendo entre dentes: “Hás de procurar-me, deixa estar!”
O meu poeta esqueceu no dia
seguinte a aventura da véspera, mas os dias passaram-se e as necessidades
urgentes apresentaram-se à porta com o olhar suplicante e as mãos ameaçadoras.
Ele não tinha recursos; depois de uma noite atribulada, lembrou-se do sujeito,
e tratou de procurá-lo; disse-lhe quem era, e que estava disposto a aceitar o
negócio; o sujeito, rindo-se com um riso diabólico, fez o primeiro
adiantamento, sob a condição de que o poeta lhe levaria no dia seguinte uma ode
aos Polacos. Tito passou a noite a arregimentar palavras sem idéia, tal era seu
estado, e no dia seguinte levou a obra ao freguês, que achou boa e dignou-se
apertar-lhe a mão.
Tal é a face moral de Tito. A
virtude de ser pagador em dia levava-o a mercar com os dons de Deus; e ainda
assim vemos nós que ele resistiu, e só foi vencido quando se achou com a corda
ao pescoço.
A mesa à qual Tito estava
encostado era um traste velho e de lavor antigo; herdara-a de uma tia que lhe
havia morrido fazia dez anos. Um tinteiro de osso, uma pena de ave, algum
papel, eis os instrumentos de trabalho de Tito. Duas cadeiras e uma cama completavam
a sua mobília. Já falei na vela e na galga.
À hora em que Tito se engolfava
em reflexões e fantasias era noite alta. A chuva caía com violência, e os
relâmpagos que de instante a instante rompiam o céu deixavam ver o horizonte
pejado de nuvens negras e túmi-das. Tito nada via, porque estava com a cabeça
encostada nos braços, e estes sobre a mesa; e é provável que não ouvisse,
porque se entretinha em refletir nos perigos que oferecem os diferentes modos
de viajar.
Mas qual o motivo destes
pensamentos em que se engolfava o poeta? É isso que eu vou explicar à legitima
curiosidade dos leitores. Tito, como todos os homens de vinte anos, poetas e
não poetas, sentia-se afetado da doença do amor. Uns olhos pretos, um porte
senhoril, uma visão, uma criatura celestial, qualquer coisa por este teor,
havia influído por tal modo no coração de Tito, que o pusera, pode-se dizer, à
beira da sepultura. O amor em Tito começou por uma febre; esteve três dias de
cama, e foi curado (da febre e não do amor) por uma velha da vizinhança, que
conhecia o segredo das plantas virtuosas, e que pôs o meu poeta de pé, com o
que adquiriu mais um título à reputação de feiticeira, que os seus milagrosos
curativos lhe haviam granjeado.
Passado o período agudo da
doença, ficou-lhe este resto de amor, que, apesar da calma e da placidez, nada
perde da sua intensidade. Tito estava ardentemente apaixonado, e desde então
começou a defraudar o freguês das odes, subtraindo-lhe algumas estrofes
inflamadas, que dedicava ao objeto dos seus íntimos pensamentos, tal qual como
aquele sr. d’Ofayel, dos amores leais e pudicos, com quem se pareceu, não na
sensaboria dos versos, mas no infortúnio amoroso.
O amor contrariado, quando não
leva a um desdém sublime da parte do coração, leva à tragédia ou à asneira. Era
nesta alternativa que se debatia o espírito do meu poeta. Depois de haver gasto
em vão o latim das musas, aventurou uma declaração oral à dama dos seus
pensamentos. Esta ouviu-o com dureza d’alma, e quando ele acabou de falar
disse-lhe que era melhor voltar à vida real, e deixar musas e amores, para
cuidar do alinho da própria pessoa. Não
presuma o leitor que a dama de quem lhe falo tinha a vida tão desenvolta como a
língua. Era, pelo contrário, um modelo da mais seráfica pureza e do mais perfeito
recato de costumes; recebera a educação austera de seu pai, antigo capitão de
milícias, homem de incrível boa fé, que, neste século desabusado, ainda
acreditava em duas coisas: nos programas políticos e nas cebolas do Egito.
