terça-feira, 12 de novembro de 2013
para os que agora postulam a UNICAMP (cujo vestibular ora se realiza)-- mas para todos os vestibulandos e universitários
em torno de Capitu e o
exercício machadiano da dúvida.
Machado
sempre cultivou a dúvida como instrumento de reflexão, e evitava o maniqueísmo
de personagens por não aflorar os questionamentos.. Uma das expressões de sua
evolução literária foi a narração. O narrador machadiano muda. Existem as
expressões cunhadas no estudo machadiano do narrador confiável e do narrador
não-confiável; o narrador não-confiável se sobressaindo a partir da segunda
fase, iniciada em 1880. Esse tipo de narrador é quem coloca dúvidas sobre as
coisas. Nesse particular, costuma-se conferir importância desmesurada àquela
grande questão do romance Dom Casmurro: Capitu traiu ou não traiu?
– o que é absolutamente descartável e desprezível. E aqui peço licença para
abrir um longo parênteses e me estender nesse assunto, que é importante para
caracterizar um elemento fundamental , um dos fulcros capitais de toda a ficção
machadiana . A tola discussão se Capitu traiu ou não traiu é o que menos -- na
verdade,nada – importa :Machado faz de Dom
Casmurro -- a meu juízo, a maior obra da literatura brasileira, anos-luz
acima de qualquer outra, comparável às maiores obras-primas da literatura
universal -- um transcendental exercício da dúvida, um ensaio sobre a dúvida,
que de resto permeia toda sua ficção : evoca-se,nesse romance, o 'shakespearianismo' [sic : neologismo
meu...] do ciúme e traição a la Otelo \Desdêmona, mas o que existe mesmo, assim entendo,é
uma conotação 'hamletiana', vale dizer o 'ser ou não ser', que seria traduzido,
sob a égide do exercício machadiano da dúvida,pelo 'traiu ou não traiu'
inerente a Capitu -- aliás, a mais complexa e bem construída protagonista
feminina da literatura brasileira , a suma da mulher machadiana criada e
fomentada em toda sua ficção . Nesse ‘teor hamletiano’ reside toda a ficção
machadiana, mormente na seara contística : é o 'fez\nãofez',''disse\não disse',
' saiu\não saiu', 'roubou\não roubou', 'recaiu\não recaiu' (caso do primoroso
conto "Singular ocorrência"), e por aí vai. E o narrador é o agente
dessas dúvidas .Examinado, ou lido, pela ótica, ou na órbita do ciúme
--'oteliano': e Shakespeare foi a maior
influência sobre Machado, suas referência e citação prediletas, mil vezes
referenciado em contos e crônicas -- Capitu é julgada infiel pelo narrador
Bentinho, um ciumento nato e hereditário,doentio,e dissimulado -- e aqui entra
outra grande influência de Machado : Freud , pois fomenta a pseudo-traição de
Capitu como processo de transferência de sua atração pela mulher de
Escobar. Bentinho é o narrador da história . e aqui chegamos ao
âmago da coisa, no âmbito da análise literária, que creio 'mata' a questão : o
narrador-em –primeira- pessoa machadiano, mormente pós-1880 é um narrador
não-confiável, que de resto Machado adotou em muitos dos textos ficcionais
desse período -- justo os mais importantes e impactantes -- ao contrário do
narrador confiável de antes, que se expressa pelo chamado narrador-em
terceira-pessoa (embora Machado tenha também criado um ‘falso’ narrador-em-terceira-pessoa,
mas isso faz parte de outra digressão) . Se o narrador de Dom Casmurro fosse este, distanciado e isento tanto quanto possível, haveria campo para se
cogitar de Capitu infiel, adúltera , mas não : sendo em primeira-pessoa, nada a
declarar, ou melhor nada a discutir. Dom
Casmurro surgiu cerca de 3 ou 4 anos depois de Madame Bovary, de Flaubert, e de O primo Basilio, de Eça de Queiroz, dois 'parentes' sanguíneos
,literariamente, do romance de Machado, mas neles o narrador –em- terceira-pessoa
não deixa dúvidas quanto à infidelidade de Ema Bovary e de Luisa , que são
personagens 'chapados',definidos, mulheres praticantes nitidamente da
infidelidade --não cabe aqui discutir quais os motivos que as levaram, ainda
que saibamos ter sido o abandono por parte dos maridos ou a insatisfação com o
casamento, etc : aliás, a infidelidade que Machado insinua em suas
protagonistas, ao longo de sua ficção, é exatamente motivada ou gerada por esse
comportamento dos homens, vide como exemplo emblemático disso o conto "Uma
partida',neste livro que ora publico. Capitu não, não é nada 'chapada', é
primorosamente construída como figura literária , sua grandeza ficcional é
comparável á de Ana Karenina, e por aí vai.
