quarta-feira, 20 de novembro de 2013
Machado de Assis e a “consciência negra” -- pelo 20 novembro
- para dirimir todos os equívocos acerca de
uma suposta,absurda ‘alienação’ à
questão da negritude
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Machado de Assis nunca deixou de
exprimir seu mais absoluto horror à escravatura – fosse como funcionário da Diretoria da Agricultura do
Ministério da Agricultura (órgão que tratava da política de terras e da
aplicação da Lei do Ventre Livre, de 1871), na qual emitiu centenas de pareceres e réplicas no
sentido de fazer cumprir a Lei e o preceito de liberdade para os filhos de
escravos nascidos , fosse em muitos artigos e crônicas e,em especial, em
romances e contos. Exatamente ao contrário da equivocada e distorcida
interpretação --que, como toda interpretação, é uma ‘leitura’,sujeita pois a
melhor avaliação e até mesmo contestação --difundida ao longo dos anos,no
sentido de não ter ele se integrado à causa abolicionista (sic) nem ter inserido o
negro, ou a negritude,ou a condição do negro, em seus escritos, nem ter nenhum
‘herói negro’ entre os protagonistas de sua ficção, como se isso fornecesse
convincente e taxativo certificado de consciência política , como se fosse
elemento imprescindível na construção de romances e contos de qualidade. Os
detratores teimam em julgar o homem com base nos raramente compreendidos e
assimilados artifícios do ficcionista e do cronista – ainda mais quando este
utiliza ad nauseam os recursos da
sutileza, do subterfúgio, da dissimulação.
Além de tudo, não se queira exigir de
Machado uma postura – a mesma, p.ex., de
abolicionistas (muitos deles seus amigos) , de outra verve e atitude –
de militância ativa, discursiva, panfletária : nada disso fazia parte de sua
natureza,e discrição aliás foi o que sempre ostentou na vida e na própria
escrita literária.
Machado fez da escravatura objeto
crítico – por vezes desenhada pelas ‘entrelinhas’, por vezes direta, nada
oblíqua ou dissimulada -- de crônicas,
de poemas, de peças teatrais, de contos,
além de torná-la pano de fundo de alguns
romances, tanto os primeiros como aqueles pós-1880. Já é mais do que
tempo de obrigatória releitura da equivocadissima omissão machadiana em relação
à escravidão e às relações inter-raciais no Brasil do século XIX , de seu
absurdamente propalado “aburguesamento”
e de “denegação das origens” em sua
obra.
A tese da ‘alienação’ machadiana
desmorona ao se examinar o naipe de cinco contundentes contos em que a “iníqua
escravidão” é exibida criticamente, nas linhas e entrelinhas, com todos seus
horrores; é solapada ao se ler,por exemplo, 17 crônicas(em 1864, 1865,1876,1877,1878,1883,1885,1887,1888,1893,
1897); perde vigor ao se deparar com os
poemas “Sabina”(1875) e “13 de maio”(1888) , ou ao conhecer a crítica teatral à
peça “Mãe”(1860), de José de Alencar, e o texto “O teatro de José de
Alencar”(1866); além das referências,citações,comentários e verdadeiros libelos
expostos na novela Casa Velha(1885) e nos
romances Ressurreição (1872),Helena(176),Iaiá Garcia(1878),Memórias
póstumas de Brás Cubas(1881), Quincas
Borba(1891),Dom Casmurro(1899) –
observando-se o quanto o processo histórico que resultou da lei de 1871, assim
como suas conseqüências,
encontra-se no cerne da concepção
desses seis romances -- Esaú e Jacó(1904) e no derradeiro Memorial de Aires(1908) – com a
encenação da decadência e extinção da própria escravocracia, personalizada no
Barão de Santa-Pia,sob uma narrativa revestida de contundente historicidade e ,
como o condizente grand finale da obra de um portentoso escritor, finalizada pela
mensagem ressaltando o papel político da literatura como guardiã dos fatos
passados e da memória coletiva de um país
A crônica, até mesmo por sua própria
natureza de dirigir-se diretamente ao
público-leitor, na verdade foi a seara onde Machado melhor e mais clara e
veementemente expressou sua implacável
crítica ao escravagismo Em algumas delas, escritas com sua peculiar ironia
ácida e cortante , evidencia-se a crítica machadiana à hipocrisia política,
manifesta naqueles parlamentares que
intitulavam-se abolicionistas mas votavam sempre a favor dos senhores – o que
exibe,sob outro viés, a inquestionável atualidade de Machado [neste particular,
aliás, convém saber – como ressalta o historiador José Murilo de Carvalho, in D. Pedro II,2007 – que os políticos de
todos os partidos ,até mesmo os liberais e os republicanos, não se opunham à escravidão].