Desenganado de uma vez nas suas
pretensões, Tito não teve força de ânimo para varrer da memória a filha do
militar: e a resposta crua e desapiedada da moça estava-lhe no coração como um
punhal frio e penetrante. Tentou arrancá-lo, mas a lembrança, viva sempre, como
ara de Vesta, trazia-lhe as fatais palavras ao meio das suas horas mais alegres
ou menos tristes da sua vida, como aviso de que a sua satisfação não podia
durar e que a tristeza era o fundo real dos seus dias. Era assim que os
egípcios mandavam pôr um sarcófago no meio de um festim, como lembrança de que
a vida é transitória, e que só na sepultura existe a grande e eterna verdade.
Quando, depois de voltar a si,
Tito conseguiu encadear duas idéias e tirar delas uma conseqüência, dois
projetos se lhe apresentaram, qual mais próprio a granjear-lhe a vilta de
pusilânime; um concluía pela tragédia, outro pela asneira; triste alternativa
dos corações não compreendidos! O primeiro desses projetos era simplesmente
deixar este mundo; o outro, limitava-se a uma viagem, que o poeta faria por mar
ou por terra, a fim de deixar por algum tempo a capital. Já o poeta abandonava
o primeiro por achá-lo sanguinolento e definitivo; o segundo parecia-lhe
melhor, mais consentâneo com a sua dignidade e sobretudo com os seus instintos
de conservação. Mas qual o meio de mudar de sítio? Tomaria por terra? tomaria
por mar? Qualquer destes dois meios tinha seus inconvenientes. Estava o poeta
nestas averiguações, quando ouviu que batiam à porta três pancadinhas. Quem
seria? Quem poderia ir procurar o poeta àquela hora? Lembrou-se que tinha umas
encomendas do homem das odes e foi abrir a porta disposto a ouvir resignado a
muito plausível sarabanda que ele lhe vinha naturalmente pregar. Mas, ó pasmo!
mal o poeta abriu a porta, eis que uma sílfide, uma criatura celestial,
vaporosa, fantástica, trajando vestes alvas, nem bem de pano, nem bem de
névoas, uma coisa entre as duas espécies, pés alígeros, rosto sereno e
insinuante, olhos negros e cintilantes, cachos louros do mais leve e delicado
cabelo, a caírem-lhe graciosos pelas espáduas nuas, divinas, como as tuas, ó
Afrodite! eis que uma criatura assim invade o aposento do poeta e, estendendo a
mão, ordena-lhe que feche a porta e tome assento à mesa.
Tito estava assombrado.
Maquinalmente voltou ao seu lugar sem tirar os olhos da visão. Esta sentou-se
defronte dele e começou a brincar com a galga que dava mostras de não usado
contentamento. Passaram-se nisto dez minutos; depois do que a peregrina
singular criatura cravando os seus olhos nos do poeta, perguntou-lhe com uma
doçura de voz nunca ouvida:
— Em que pensas, poeta? Pranteias
algum amor mal parado? Sofres com a injustiça dos homens? Dói-te a desgraça
alheia, ou é a própria que te sombreia a fronte?
Esta indagação era feita de um
modo tão insinuante que Tito sem inquirir o motivo de curiosidade, respondeu
imediatamente:
— Penso na injustiça de Deus.
— É contraditória a expressão;
Deus é a justiça.
— Não é. Se fosse teria repartido
irmãmente a ternura pelos corações e não consentiria que um ardesse inutilmente
pelo outro. O fenômeno da simpatia devia ser sempre recíproco, de maneira que a
mulher não pudesse olhar com frieza para o homem, quando o homem levantasse
olhos de amor para ela.
— Não és tu quem fala, poeta. É o
teu amor-próprio ferido pela má paga do teu afeto. Mas de que te servem as
musas? Entra no santuário da poesia, engolfa-te no seio da inspiração,
esquecerás aí a dor da chaga que o mundo te abriu.
— Coitado de mim, respondeu o
poeta, que tenho a poesia fria, e apagada a inspiração!
— De que precisas tu para dar
vida à poesia e à inspiração?