Machado
ao longo de sua ficção levantava ,incentivava, insuflava e cultuava todas essas
dúvidas,praticava quase que permanentemente esse exercício, e as colocava no leitor. Então, ao mesmo
tempo em que Machado
moldava ,e mutava, sua trama e seus
protagonistas, também moldava e mutava narradores e, conseqüentemente,
leitores. Esse culto ao questionamento passou para o leitor, que começou a
ler,ou pelo menos deveria ler – o que é mais do válido para o leitor de hoje,
também -- as histórias de Machado de forma
diferente. E nisso está plenamente demonstrada a genialidade de um autor : na
evolução literária de Machado, alteram-se formas e ritmos narrativos
(condimentados de ironia e humor,adquirem um tom mais coloquial e de certa
forma intimista), transformam-se protagonistas, transmutam-se narradores e
leitores. Mutações e transformações, dos protagonistas , que se manifestam
também em transmutação do narrador e da
voz narrativa e a criação de um ‘novo’
leitor, o leitor- modelo em contraponto ao leitor-empírico. Machado construiu
em seu texto ,e por meio dele, um novo “leitor-modelo” — definido este
conforme a conceituação de “leitor-modelo’ e “leitor-empírico” de Umberto Eco.
Machado formou seus leitores recorrendo a estratégias
temáticas,tramáticas,narrativas,estilísticas que ,como poucos, tinha e sabia
usar -- entre essas estratégias ,as digressões,fragmentações
narrativas,retardamentos de fatos anunciados ou prometidos ao leitor,
metamorfoses de vozes narrativas, de forma e de linguagem .Machado
descondicionou o leitor empírico do leitor-modelo, como ninguém na literatura
brasileira, 'desconstruiu' essa relação,
embora via de regra seja ela utilizada para que o leitor chegue aonde o autor
deseja. Contudo, não satisfeito,na
esteira desse 'dissídio' fez o leitor(o empírico) oscilar em
"grave"-- que espera algo mais do que um 'simples texto', ou um 'puro
romance', ou uma 'obra correta',um leitor que deseja reflexões de caráter mais
realista-- e "frívolo"-- que espera impactos e emoções no texto ou na
obra,um leitor de tipo romântico ; ora
graves ora frívolos, esses leitores são por assim dizer 'transportados' para
dentro dos romances e para a maioria dos contos pós-1880 : na obra machadiana, o leitor empírico é o
‘frívolo’, e ‘grave’ é o leitor-modelo.
Até o final da década de 1870, os
romances e contos , atendiam ao leitor empírico\frívolo , como aliás não poderia deixar de ser, condicionado e formado no âmbito do
Romantismo e seus valores ; ao passo que
o grave mantinha-se em ‘surdina’.
