quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013
Espelhos : o Rio de Janeiro por quatro escritores
O aniversário da cidade neste 1º.
de março, oferece excelente oportunidade
para, em torno de quatro obras sobre o Rio de Janeiro, tecer um exercício de reflexões,ilações e
interações,vis a vis, entre quatro de seus mais representativos escritores e
quatro de suas obras.
A alma encantadora das ruas,, de João
do Rio; , Memórias de um sargento de
milícias,, de Manuel Antonio de Almeida;
Casa Velha, de Machado de Assis;
Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto -- a cidade enfocada sob as lentes e as letras de escritores que podem ser considerados da própria alma, geográfica,urbana,social,cultural, do Rio de Janeiro.
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Caso exemplar de um conjunto que abre possibilidades de formulação de interessantes estudos e
reflexões sobre interações entre as peças que o compõem. A rigor, mostra muito
mais do que o geográfico-urbano-espacial elo comum entre o Rio e notáveis
literatos: traz outros elementos de relações, encadeamentos e ilações -- estas
tanto de identificação quanto de
contraposição -- entre as quatro obras, seus autores e... seus personagens. Atente-se pelo
conteúdo de cada um dos livros, per
se, e pelo que abrigam de elementos referenciais em seu conjunto : neste,
surgem e emergem elementos
excepcionalmente significativos, a propiciar a montagem de um verdadeiro jogo
de referências cruzadas e referências
remissivas.
Qual espelhos que
ao mesmo tempo em que refletem ‘invertem’ imagens, as obras em tela guardam e
mantêm entre si identidades e contraposições, similaridades e
contrapontos,intertextualidades e cotejamentos.(teriam os idealizadores deste conjunto
inicial da Coleção vislumbrado essas interações de atores e obras,
e o concebido sob esse approach ?....)
Primeiramente, vale observar que, sob a órbita do cenário
carioca da segunda metade do século XIX e duas primeiras décadas do século
XX brasileira, os quatro livros dados a público guardam,entre cada um dos
escritores de cada uma das obras, o importante vínculo de encadeamento
sequencial de ciclos cruciais da
historiografia literária brasileira , a saber: Memórias
de um sargento de milícias como
exemplar do Romantismo ( abalizadas análises projetem a obra de Manuel Antonio de Almeida na verdade como um antecipador do Realismo) ;
Casa Velha, como (especial) representante do Realismo
(malgrado,não apenas Machado de Assis
poder ser considerado, e o é,acima de todos os ciclos e rótulos e chancelas,
como ainda a interpretação deflagrada
pela crítica e ensaísta Lucia Miguel-Pereira em Machado de Assis: Casa Velha,1944, interpretação equivocada e
depois revisada e corrigida, de ter sido a obra escrita muito antes de 1885,
quando foi concretamente publicada).; Triste
fim de Policarpo Quaresma,romance expoente do Prémodernismo,de que Lima
Barreto foi inconteste epígono, de resto ciclo que também abrigou João do Rio e
sua ode à "alma encantadora das ruas"-- obra que,nesta coleção,
assume, a meu estrito juízo, um papel
bastante peculiar,qual uma espécie de 'abertura do pano', ou de 'intróito ao
ambiente', como que uma 'apresentadora' do cenário urbano onde se desenrolam as
histórias e tramas narradas nos outros
três livros.
A par de ilações concretas de cunho intelectual e
literário entre os escritores e as obras em tela, mencionemos
a existência efetiva de relações de ordem pessoal – amistosas, num caso;
de franca antipatia mútua,em outro :
enquanto Manuel Antonio de Almeida e Machado de Assis guardavam excelente
relacionamento e até afinidades afetivas
entre si (mas também marcantes ilações literárias, como se verá)– Almeida,.além
de ter sido chefe de Machado na oficina
da Imprensa Nacional,iniciando-o na arte e atividade de tipografia, introduziu-o
na Sociedade Petalógica e no seleto círculo intelectual em torno de
Paula Brito e foi seu grande incentivador para o fazer literatura; Machado,
inclusive,dedicou a ele o (importantíssimo) artigo “O jornal e o livro”,
publicado em janeiro 1859 (ele, com menos de 19 anos e meio) no Correio Mercantil – de
outro lado, Lima Barreto e João do Rio se antegonizavam, nutriam forte
animosidade um pelo outro.E entre Machado e João do Rio deu-se curiosa episódio : Machado nunca respondeu ao
questionário que,em 1899, João lhe submetera
para a coletânea, de entrevistas com diversos escritores, O momento literário, e acabou não
aparecendo – não se sabe até hoje porque – na obra, publicada em 1904..