— Preciso do que me falta... e
falta-me tudo.
— Tudo? És exagerado. Tens o selo
com que Deus te distinguiu dos outros homens e isso te basta. Cismavas em
deixar esta terra?
— É verdade.
— Bem; venho a propósito. Queres
ir comigo?
— Para onde?
— Que importa? Queres vir?
— Quero. Assim me distrairei.
Partiremos amanhã. É por mar, ou por terra?
— Nem amanhã, nem por mar, nem
por terra; mas hoje, e pelo ar.
Tito levantou-se e recuou. A
visão levantou-se também.
— Tens medo? perguntou ela.
— Medo, não, mas...
— Vamos. Faremos uma deliciosa
viagem.
— Vamos.
Não sei se Tito esperava um balão
para a viagem aérea a que o convidava a inesperada visita; mas, o que é certo,
é que os seus olhos se arregalaram prodigiosamente quando viu abrirem-se das
espáduas da visão duas longas e brancas asas que ela começou a agitar e das
quais caía uma poeira de ouro.
— Vamos, disse a visão.
Tito repetiu maquinalmente:
— Vamos!
E ela tomou-o nos braços, subiu
com ele até o teto, que se rasgou, e passaram ambos, visão e poeta. A
tempestade tinha, como por encanto, cessado; estava o céu limpo, transparente,
luminoso, verdadeiramente celeste, enfim. As estrelas fulgiam com a sua melhor luz,
e um luar branco e poético caía sobre os telhados das casas e sobre as flores e
a relva dos campos.
Os dois subiram.
Durou a ascensão algum tempo.
Tito não podia pensar; ia atordoado, e subia sem saber para onde, nem a razão
por quê. Sentia que o vento agitava os cabelos louros da visão, e que eles lhe
batiam docemente na face, do que resultava uma exalação celeste que embriagava
e adormecia. O ar estava puro e fresco. Tito, que se havia distraído algum
tempo da ocupação das musas no estudo das leis físicas, contava que, naquele
subir continuado, breve chegariam a sentir os efeitos da rarefação da
atmosfera. Engano dele! Subiam sempre, e muito, mas a atmosfera conservava-se
sempre a mesma, e quanto mais ele subia melhor respirava.
Isto passou rápido pela mente do
poeta. Como disse, ele não pensava; ia subindo sem olhar para a terra. E para
que olharia para a terra? A visão não podia conduzi-lo senão ao céu.
Em breve começou Tito a ver os
planetas fronte por fronte. Era já sobre a madrugada. Vênus, mais pálida e
loura que de costume, ofuscava as estrelas com o seu clarão e com a sua beleza.
Tito teve um olhar de admiração para a deusa da manhã. Mas subia, subiam
sempre. Os planetas passavam à ilharga do poeta, como se fossem corcéis
desenfreados. Afinal penetraram em uma região inteiramente diversa das que
haviam atravessado naquela assombrosa viagem. Tito sentia expandir-se-lhe a
alma na nova atmosfera. Seria aquilo o céu? O poeta não ousava perguntar, e
mudo esperava o termo da viagem. À proporção que penetravam nessa região ia-se
a alma do poeta rompendo em júbilo; daí a algum tempo entravam em um planeta; a
fada depôs o poeta e começaram a fazer o trajeto a pé.
Caminhando, os objetos, até então
vistos através de um nevoeiro, tomavam aspecto de coisas reais. Tito pôde ver
então que se achava em uma nova terra, a todos os respeitos estranha: o
primeiro aspecto vencia ao que oferece a poética Istambul ou a poética Nápoles.
Mais entravam, porém, mais os objetos tomavam o aspecto da realidade. Assim chegaram
à grande praça onde estavam construídos os reais paços. A habitação régia era,
por assim dizer, uma reunião de todas as ordens arquitetônicas, sem excluir a
chinesa, sendo de notar que esta última fazia não mediana despesa na estrutura
do palácio.
Tito quis sair da ânsia em que
estava por saber em que país acabava de entrar, e aventurou uma pergunta à sua
companheira.
