segunda-feira, 11 de junho de 2012

entre namorados...


um delicioso conto (como todos de Arthur, aliás) a propósito do “dia dos namorados”

Coincidência

Em 13 de março de 1891 o sr. Nóbrega, conceituado negociante da nossa praça, completou quarenta e sete anos de idade e foi passar o dia no Corcovado,levando em sua companhia, além da senhora e duas meninas, o Arthur Caldeira,um bonito rapaz de vinte e um anos, estudante da Escola Politécnica, filho de um bom freguês que o sr. Nóbrega tinha em Paracatu, no estado de Minas.
Rosália , a mais velha das meninas, contava apenas dezessete anos, e estava - sem que os pais o soubessern - apaixonada pelo estudante . Entendia este que o velho provérbio “Amor com amor se paga” era a fórmula mais avisada da justiça humana, e correspondia com ternura à delicada paixão da moça.
Essas inocentes manifestações duravam havia  já três meses, quando Arthur Caldeira recebeu -- naturalmente por artes de Rosália -- um convite para o passeio do Corcovado. Imenso foi o seu prazer, pois com certeza esse passeio lhe proporcionaria ocasião de entender-se categoricamente com ela. 
Assim foi Depois do esplêndido almoço que a família Nóbrega levara de casa e foi alegremente devorado sub tegmine de frondosa figueira brava, o estudante afastou-se um pouco em companhia das meninas, e, sem se importar com a presença da mais nova, que tinha doze anos, fez a Rosália uma declaração em regra, jurando-lhe fidelidade eterna. Ela prestou juramento idêntico, e as mãos apertaram-se fortemente.
E para que esses protestos ficassem gravados de modo que resistissem à  ação destruidora do tempo, Arthur Caldeira armou-se de um canivete, e a pedido de Rosália, abriu a seguinte inscrição no tronco de um ipê, que fora a testemunha discreta e majestosa daquela cena de amor :
ART. E ROS.
13-3-91