Na verdade, e sob o espectro mais
geral, Machado foi um crítico contundente da sociedade e das instituições
brasileiras, e escreveu muito sobre política, e até mesmo sobre economia. Tinha,sim
senhor, opiniões políticas — era um
monarquista liberal, não apoiava a República -- e é possível observar a política brasileira
de sua época através de seu olhar literário. Raymundo Faoro (em A pirâmide e o trapézio) sentencia que
pode -se vislumbrar toda a sociedade brasileira do século XIX na obra de Machado : tanto na ficção quanto na
não-ficção, arrancou da História a própria substância de suas narrativas e
textos , utilizando uma série de elementos políticos -- escravidão, liberdade,
golpe de Estado, censura,aparelho policial, autocracia
absolutista,totalitarismo, etc – na elaboração,em sua escritura literária, de uma crítica da ideologia brasileira e de uma
teoria política avançada, a qual no
campo dos estudos literários não foi adequadamente percebida pelos especialistas.
Há de se enfatizar ainda que, a par de outros aspectos, uma das grandes
preocupações de Machado, uma espécie de linha-mestra, fulcro e fio condutor
de sua produção não-ficcional
centrava-se na questão da identidade
nacional — preocupação expressa claramente nos
ensaios “O passado, o presente e o futuro da literatura” (ainda em
1858), “Instinto de nacionalidade”(de
1873) e “Nova geração”(1879) e na essência de seus artigos e crônicas.
Em outro viés, justamente os recursos da ficção literária, sempre propícia
a esse fim, foram os instrumentos que lhe permitiram expressar com nitidez seu
total e visceral repúdio ao sistema escravocrata do Brasil do século XIX. Por
meio de alguns de seus contos, é possível observar as relações
inter-raciais de sua época através do olhar literário, abordando as tensas relações,inclusive as de ordem
afetiva e sexual, entre os membros da família patriarcal típica do século XIX e
seus criados negros e abrigando trama,ambiência, personagens e ‘ideologia’
inerentes à questão escravagista.
Importante notar que se o tema é pouco,
ou apenas ‘tangencialmente’ e superficialmente tratado nas obras do período
pré-Abolição, depois adquire tamanho vigor temático, tramático, narrativo e de
linguagem , que induzem a considerar uma espécie de ‘desforra’ de Machado quanto a uma questão que não pudera até então
abordar como merecia, e como ele almejava. Com efeito, no período pós-1888, vale
dizer já implementada a Abolição, as
coisas podiam ser ditas mais clara e contundentemente, e a tal,
Machado – com sua plena consciência histórica,política e ideológica --
não se furtou.
Ficção e realidade, ficção e história, ficção e sociedade brasileira
constituem fulcros sempre presentes na obra machadiana. Em boa parte de sua ficção e da não-ficção Machado oferece
ao leitor uma interpretação satírica, por vezes alegórica, desnudando mitos e certezas, aparências e
disfarces, dilemas e mentiras -- sob o mesmo clamor crítico-satírico de seu
olhar ,por vezes direto e transparente,por vezes machadianamente oblíquo e
dissimulado, feito testemunho
incomparável sobre a vida política e
institucional brasileira do século XIX.
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