Em outro viés – aqui de natureza digamos ‘filosófica’ --
em Machado de Assis e Lima Barreto as diferenças e divergências entre ambos
escondem proximidades e até mesmo identidades bastante significativas (veiculei
estudo a respeito, exatamente com esse
título, “Diferentes, divergentes, mas
próximos muito próximos”, no qual
promulgo Lima Barreto e Machado de Assis como verdadeiros, natos, ‘parentes
literários’. Ainda que bastante diferentes, ambos muito próximos de várias
maneiras – essencialmente semelhantes em concepções filosóficas, temas,
influências, pontos de vista,mesmo que sob formas,modos e discursos distintos.
De modo convergente, mas de forma
divergente, analisaram os cenários políticos, históricos,institucionais,sociais,culturais
de suas épocas e a existência do homem --: Machado, privilegiando as nuances,
dissecando-o em sua essência ,revelando sutilezas, contradições e ambigüidades
psicológicas; Lima, sem linhas e focos enviezados, desnudando suas fraquezas,
insuficiências, submissões, condições sociais. Se Machado inaugurou o
psicologismo na ficção brasileira, Lima introduziu o tema da
incomunicabilidade, do isolamento existencial e social.)
Por outro lado, notáveis – e sem o serem inusitadas ou
surpreendentes - são as
intertextualidades, quer de interações quer de contraposições, explícitas ou=implícitas,
entre as quatro obras e os quatro autores. ’Sob um viés, Memórias de um sargento de milícias irradia genericamente para Casa Velha e para Triste fim de Policarpo Quaresma um vetor de estado e posturas de
autoritarismo, concreto ou latente: o autoritarismo ditatorial de Vidigal, em Memórias... é do mesmo naipe do de Floriano,como tratado em Policarpo Quaresma – de que aliás é o personagem
principal, sem dúvida – e de outro tom no autoritarismo doméstico,familiar de
d. Antonia em Casa Velha.
Leonardo Filho, Lalau e Policarpo Quaresma, cada um a
seus modo, feitio e circunstâncias, são personagens que reagem a pressões, por
vezes intoleráveis, de uma sociedade dominadora, patriarcal, ou de um ambiente
matriarcal(como em Casa Velha ) – de
resto, também o que se dá com os
personagens de Lima Barreto, no geral de sua ficção : Leonardo Filho e
Policarpo agem, mas sofrem as sanções da sociedade e do sistema político --
para o primeiro,ainda colonial; para o outro, já republicano -- que os sufocam
e ferem; Lalau, de um imperial âmbito
familiar,doméstico, e de esfera
social.
Quer em Memórias de
um sargento de milícias, em
Casa Velha , quer em
Triste fim de Policarpo Quaresma,
personagens, situações,tramas – e os autores – ‘subjugados’ ao
Estado,onipresente, seja “no tempo do rei”, seja ‘sob o manto imperial’(em
1839),seja sob a ‘mão pesada da República’.
Não chego a dizer e sustentar que Memórias de um sargento de milícias e
Manuel Antonio de Almeida sejam a obra e o autor capitais, centrais, deste
conjunto, mas podem ser vistos como um pólo gerador de eixos de ilações e
recorrências com as demais obras e autores. Antonio de Almeida e sua obra -- emblemática
de uma inflexão temática, tramática e estilística no romantismo
literário brasileiro -- ‘interagem’ com Machado de Assis não só na antecipação do Realismo, mas
também, e especificamente,no que Memórias
de um sargento de milícias --‘anárquica’, ‘picaresca’(conotação, na
verdade, cunhada por Mario de Andrade ,
é questionada por Antonio Candido,em seu primoroso ensaio “Dialética da
malandragem”, para quem Leonardo Filho
antes de ser um ‘pícaro’ é, sim, o primeiro malandro da literatura brasileira .
No entanto, para ‘simplificar’ e evitar estender o que não é propósito deste
comentário, aceitemos e adotemos essa
designação mesmo.) -- prenuncia Memórias
póstumas de Brás Cubas (1881)– ‘inovadora’, ‘revolucionária’, marco da
inflexão machadiana e de rito de passagem para o Realismo literário
brasileiro,e da qual – convém notar - Casa
Velha(1885),na produção romanesca machadiana, é seqüente.