Durante todo esse tempo o sr. Nóbrega e sua esposa cochilavam debaixo da figueira .
*
Na volta para a cidade, tanto o pai como a mãe notaram que Arthur e Rosália se namoravam abertamente.
Dona Rita, a esposa do s. Nóbrega, quis chamá-los à  ordem :
- Deixa-os lá, deixa-os lá ! ponderou o marido. Queira Deus que as bichas peguem !  Ele é um bom rapazinho, está ali está formado, e é filho de um homem sério e bastante rico. Onde poderemos encontrar melhor marido para a pequena ?
Dona Rita concordou com o marido --e quando, no largo do Machado, a família, que morava em Botafogo, se separou do estudante, que seguia para a cidade, a boa senhora instou com ele para “aparecer lá por casa”, ir jantar aos domingos, etc .
*
Um mês depois, Arthur Caldeira era noivo de Rosália. O pedido fora feito pelo pai, que viera expressamente de Paracatu, trazido por uma carta do estudante pedindo o seu assentimento à suspirada união.
Marcado que foi o dia do casamento, começu para Arthur e Rosália essa deliciosa e risonha quadra do noivado, pensando na qual mais tarde os maridos com raras exceções se convencem de que realmente o melhor da festa é esperar por ela. 
*
Mas a desgraça não  quis que chegasse para Arthur Caldeira e Rosália Nóbrega o almejado dia da festa.
Em janeiro de 1892, muito pouco tempo antes da época fixada para o casamento, o pobre estudante foi fulminado pela febre amarela, que o matou em dois dias.
Rosália recebeu um golpe tão profundo, sentiu tanto, tanto, a morte do seu noivo, que adoeceu gravemente, e durante dois meses esteve entre a vida e morte. Mas os cuidados da ciência, e ainda mais a ciência dos cuidados, conseguiram vencer a enfermidade e restituir à existência aqueles dezoito anos primaveris e formosos.
*
Nessa idade as grandes dores depressa se deixam absorver pelo espetáculo contínuo da vida, pela renovação incansável e vivificante das coisas... Um ano depois da sua quase  viuvez, Rosália parecia absolutamente consolada; voltavam-lhe as alegrias despreocupadas de outrora; já de novo se comprazia no convívio bulhento das amigas, e ria-se, com o riso sonoro e cristalino das moças .
*
 Não tardou que a imagem de Arthur Caldeira se desvanecesse de todo no seu espírito, e que a substituísse outra --a de um negociante jovem ainda e já bem colocado, que se chamava Artidoro de Lima.
O namoro progrediu com rapidez incrível --e revela dizer que tanto o sr. Nóbrega como dona Rita fizeram o possível para estimulá-lo .
-- Deixemo - los, deixemo –los ! Queira Deus que as bichas peguem !  Ele é um excelente moço, e está muito bem encaminhado. Onde poderemos encontrar melhor marido para a pequena?
*
As bichas pegaram .
O casamento foi marcado para outubro de 1893 :  realizar-se-ia no dia dos anos de Rosália.
Mas sobreveio a revolta de 6 de setembro, e a acordaram todos em esperar pelo restabelecimento  da paz.
*
Entretanto, em princípios de 1894,  Artidoro de  Lima declarou ao seu futuro sogro que estava farto  de esperar pela terminação da revolta : o seu amor nada tinha que ver com a política. Rosália por seu  lado ardia em desejos de se casar.
À vista disso, apressaram-se os preparativos, e em fevereiro Artidoro e Rosália eram marido e  mulher.
*
Quando, no mês seguinte, o governo preveniu à  população do Rio de Janeiro que ia entrar a esquadra legal e dar  e dar um combate decisivo aos revoltos que se achavam no porto, Rosália ficou  bastante contrariada, porque 0o dia do combate coincidia com o aniversário natalício de seu pai, e não  podiam festejar-lhe o meio centenário...
-- Depois, acrescentava ela, que maçada ! é  preciso aprontar malas, sair da cidade...
-- Não, não, não !  obtemperou Artidoro. Não te assustes, meu anjo; o combate, se o houver, o que duvido, não poderá durar mais de duas horas. Não é preciso irmos para muito longe; basta que subamos ao Corcovado.
Rosália estremeceu, e murmurou  :
-- Pois sim.
E no dia 13 foram para o Corcovado.
Rosália encheu-se de melancolia e azedume. Ela estava naturalmente animada pela esperança da felicidade conjugal, pelo sentimento, ainda novo, dos seus deveres de esposa, pela virtude persuasiva ensinada  pelo amor de mãos dadas ao dever; mas a lembrança do pobre Arthur Caldeira voltava agora ao seu espírito com uma insistência implacável.
Ela sentiu-se misteriosamente acusada de ingratidão, e lembrou-se de que, naquela mesma data, naquele mesmo sítio, havia apenas três anos, jurara fidelidade eterna a outro homem ; e, num desejo esquisito de castigar-se, foi procurar o saudoso ipê em cujo tronco o morto gravara uma inscrição indelével...
*
Foi Artidoro  o  primeiro que descobriu  a inscrição.
- Olha, Rosália ... vem cá ... vê que coincidência ! E apontou :
               
ART. E ROS.
13-3-91

- Estiveram aqui, nesta mesma data há três anos, dois namorados que tinham os nossos nomes Este Art. deve ser Artidoro e esta Ros. Deve ser Rosália.
- Talvez não ... pode ser ... e Rosalina...
- Ora adeus! seja quem for, façamos nossa inscrição. Ainda somos namorados.
E tirando um canivete do bolso, com duas incisões profundas transformou 1891 em 1894.
Acabada essa operação, Artidoro ficou muito surpreendido ao ver que Rosália chorava copiosamente.
Nunca percebeu o  motivo dessas lágrimas. Atribuiu-as ao estado interessante em que ela se achava...
*
E a artilharia, ao longe, saudava ruidosamente a  vitória da legalidade.
-- este conto faz parte do livro  ARTHUR AZEVEDO : CENAS DA COMÉDIA HUMANA -- contos em claves temáticas 

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