sexta-feira, 1 de junho de 2012

Arthur Azevedo : extraordinário, mas relegado


a propósito de  novo livro de um grande contista. 

Digo e reitero : a meu juízo, Arthur Azevedo foi um dos melhores contistas  da literatura brasileira de todos os tempos.
Não obstante receber críticas – postumamente, é bom frisar: jamais em sua época --  a  obra de Arthur Azevedo ostenta, segundo eminentes estudiosos, importante papel na formação da literatura brasileira. Edgar Cavalheiro, por exemplo, sentencia  ser  “inegável, porém, que, no ramo que escolheu e cultivou com tanta graça e espírito, ele foi um mestre. Numa terra e numa época em que, no setor da literatura, era de bom tom apresentar-se envolto em roupagens severas ou dramáticas, Arthur de Azevedo escreveu páginas que são pequenos primores de jocosidade. Pintor repentista das pequenas comédias da burguesia brasileira dos fins do Império e inícios da República, nenhum outro o sobrepujou na arte de fixar o aspecto ridículo da vida íntima da sociedade de então, principalmente a de certos círculos da classe média do Rio de Janeiro(...) Era malicioso,mas não sarcástico. Sua ironia não tenciona ferir; apenas provocar o riso, um riso franco, amável, bonacheirão”. Herman Lima ,por sua vez, observa que “digna de nota especial é a contribuição de Arthur Azevedo ao nosso conto do começo do século,tão importante quanto a sua produção teatral diversa e vasta. Duma linguagem simples e correntia,numa forma despretensiosa a que não falta entretanto aquela graça imanente que faz de alguns de seus versos humorísticos verdadeiras obras-primas, o que mais distingue a arte de Arthur Azevedo nos contos é,de par com seu dom de narrador, a exceção que constitui o seu estilo desataviado,num tempo de prosa atormentadae carregada de ‘oropéis’”. Humberto de Campos sustentava que em Arthur Azevedoo não- preciosismo da forma,o aparente descaso pela elevação do assunto ,sem o valor definitivo das altas categorias literárias, fazia dele um amável divulgador  de estórias , casos e situações e um gracioso retratista da vida de uma sociedade”; e no prefácio à edição de Contos cariocas de Arthur Azevedo (1928) registra “(...) foi o contista mais popular de sua época, e é,da sua geração, aquele que ainda hoje é recordado com simpatia mais funda e admiração mais espontânea ... essa despreocupação valeu-lhe a glória que ninguém lhe contestou ou contestará,de tr sido o fixador amável do Rio de Janeiro,no seu período de transição, i. e. no período que registrou a grandeza e a queda da rua do Ouvidor”.