As metamorfose ao longo do tempo, a partir da década de 1860, deram-se
concomitantes : na medida da evolução literária machadiana,o leitor
empírico\frívolo vai ‘cedendo espaço’ ao leitor-modelo (inclusive um
novo,criado por Machado)\grave, ao mesmo tempo em Machado 'camufla'
as diferenças existentes entre
injunções ficcionais e reais ,incentiva o leitor a acreditar no fictício,ou
embuste\artimanha, e o induz a ilusões interpretativas, simplesmente fomentando
um narrador de pouca,ou nenhuma, confiabilidade, uma espécie de 'narrador
volúvel' que habita e conduz muitos de seus contos. E o leitor situa-se como um
‘espelho’ desse narrador.No fim , ainda que sob o controle do autor, ou do
narrador cabe ao leitor,quase que
exclusivamente, o acesso a unidade
dentro da imensa e complexa obra ficcional de Machado – que nisso parece
contrariar Nietzsche\Zaratustra : “Alguém
que conhece o leitor, nada fará por ele...”
Vale
lembrar que desde seu primeiro livro publicado,em 1861 , Queda que as mulheres têm para os tolos – que título instigante,
provocador ! – Machado fomenta o enigma,o mistério, o disfarce,o subterfúgio:
porque persiste a dúvida histórica de ser uma tradução ou uma criação original
dele – de que não tenho a MENOR DÚVIDA que seja(criação) : vejam a propósito minha edição crítica sobre
esse livro. Cá entre nós e para nós, a versão de ser criação original é muito
mais,digamos,’charmosa’, muito mais – não há dúvida alguma — ao estilo e
espírito machadiano: sutil, insinuante, ambíguo, dissimulado -- a par de outras igualmente grandiosas, a mais
espetacular característica/conotação de toda obra de Machado. Ele sempre
cultivou a dúvida, o ‘traiu ou não traiu’(implícito em sua maior e definitiva
obra), ‘insinuou ou não’, ‘seduziu ou não’, ‘mentiu ou não’, ‘furtou ou
não’,‘fez ou não fez’— e é esse teor ‘hamletiano’, a ligá-lo e
referenciá-lo a ninguém menos que Shakespeare, uma de suas maiores
admirações e citação constante .Dele, Machado assimilou e incorporou à sua obra ficcional a temática do ciúme,
aliás o binômio ‘ciúme e perdão’ –
presente e atuante em romances como Ressureição, A mão e a luva, sobretudo em Dom
Casmurro , e em inúmeros contos : binômio que remete a
Freud, de quem Machado consubstanciou – sem o conhecer...— os elementos e
conceitos do inconsciente, do psiquismo humano, da sexualidade feminina,
estabelecendo como nenhum outro escritor brasileiro de seu tempo vetores e pontos de interseção entre a literatura e a
psicanálise, desde as primeiras obras,
mesmo as da ‘fase de aprendizado’ e atingindo seu clímax na denominada ‘fase de
maturidade’. Como sentencia Roberto Schwarz , “Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25
anos depois. Em Esaú e Jacó, por exemplo, antecipou-se a Freud no ‘complexo de
Édipo’”.
O
certo é que Queda que as mulheres têm para os tolos ser ou não tradução
é o que menos importa. O que vale ser considerado mesmo é , primeiro, sua
própria textura — leve, gracioso, fluente, irônico, bem-humorado — e sua
indefinição genética, sua não-identificação formal; depois, ter sido inspiração
para muito do que viria a seguir , o modelo de uma ‘teoria amorosa’ exercitada
por Machado em “Desencantos”(1861), em Ressureição (1872), e finalmente na opera-mater,
a grandiosa Dom Casmurro.(1899) . Queda que as mulheres
têm para os tolos adquire representativa especial e peculiar, pois lhe
serviu de inspiração para a escrita de sua primeira peça teatral, por cadeia,
de seu primeiro romance, e, por fim, de sua obra definitiva e consagradora..
Todos esses textos têm por modelo essa “teoria amorosa” -- traduzida ou não por
Machado, em 1861; em todos eles, a ‘ideologia’ da dúvida, da dubiedade, da
incerteza, da ambigüidade; todos abordam a questão da escolha que a mulher deve
fazer entre um homem de espírito e um homem sem juízo – que constitui-se num
dos primordiais arcabouços dramatúrgicos e temáticos da ficção machadiana.
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