— Estamos no país das Quimeras,
respondeu ela.
— No país das Quimeras?
— Das Quimeras. País para onde
viaja três quartas partes do gênero humano, mas que não se acha consignado nas
tábuas da ciência.
Tito contentou-se com a
explicação. Mas refletiu sobre o caso. Por que motivo iria parar ali? A que era
levado? Estava nisto quando a fada o advertiu de que eram chegados à porta do
palácio. No vestíbulo havia uns vinte ou trinta soldados que fumavam em grosso
cachimbo de escuma do mar, e que se embriagavam com outros tantos padixás, na
contemplação dos novelos de fumo azul e branco que lhe saíam da boca. À entrada
dos dois houve continência militar. Subiram pela grande escadaria, e foram ter
aos andares superiores.
— Vamos falar aos soberanos,
disse a companheira do poeta. Atravessaram muitas salas e galerias. Todas as
paredes, como no poema de Dinis, eram forradas de papel prateado e lantejoulas.
Afinal penetraram na grande sala.
O gênio das bagatelas, de que fala Elpino, estava sentado em um trono de
casquinha, tendo de ornamento dois pavões, um de cada lado. O próprio soberano
tinha por coifa um pavão vivo, atado pelos pés a uma espécie de solidéu, maior
que os dos nossos padres, o qual por sua vez ficava firme na cabeça por meio de
duas largas fitas amarelas, que vinham atar-se debaixo dos reais queixos. Coifa
idêntica adornava a cabeça dos gênios da corte, que correspondem aos viscondes
deste mundo e que cercavam o trono do brilhante rei. Todos aqueles pavões, de
minuto a minuto, armavam-se, apavoneavam-se, e davam os guinchos do costume.
Quando Tito entrou na grande sala
pela mão da visão, houve um murmúrio entre os fidalgos quiméricos. A visão
declarou que ia apresentar um filho da terra. Seguiu-se a cerimônia da
apresentação, que era uma enfiada de cortesias, passagens e outras coisas
quiméricas, sem excluir a formalidade do beija-mão. Não se pense que Tito foi o
único a beijar a mão ao gênio soberano; todos os presentes fizeram o mesmo,
porque, segundo Tito ouviu depois, não se dá naquele país o ato mais
insignificante sem que esta formalidade seja preenchida.
Depois da cerimônia da
apresentação perguntou o soberano ao poeta que tratamento tinha na terra, para
dar-se-lhe cicerone correspondente.
— Eu, disse Tito, tenho, se
tanto, uma triste Mercê.
— Só isso? Pois há de ter o
desprazer de ser acompanhado pelo cicerone comum. Nós temos cá a Senhoria, a
Excelência, a Grandeza, e outras mais; mas, quanto à Mercê, essa, tendo
habitado algum tempo este país, tornou-se tão pouco útil que julguei melhor
despedi-la.
A este tempo a Senhoria e a
Excelência, duas criaturas empertigadas, que se haviam aproximado do poeta,
voltaram-lhe as costas, encolhendo os ombros e deitando-lhe um olhar de través
com a maior expressão de desdém e pouco caso.
Tito quis perguntar à sua
companheira o motivo deste ato daquelas duas quiméricas pessoas; mas a visão
puxou-lhe pelo braço, e fez-lhe ver com um gesto que estava desatendendo ao
Gênio das Bagatelas, cujos sobrolhos se contraíram, como dizem os poetas
antigos que se contraíam os de Júpiter Tonante.
Neste momento entrou um bando de
moçoilas frescas, lépidas, bonitas e louras... oh! mas de um louro que se não
conhece entre nós, os filhos da terra! Entraram elas a correr, com a agilidade
de andorinhas que voam; e depois de apertarem galhofeiramente a mão aos gênios
da corte foram ao Gênio soberano, diante de quem fizeram umas dez ou doze mesuras.
Quem eram aquelas raparigas? O
meu poeta estava de boca aberta. Indagou da sua guia, e soube. Eram as Utopias
e as Quimeras que iam da terra, onde haviam passado a noite na companhia de
alguns homens e mulheres de todas as idades e condições.