Afinal, a enorme popularidade de que gozou à sua época – tempo em que predominavam no panorama literário brasileiro figuras como Machado de Assis, Coelho Neto, Raul Pompéia, seu irmão Aluisio Azevedo, a ponto inclusive de seus contos serem até mais lidos do que os de Machado, na década final do século XIX e no início do século XX, e lidos pelas diversas classes sociais, etárias e genéricas, por homens e mulheres indistintamente -- tudo isso exige por certo  talento e qualidade , no caso de Azevedo em tipo e forma  muito peculiares,muito característicos, muito especiais ,que não pode ser imputado apenas a circunstâncias de momento (sic) ou a ‘meras narrativas de cunho popularesco’ - com teor pejorativo -- quase como anedotas ou ‘causos’ engraçados, ou apenas porque retratavam pessoas comuns, o habitante e o cotidiano da cidade do Rio de Janeiro, a linguagem das ruas, os caprichos e as vaidades, também as frustrações, as desditas,as contradições da sociedade carioca,por extensão a brasileira, daquele período importante da história nacional ,de transição institucional,política,econômica e social, e de implantação de um novo regime de governo.
Não, Arthur Azevedo – apesar de considerado (pos-mortem )  um autor “superficial”,  “fútil”, e até mesmo “vulgar --  foi muito mais do que um prosaico contador de estórias e histórias, foi um documentarista muito específico do tempo em que viveu. Há na obra de Azevedo um conteúdo de crítica social muito intenso – notoriamente  quanto à escravidão ,assim como,aqui e ali, manifestações de cunho político. Seus textos revelam um arguto observador da vida social, um perspicaz comentarista de comportamentos e sentimentos humanos, um atilado crítico moralista -  existe uma moralidade intrínseca em cada um deles, no retratar a seu modo as comédias e tragédias, os dramas e o burlesco  dos homens não apenas de sua época mas de todas elas; seus protagonistas e personagens são  ‘criaturas de carne e osso’ com que nos deparamos cotidianamente nas ruas de qualquer  meio urbano , criaturas humanas com seus impulsos e bloqueios, seus sentimentos e emoções, suas imperfeições e contradições, suas idiossincrasias e dissimulações, seus defeitos e virtudes.
Azevedo pressentiu e colocou em seus escritos, quer contísticos quer teatrais quer croniquescos, as incisivas transformações pelas quais passava a sociedade do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX -- transformações políticas, econômicas, urbanas, manifestas inclusive nos comportamentos sociais e na própria literatura, na qual a ‘ideologia’ romântica, característica do Romantismo expresso sobretudo por Macedo e Alencar , dava sinais de esgotamento , o eixo da vida social e mesmo conjugal deslocando-se para fora do lar, a rua tornando-se o ambiente primordial da narrativa e da temática quer ficcional quer não-ficcional. Tais mutações foram exemplarmente entrevistas e assimiladas por ele em suas peças, suas crônicas e especificamente em seus contos, impondo em todos os textos, em maior ou menor grau, a transformação da perspectiva romântica em realista – no caso de Azevedo, condimentada esta por irresistíveis doses de humor, ironia e sátira.
Arthur Azevedo constituiu-se no tradutor perfeito de uma cidade não apenas em acelerada transformação, mas em vertiginosa ebulição. Suas narrativas captam e retratam o ambiente social da cidade exatamente na passagem do Império para a República, descrevendo as reações à Abolição, as polêmicas inerentes ao novo regime,a vida do funcionalismo público, o clima cultural, etc. via de regra por meio de protagonistas e personagens caricaturais, per se uma galeria formidável  em sua contística.E tem ele no leitor um interlocutor que também freqüenta as ruas e conhece o cenário, as ocorrências, os personagens, os enredos – e dessa interação origina-se, nasce, forma-se, consolida-se e sedimenta-se sua obra. Nela, o habitante da cidade é retratado em toda sua dimensão humana, inclusive em sua perplexidade e confusão ante os novos tempos e espaços que se abrem e se transmutam, ante as novas relações sociais e comportamentais que se estabelecem com a República.Os textos ficcionais e não-ficcionais de Arthur Azevedo na verdade constituem um significativo painel da própria sociedade brasileira de seu tempo, envolvendo diversos gêneros e criando novas possibilidades de criação literária, como contos e crônicas dramáticas, teatro em verso e prosa, contos em versos ; forneceu a matriz para uma espécie de contística carioca , pois a caracterização dos personagens é sempre de forma a construir o perfil do habitante e da cidade . Seus contos são considerados os introdutores das classes médias na literatura nacional, a oralidade com  papel preponderante nas narrativas -- todos seus escritos, a rigor, se aproximam da representação de uma comédia, muitos  são piadas transcritas (“Sou um contador de histórias e tenho que inventar um conto por semana”). Tudo o que se passava nas ruas ou nas casas lhe forneceu assunto para as histórias.
Em seus escritos, desprovidos de maiores elaborações e floreios de linguagem,  longe de divagações metafísicas ou filosóficas,  emergem a graça e o riso a retratar mais do que as incongruências da sociedade(a brasileira, do entre-séculos), mais do que as contradições e ambigüidades do ser humano(o habitante do Rio de Janeiro),a própria efemeridade do mundo e da vida, o grotesco de comportamentos, ações  e sentimentos,o alegórico das relações sociais e pessoais. Mercê dos expedientes de humor, do anedótico, da comicidade, abordava os mais delicados assuntos das relações humanas sem infligir as chamadas regras do bom senso,sem escandalizar nem ferir susceptibilidades, sem melindrar os leitores de suas crônicas,poemas e contos ou os espectadores de seu teatro.
Talvez muito da crítica – ou descaso – com relação à obra de Arthur Azevedo e à sua qualificação como autor resida, no terreno social-comportamental, parte em sua imagem de ‘iconoclasta’(no sentido de quem ‘ataca crenças estabelecidas ou instituições  ou que é contra certas tradições’) e  de  boêmio – embora integrado àquela “boemia literária”, criativa e produtiva, de que faziam parte ,por exemplo,Coelho Neto,Olavo Bilac, Valentim Magalhães, Emilio de Menezes, Elísio de Carvalho. ;  parte, no terreno da política, a seu exacerbado florianismo,de admiração e defesa incondicionais de Floriano Peixoto--tido como despótico e combatido por praticamente todos os intelectuais da época, alguns como Olavo Bilac e Guimarães Passos-- ele, Azevedo, antes um ativista abolicionista e republicano de primeira hora ; parte, na seara literária propriamente dita, a  seu despojamento estilístico, ao não-‘aprofundamento’ , falta de movimentação narrativa ou de multiplicidade de situações de enredo, à ‘não-seriedade’ de sua temática– e nisso um ledo equívoco de interpretação, porquanto,já mencionado, sua obra contística  (idem a  teatral e a  poética) abriga acentuada crítica social, provocando  reflexão sobre a cidade do Rio de Janeiro e da  sociedade urbana  brasileira do final do século XIX e início do século seguinte. 









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