sexta-feira, 5 de março de 2010

Queda que Machado tem para as mulheres


pelo 8 de Março.


Desde o início de sua criação ficcional em prosa – a obra Queda que as mulheres têm para os tolos -- , Machado traçou caminhos próprios e peculiares para tratar das relações entre os homens e as mulheres, mormente depois do romance Iaiá Garcia, em que o poder de observação psicológica dos personagens se acentua — captando, de forma expressiva, o conceito freudiano do desejo in­consciente. Machado foi muito além da visão ingênua dos românticos, do discurso dos realistas e naturalistas, injetando em sua obra muitas sementes da modernidade : criou um estilo de literatura não apenas de observação das pessoas mas sobretudo de interpretação, expondo das pequenas coisas, das passagens a princípio inocentes, um outro lado , que muitas vezes aludia à presença, sempre insidiosa, do inconsciente.
Machado sempre foi um autor interessado em prospectar as paixões dos homens, em dissecar-lhes as intimidades, em levantar ques­tões e em torná-las públicas pela voz de seus personagens; sobretudo percebia, com clareza, o lado trágico das relações humanas. Este lado trági­co passa pelo permanente mal-entendido dos encontros humanos, de um ser humano permanentemente acossado pelo outro, num processo originado,determinado e materializado pelo ciúme e a desconfiança implícita, pela traição e pela infidelidade, de resto temas constantes na vida literária de Machado.Muito da temática e da tramática machadianas gira em torno do ciúme e do perdão – vale dizer, do binômio freudiano de ‘culpa e perdão’. Foi ele o autor brasileiro que introduziu a perspectiva crítica, fazendo da dúvida, do questionamento e da argumentação, ‘a la Freud’, uma constante em sua obra.
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A essencial temática de Machado de Assis consistia em expressar as sutilezas do mecanismo psicológico no deflagrar de ações, emoções,expressões e reações no comportamento humano . Possuía uma maneira própria de ver,representar e interpretar o mundo, a começar por seu peculiar processo de criação ficcional, as elaboradas transposições temáticas,tramáticas e de linguagem criando e intertextualizando , que de resto não se ajustam às definições comuns dos gêneros literários, como por exemplo no caso a ‘indefinição’ genética de Queda que as mulheres têm para os tolos.
A literatura de Machado – nos moldes de Flaubert, Balzac, Eça de Queiroz -- traz, juntamente com Freud, para o centro das discussões, a questão da sexualidade feminina. Nos romances machadianos surge uma mulher que quer poder escolher a forma de sentir e amar, apesar de, algu­mas vezes, ao não poder dizer de seu desejo — a maioria das mulheres da época vivia reclusa, tinha pouco estudo, e sua principal meta era um casamento com o que se chamava ‘um bom partido’; se houvesse amor, melhor, mas não era o principal,pois a questão do amor era secundária, era um luxo que muitas mulheres não tinham : Machado,fiel à ‘ideologia’ das décadas de 1850-60, assim o trata em Ressureição , em A mão e luva, mas redime o amor em Memorial de Aires, numa “recomposição com a vida” — fazer convergir para o corpo o protesto da sua sexualidade insatisfeita .
Nenhum escritor de seu tempo ‘edificou’ tanto a mulher como personagem capital e leitmotiv básico de seus textos como Machado de Assis — nem Joaquim Manuel de Macedo(de A Moreninha e em inúmeros contos), José de Alencar( notadamente na trilogia urbana Senhora, Diva e Lucíola, além dos contos A viuvinha, Cinco minutos, das novelas A pata da gazela, Sonhos d'ouro, Encarnação), nem Taunay (em Inocência), Bernardo Guimarães (e sua Escrava Isaura), Domingos Olímpio ( com Luzia Homem), nem Lima Barreto (de suas Clara e Castorina em Clara dos Anjos , Olga e Edgarda em Triste fim de Policarpo Quaresma , Efigênia em O cemitério dos vivos; Cecília de Diário íntimo , Cló, Adélia, Lívia em Histórias e sonhos; etc., das instigantes crônicas em torno do tema “Não as matem!”).