As Utopias e as Quimeras foram
festejadas pelo soberano, que se dignou sorrir-lhes e bater-lhes na face. Elas
alegres e risonhas receberam os carinhos reais como coisa que lhes era devida;
e depois de dez ou doze mesuras, repetição das anteriores, foram-se da sala,
não sem abraçarem ou beliscarem o meu poeta, que olhava espantado para elas sem
saber por que se tornara objeto de tanta jovialidade. O seu espanto crescia de
ponto quando ouvia a cada uma delas esta expressão muito usada nos bailes de
máscaras: Eu te conheço!
Depois que saíram todas, o Gênio
fez um sinal, e toda a atenção concentrou-se no soberano, a ver o que ia
sair-lhe dos lábios. A expectativa foi burlada, porque o gracioso soberano
apenas com um gesto indicou ao cicerone comum o misero hóspede que daqui tinha
ido. Seguiu-se a cerimônia da saída, que durou longos minutos, em virtude das
mesuras, cortesias e beija-mão do estilo.
Os três, o poeta, a fada
condutora e o cicerone, passaram à sala da rainha. A real senhora era uma
pessoa digna de atenção a todos os respeitos; era imponente e graciosa; trajava
vestido de gaze e roupa da mesma fazenda, borzeguins de cetim alvo, pedras
finas de todas as espécies e cores, nos braços, no pescoço e na cabeça; na cara
trazia posturas finíssimas, e com tal arte, que parecia haver sido corada pelo
pincel da natureza; dos cabelos recendiam ativos cosméticos e delicados óleos.
Tito não disfarçou a impressão
que lhe causava um todo assim. Voltou-se para a companheira de viagem e
perguntou como se chamava aquela deusa.
— Não a vê? respondeu a fada; não
vê as trezentas raparigas que trabalham em torno dela? Pois então? é a Moda,
cercada de suas trezentas belas, caprichosas filhas.
A estas palavras Tito lembrou-se
do Hissope. Não duvidava já de que estava no país das Quimeras; mas, raciocinou
ele, para que Dinis falasse de algumas destas coisas, é preciso que cá tivesse
vindo e voltasse, como está averiguado. Portanto, não devo recear de cá ficar
morando eternamente. Descansado por este lado, passou a atentar para os
trabalhos das companheiras da rainha; eram umas novas modas que se estavam
arranjando, para vir a este mundo substituir as antigas.
Houve apresentação com o
cerimonial do estilo. Tito estremeceu quando pousou os lábios na mão fina e
macia da soberana; esta não reparou, porque tinha na mão esquerda um psyché,
onde se mirava de momento em momento.
Impetraram os três licença para
continuar a visita do palácio e seguiram pelas galerias e salas do alcáçar.
Cada sala era ocupada por um grupo de pessoas, homens ou mulheres, algumas
vezes mulheres e homens, que se ocupavam nos diferentes misteres de que estavam
incumbidos pela lei do país, ou por ordem arbitrária do soberano. Tito
percorria essas diversas salas com o olhar espantado, estranhando o que via,
aquelas ocupações, aqueles costumes, aqueles caracteres. Em uma das salas um
grupo de cem pessoas ocupava-se em adelgaçar uma massa branca, leve e balofa.
Naturalmente este lugar é a ucharia, pensou Tito; estão preparando alguma
iguaria singular para o almoço do rei. Indagou do cicerone se havia acertado. O
cicerone respondeu:
— Não, senhor; estes homens estão
ocupados em preparar massa cerebral para um certo número de homens de todas as
classes: estadistas, poetas, namorados, etc.; serve também a mulheres. Esta
massa é especialmente para aqueles que, no seu planeta, vivem com verdadeiras
disposições do nosso país, aos quais fazemos presentes deste elemento
constitutivo.
— É massa quimérica?
— Da melhor que se há visto até
hoje.
— Pode ver-se?