Memórias de um sargento de
milícias contrasta
com a ficção brasileira do tempo – como Casa
Velha difere, no enfoque e no tom e timbre, da ficção realista de sua época
e inclusive, e em especial, das obras romanescas de Machado de Assis a partir
da década de 1880 (Memórias póstumas de
Brás Cubas; Quincas Borba; Dom Casmurro; Esaú e Jacó; Memorial de Ayres)
“O tempo do rei’, i.e. de d. João VI, em que se dá a
história de Memórias de um sargento de milícias, é citado e adquire significância especial em Casa Velha , no que
determina como fulcro inicial na
dinâmica da trama a intenção do padre-narrador em escrever a história de Pedro
I, inspirado numa Memória de d. João VI,de autoria do pde. Luís Gonçalves dos Santos,
o pde.Perereca. Vale dizer, a obra que o cônego em Casa
Velha propõe-se a
escrever é,no âmbito ficcional, ‘decorrente’ da vivência no tempo em que
decorre Memórias de
um sargento de milícias.: nesta, a estrutura da trama,
inerente a história política entre 1808 e 1822, faz o pano de fundo histórico da obra de Manuel
Antonio de Almeida terminar onde começa
o da obra de Machado de Assis.
Mais do que ‘picaresca’[sic] ou outra conotação que se lhe atribua, Memórias...
é antes de tudo, um romance social – como aliás são os de Lima Barreto. Mas é também uma história do amor de Leonardo
Filho por Luisinha – esta, ao contrário, de Lalau, de Casa Velha, e de certo modo de Olga, de Policarpo Quaresma, é
mocinha burguesa, com herança e meneios dissimulados. A obra de Antonio de
Almeida também retrata uma família – Leonardo Filho, seu pai e sua mãe,
aliás o núcleo central do elenco de
protagonistas, como o são em
Casa Velha d.
Antonia,Lalau e Félix. Na obra de Machado de Assis há a contraposição ao mundo
patriarcal representada pela figura de d. Antonia, e em dada escala por Lalau,
não de todo submissa às regras sociais (embora de comportamento dentro da
‘ordem’); em Memórias de
um sargento de milícias personalizada essa contraposição,e confrontante com a ordem
estabelecida, por Leonardo Filho: ele e Lalau são dotados, cada um per se, de elementos simbólicos,
como personagens –representantes das
classes não-dirigentes [e caberia aqui
uma especulação- claro que numa escala ‘surreal’ : Lalau poderia se interessar,e vice-versa, por
Leonardo?...]
Por sua vez, tanto Memórias
de um sargento de milícias quanto
Triste fim de Policarpo Quaresma, talvez com sinais invertidos, representam
metáforas sobre o destino do Brasil como
Nação. A impressão de realidade comunicada pelas obras decorre de uma visão
mais profunda, embora instintiva, da função, ou "destino" das pessoas
naquelas sociedades; Manuel Antônio, guardadas as devidas proporções,
mantém em comum com os autores
realistas: a capacidade de intuir, além dos fragmentos descritos, certos
princípios constitutivos da sociedade --exatamente como Lima Barreto..
Ambas as obras e seus protagonistas como veículos de hilariantes sátiras
sócio-políticas, das instituições, Policarpo Quaresma como uma espécie de Leonardo Filho ao contrário : se aquele é modelo do patriota, este é o antipatriota.
Enquanto Leonardo Filho sofre a repressão de uma sociedade forte,preocupada com
a ordem pública, Policarpo convence-se
da necessidade de um governo forte -- o que o leva a apelar ao poder de
Floriano Peixoto e alistar-se no exército florianista.
No geral e em essência, o universo dos personagens da
obra de Antonio de Almeida – empregados, subempregados, desempregados,
biscateiros; destituídos, marginalizados, etc – é o universo ficcional de toda
a obra de Lima Barreto.
Os dois autores, ‘contestadores’ da ordem – não apenas
numa,digamos, ideologia de suas respectivas tramas e temas ficcionais, mas
também na forma literária: as escrita e
linguagem ficcional imprimidas em Memórias.guarda
identidades com as escrita,estilo e linguagem literária de Lima Barreto, ambas
coloquiais,despojadas,fluentes,lastreadas na oralidade.(“antinefelibatas”, segundo
Lima).
Em Triste fim de
Policarpo Quaresma – como de resto
nos demais romances e novelas
barretianos (Recordações do escrivão
Isaias Caminha e Morte e vida de M.J.