Machado escrevia sobre mulheres e para mulheres : desde a pioneira Queda... , passando pelos primeiríssimos romances Ressurreição, A mão e a luva, Helena, na imensa maioria de seus contos , na excepcional novela Casa velha, chegando a Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó, Memorial de Aires, as mulheres sâo as protagonistas, as personagens primordiais, o elemento central em torno das quais desenrola-se a trama e a narrativa. Parece mesmo sempre ter preferido escrever em publicações cujo público predominante era feminino, primeiro no Jornal das Famílias , de 1864 a 1876, em sua fase dita ‘romântica’, à qual se filiam também seus primeiros romances, e a partir de 1879 em A Estação . Sua obra, de modo geral, abriga vários tipos femininos, com histórias povoadas de muitas personagens e situações que mostram as alternativas com que as mulheres se defrontam na vida: assim é com Lívia de Ressurreição, Guiomar de A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia, Virgília e Marcela de Brás Cubas, Sofia de Quincas Borba, Capitolina de Dom Casmurro, Flora de Esaú e Jacó, Fidelia e Carmo de Memorial de Aires, além da profusão das protagonistas de inúmeros contos, notadamente em “Missa do galo”, “Capítulo dos chapéus”, “Singular ocorrência” ,”Uma senhora”, “Trina e una”, “Primas de Sapucaia!”, “Noite de almirante”, “A senhora do Galvão”, “Uns braços”, “D. Paula”, que encenam situações com as quais as mulheres se defrontam na vida comum – podendo mesmo serem catalogado como ‘estudos sobre a mulher”, ao revelarem de forma soberba a mais aguda sensibilidade de Machado no trato de questões que envolvem moral, ética, preconceito social, autoritarismo, amor e ciúme
Suas mulheres ficcionais -- orgulhosas ou tímidas, calculistas ou levianas, singelas ou complexas -- “com seus contornos roliços, seus olhos onde a gente se perde como na escuridão da noite, são criaturas feitas de capricho e de carne, sobretudo de carne, tudo instinto, sem nenhum raciocínio”.E nesse privilegiar a mulher como personagem primordial de sua ficção, desde os primeiros romances,Machado trabalhou o psicológico como nenhum outro escritor de seu tempo, preocupado com climas, ambientes, situações existenciais sutis e delicadas: as mulheres surgem como personagens de grande densidade psicológica, alimentando de forma rica e sugestiva a temática preferida do mestre brasileiro.
Na maioria dos romances, a mulher é o elemento forte, traz o homem dependente de si, ela é o esteio, a base da relação. Há matriarcas que dominam e comandam propriedades e a família, viúvas que não mais casam, em que se percebe que a figura masculina é, por vezes, desnecessária (Machado chega a reduzir o homem a um nada, sem a mulher : em Memorial de Aires, por exemplo, D. Carmo segue a linha da mulher totalmente dedicada à famí­lia, e que firmemente controla não só o espaço doméstico, como, e prin­cipalmente, o marido; daí a famosa frase: "Aguiar sem Carmo é nada" ).
Os amores e frustrações femininos eram temas constantes, tendo nas linhas e entrelinhas de seus contos , romances, e também de suas crônicas , chamado atenção para as necessidades e os direitos da vida afetivo-sexual de suas leitoras : argumentava que a mulher devia receber instrução e não ficar com­pletamente confinada à vida doméstica, tendo direito ao amor e à li­berdade. Pretenderia Machado de Assis o matriarcado ? Assim especulam muitos dos estudiosos de sua obra, para os quais Machado era mesmo ‘feminista’ -- e a cada leitura de sua obra nos damos conta da sutileza e da abrangência desse feminismo. Importante notar, como que a reciclagem de um processo desenvolvido por longos 36 anos (desde Ressureição, em 1872), em seu último romance,sua obra conclusiva – Memorial de Aires -- a par de continuar a privilegiá-las, valorizá-las e enaltecê-las, Machado como que ‘redime’ as mulheres : não mais a figura sensual impulsionada pelo desejo – como Capitu, Virgilia, Sofia, Guiomar, Valéria, Marcela -- mas a mulher proba, que pode ser amada e admirada, distante e alheia à tentação, ‘salvas do pecado’,como Fidelia e Carmo. Não mais as machadianas sedutoras,ambiciosas,impuras,dissimuladas — antes de tudo, fúteis e fugazes, a ponto de preferirem os tolos ao invés dos homens de espírito...
A aguda e profunda visão machadiana das “coisas deste mundo” o fez constatar o quanto a mulher na sociedade imperial brasileira—reclusa e dominada, doméstica e servil-- era ‘anulada’ por sua própria condição feminina : se o mundo da mulher era limitado pelas paredes do sobrado, tratou de retirar do ócio social da mulher de sua época a essência da matéria ontológica de suas personagens.

[1] FREUD (1980, pp. 102-03).

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