O cicerone sorriu-se; chamou o
chefe da sala, a quem pediu um pouco de massa. Este foi com prontidão ao
depósito e tirou uma porção que entregou a Tito. Mal o poeta a tomou das mãos
do chefe desfez-se a massa, como se fora composta de fumo. Tito ficou confuso;
mas o chefe, batendo-lhe no ombro:
— Vá descansado, disse; nós temos
à mão matéria-prima; é da nossa própria atmosfera que nos servimos; e a nossa
atmosfera não se esgota.
Este chefe tinha uma cara
insinuante, mas, como todos os quiméricos, era sujeito a abstrações, de modo
que Tito não pôde arrancar-lhe mais uma palavra, porque ele, ao dizer as
últimas, começou a olhar para o ar e a contemplar o vôo de uma mosca.
Este caso atraiu os companheiros
que se chegaram a ele e mergulharam-se todos na contemplação do alado inseto.
Os três continuaram caminho.
Mais adiante era uma sala onde
muitos quiméricos, à roda de mesas, discutiam os diferentes modos de inspirar
aos diplomatas e diretores deste nosso mundo os pretextos para encher o tempo e
apavorar os espíritos com futilidades e espantalhos. Esses homens tinham ares
de finos e espertos. Havia ordem do soberano para não se entrar naquela sala em
horas de trabalho; um guarda estava à porta. A menor distração daquele
congresso seria considerada uma calamidade pública.
Andou o meu poeta de sala em
sala, de galeria em galeria, aqui, visitando um museu, ali, um trabalho ou um
jogo; teve tempo de ver tudo, de tudo examinar, com atenção e pelo miúdo. Ao
passar pela grande galeria que dava para a praça, viu que o povo, reunido
embaixo das janelas, cercava uma forca. Era uma execução que ia ter lugar.
Crime de morte? perguntou Tito, que tinha a nossa legislação na cabeça. Não,
responderam-lhe, crime de lesa-cortesia. Era um quimérico que havia cometido o crime
de não fazer a tempo e com graça uma continência; este crime é considerado
naquele país como a maior audácia possível e imaginável. O povo quimérico
contemplou a execução como se assistisse a um espetáculo de saltimbancos, entre
aplausos e gritos de prazer.
Entretanto era hora do almoço
real. À mesa do gênio soberano só se sentavam o rei, a rainha, dois ministros,
um médico e a encantadora fada que havia levado o meu poeta àquelas alturas. A
fada, antes de sentar-se à mesa, implorou do rei a mercê de admitir Tito ao
almoço; a resposta foi afirmativa; Tito tomou assento. O almoço foi o mais
sucinto e rápido que é possível imaginar. Durou alguns segundos, depois do que
todos se levantaram, e abriu-se mesa para o jogo das reais pessoas; Tito foi
assistir ao jogo; em roda da sala havia cadeiras, onde estavam sentadas as
Utopias e as Quimeras; às costas dessas cadeiras empertigavam-se os fidalgos
quiméricos, com os seus pavões e as suas vestiduras de escarlate. Tito
aproveitou a ocasião para saber como é que o conheciam aquelas assanhadas
raparigas. Encostou-se a uma cadeira e indagou da Utopia que se achava nesse
lugar. Esta impetrou licença, e depois das formalidades do costume, retirou-se
a uma das salas com o poeta, e aí perguntou-lhe :
— Pois deveras não sabes quem
somos? Não nos conheces?
— Não as conheço, isto é,
conheço-as agora, e isso dá-me verdadeiro pesar, porque quisera tê-las
conhecido há mais tempo.
— Oh! sempre poeta!
— É que deveras são de uma
gentileza sem rival. Mas onde é que me viram?
— Em tua própria casa.
— Oh!
— Não te lembras? À noite,
cansado das lutas do dia, recolhes-te ao aposento, e aí, abrindo velas ao
pensamento, deixas-te ir por um mar sereno e calmo. Nessa viagem acompanham-te
algumas raparigas... somos nós, as Utopias, nós, as Quimeras.
Tito compreendeu afinal uma coisa
que se lhe estava a dizer havia tanto tempo. Sorriu-se, e cravando os seus
belos e namorados olhos nos da Utopia que tinha diante de si, disse:
— Ah! sois vós, é verdade!