Gonzaga de Sá; em Clara dos Anjos)
– há um pathos trágico, da derrota
final de Policarpo; em Memórias de
um sargento de milícias , ao contrário, dá-se um aparente pathos
‘épico’, de vitória, Leonardo Filho feito por fim sargento de milícias
Se Leonardo Filho é um ‘herói atuante’, picaresco [ sic : conservemos a conotação ‘picaresca’,vá lá...] , ‘thorminiano’ (de
Lazarillo de Thormes), Policarpo (bem como Isaias Caminha – e similarmente ao
machadiano ‘homem de espírito’) é um
autêntico ‘herói carlyleano’,um ‘herói solitário’, ‘intelectual’ lyleano’– per se
um flâneur. Incorporado de Carlyle
(uma das maiores influências intelectuais em Lima), o flâneur barretiano – foi Lima o introdutor desta figura na literatura
brasileira – que é um flâneur dramático,debilitado, andarilho
decadente, está no flaneurismo ,de perfil e atuação completamente
contrários, de João do Rio, em seus freqüentar e retratar as ruas da cidade.
Identificação e ‘entrocamento’ entre Lima e João – não
obstante as antipatia e animosidade de
um pelo outro no campo pessoal -- que
não se dá apenas nesse terreno subjetivo de comportamento social mas também em
vívidos aspectos comuns da realidade de origem e de vivência de cada um.
Ambos naturais e
falecidos no mesmo Rio de Janeiro – João do Rio nascido em 1880, Lima Barreto
em 1881(aliás, ano de publicação de Brás
Cubas,marco ficcional machadiano); João, morto em 1921, Lima em 1922 : um
ano a separá-los em seus nascimentos e mortes – Lima oriundo de família
modesta, de funcionário público empregado pela Monarquia, amante de seus
‘adoráveis subúrbios’,rebelde e automarginalizado; João, de família de classe
média, abolicionista,positivista, republicana, dândi integrando-se
gradativamente às altas esferas da sociedade e às elites ;
os dois vividos na mesma cidade,então em ebulição, pela pretensa
modernização, ambos sob a mesma República, João, entusiasta incondicional,
Lima, crítico visceral.
João do Rio, sempre atuando na ‘imprensa burguesa’, em
grandes jornais,prestigiado e famoso, foi até mesmo empresário jornalístico;;
Lima Barreto, embora iniciando no portentoso e
poderoso Correio da Manhã
(acida e demolidoramente criticado em Recordações
do escrivão Isaias Caminha—aliás, também João do Rio, impiedosamente
satirizado pela “futilidade de sua pose”), sempre preferiu a imprensa libertária, alternativa,
contestadora.. O João cronista, autêntico seguidor da ‘arte das transições’ e
da ‘circularidade na crônica’ de Machado de Assis (espécie de marca registrada,
entre outras características marcantes, a “arte das transições” faz parte
da própria forma narrativa,, unindo tópicos aparentemente distintos, um
parecendo não ter nada a ver com outro, mas que justapostos oferecem um
resultado surpreendente,cujo trajeto é
‘amenizado’ para os leitor , primeiro desviando-o do tema principal, depois
retornando e reintegrando-o,numa espiral
muitas vezes nem percebida de todo) : Lima, praticante consciente
de um novo estilo, contundente,
fomentador,para não dizer criador, da crônica contemporânea. João do Rio,
criador do colunismo social, um olhar no mundanismo, antagoniza e confronta
Lima Barreto, comentarista político, sempre no debruçar nos aspectos sociais.
Mas, embora dotados de ideologias, posturas, visões e
interpretações nada convergentes, ambos profundamente interessados na cidade e
no seu habitante.
É nesse sentido e com essa índole que João do Rio
registra, apregoa, expõe, dissemina e exalta a
“alma encantadora das ruas” da cidade – que por sua vez está também nos
becos,ruelas,ladeiras, por onde Leonardo Filho e os personagens transitam
‘picarescamente’[sic] na obra de Manuel
Antonio de Almeida e onde Lima Barreto constrói e ambienta todas suas tramas
ficcionais. Os mesmos contingentes
sociais da cidade povoam literariamente as obras dos três escritores.
Obras e autores a exibirem exemplos claros da pujança literária do Rio
de Janeiro, a extraordinária capacidade criativa de alguns de seus mais
importantes escritores – conjunto,este, que oferece a oportunidade de tantos
significativos cortes analíticos, tendentes,por extensão,a inspirar e prover
estudo literário de maior alcance e aprofundamentos e prospecções mais
alentadas (que de resto intento,em seqüência,
vir a fazer em ensaio específico ).
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