Consoladora companhia que me distrai de todas as misérias e pesares. É no seio
de vós que eu enxugo as minhas lágrimas. Ainda bem! Conforta-me ver-vos a todas
de face e embaixo de forma palpável.
— E queres saber, tornou a
Utopia, quem nos leva a todas para tua companhia? Olha, vê.
O poeta voltou a cabeça e viu a
peregrina visão, sua companheira de viagem.
— Ah! é ela! disse o poeta.
— É verdade. É a loura Fantasia,
a companheira desvelada dos que pensam e dos que sentem.
A Fantasia e a Utopia
entrelaçaram-se as mãos e olhavam para Tito. Este, como que enlevado, olhava
para ambas. Durou isto alguns segundos; o poeta quis fazer algumas perguntas,
mas quando ia falar reparou que as duas se haviam tornado mais delgadas e
vaporosas. Articulou alguma coisa; porém, vendo que elas iam ficando cada vez
mais transparentes, e distinguindo-lhes já pouco as feições, soltou estas
palavras: — Então! que é isto? por que se desfazem assim? — Mais e mais as
sombras desapareciam, o poeta correu à sala do jogo; espetáculo idêntico o esperava;
era pavoroso; todas as figuras se desfaziam como se fossem feitas de névoa.
Atônito e palpitante, Tito percorreu algumas galerias e afinal saiu à praça;
todos os objetos estavam sofrendo a mesma transformação. Dentro de pouco Tito
sentiu que lhe faltava apoio aos pés e viu que estava solto no espaço.
Nesta situação soltou um grito de
dor.
Fechou os olhos e deixou-se ir
como se tivesse de encontrar por termo de viagem a morte.
Era na verdade o mais provável.
Passados alguns segundos, Tito abriu os olhos e viu que caía perpendicularmente
sobre um ponto negro que lhe parecia do tamanho de um ovo. O corpo rasgava como
um raio o espaço. O ponto negro cresceu, cresceu, e cresceu até fazer-se do
tamanho de uma esfera. A queda do poeta tinha alguma coisa de diabólica; ele
soltava de vez em quando um gemido; o ar, batendo-lhe nos olhos, obrigava-o a
fechá-los de instante a instante. Afinal, o ponto negro que havia crescido,
continuava a crescer, até aparecer ao poeta com o aspecto da terra. É a terra!
disse Tito consigo.
Creio que não haverá expressão
humana para mostrar a alegria que sentiu aquela alma, perdida no espaço, quando
reconheceu que se aproximava do planeta natal. Curta foi a alegria. Tito
pensou, e pensou bem, que naquela velocidade quando tocasse em terra seria para
nunca mais levantar. Teve um calafrio: viu a morte diante de si, e encomendou a
alma a Deus. Assim foi, foi, ou antes, veio, veio, até que — milagre dos
milagres! — caiu sobre uma praia, de pé, firme como se não houvesse dado aquele
infernal salto.
A primeira impressão, quando se
viu em terra, foi de satisfação; depois tratou de ver em que região do planeta
se achava; podia ter caído na Sibéria ou na China; verificou que se achava a
dois passos de casa. Apressou-se o poeta e voltar aos seus pacíficos lares.
A vela estava gasta; a galga,
estendida sob a mesa, tinha os olhos fitos na porta. Tito entrou e atirou-se
sobre a cama, onde adormeceu, refletindo no que lhe acabava de acontecer.
Desde então Tito possui um olhar
de lince, e diz, à primeira vista, se um homem traz na cabeça miolos ou massa
quimérica. Devo declarar que poucos encontram que não façam provisão desta
última espécie. Diz ele, e tenho razões para crer, que eu entro no número das
pouquíssimas exceções. Em que pese aos meus desafeiçoados, não posso retirar a
minha confiança de um homem que acaba de fazer tão pasmosa viagem, e que pôde
olhar de face o trono cintilante do rei das Bagatelas.
FIM
reescrito a partir de sua primeira versão, publicada
com o mesmo título in A Época 1875
reescrito e republicado,em 1866, com o título
"Uma excursão milagrosa".
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