terça-feira, 30 de março de 2010

Lima Barreto e a mulher


tema de Carmen - IV


Habeas corpus curioso

Na semana passada os jornais noticiaram um interessante julgado. Creio que é assim que os arcaizantes jurisconsultos denominavam as decisões de seus tribunais e juízes.
Trata-se de um cidadão de São Paulo que raptou uma moça com quem desejava casar-se. Consumado o casamento natural e adamítico, mesmo assim o pai, que, antes dele, havia negado consentimento para o consórcio burocrático, pretoriano ou eclesiástico, continuou na sua teima, não permitindo que o rapaz "reparasse a falta", sob a alegação de vários motivos que não vêm ao caso citar. Resolveram pessoas autorizadas pelo Estado internar a moça num asilo e o cidadão, que tinha as melhores disposições para aumentar o coeficiente de nupcialidade, foi muito juridicamente parar na cadeia, regularmente condenado, porque o seu desejo era casar-se com uma dada e determinada moçoila.
Esse fato jurídico-policial em todo o seu desenvolvimento prestar-se-ia a muitas considerações sutis sobre leis, tribunais e autoridades, se fosse tratado por outra pena que não a minha, inábil e canhestra.
Em todo o caso, porém, eu me animo a dizer alguma coisa, para sugerir a outras inteligências mais capazes que a minha, a necessidade de interessar-se por ele e comentá-lo como é merecedor.
Na primeira parte, o pai, que julgava muito mal o seu genro espontâneo, não o queria artificial, por isso o casamento não se efetuou, de acordo com a lei 142.238 A, de 30 de agosto de 1327, § 7°, letra alfa; permissão de 15 de outubro de 1447; carta régia de 18 de novembro de 1637; resolução da mesa do bem comum, de 2 de fevereiro de ln2; acórdão da Casa de Suplicação de 44 do Ramadã de 1427, da Hégira, etc., etc.
Bem. Toda a legislação romana, arábica, visigótica, portuguesa, etc., etc., dava-lhe poderes bastantes para impedir o matrimônio da filha menor. Concordo porque, a ter quem me governe, prefiro meus pais a todos os luminares do Catete, do Supremo Tribunal e do Congresso, mas o pai, que tinha esse extraordinário poder, não tinha o menor de dar destino conveniente à sua filha, tê-la em sua companhia, guiá-la para o arrependimento, como autoridade natural que era sobre a moça. Quem teria essa força senão ele? perguntarão os senhores. Deus? Não.
Sabem quem a tinha, acima do pai?
O curador de órfãos. É engraçado!
O pai pode impedir que a filha siga as inclinações do seu sexo, mas não pode tê-la sob a sua guarda e tutela. Quem pode indicar um guarda e um tutor conveniente não é ele; é um funcionário do Estado, que não conhece a moça, que nunca a viu mais gorda, não lhe sabe as qualidades, os defeitos, nem lhe adivinha a força dos sentimentos.
De acordo com a legislação dos iberos e lusitanos, dos carlovíngios e suevos, dos alanos e bizantinos, sobrepondo-se à autoridade paterna, que, no caso, me parece era pessoa perfeitamente capaz, determina que a moça seja internada numa casa de religiosas sem indagar se a menina gosta dessas coisas de missas e rezas.
O melhor, o mais lógico, era o que acontecia antigamente: os pais podiam meter as filhas, nas mesmas condições que a moça ora em causa ou em outras, no convento. A sua autoridade de pai era completa.
Hoje, com os nossos bizantinismos legais, judiciais e toda essa trapalhada de leis, códigos, portarias, acórdãos, a autoridade paterna é vacilante e incoerentemente exercida.
Uma hora, o pai pode impedir o casamento e o curador de órfãos pode anular a decisão paterna; outra hora, o pai impede como na sua primeira fase deste caso, mas logo vem o bacharel curador de órfãos, quando a paciente não era órfã, e grita tendo na mão todos os digestos de todas as legislações passadas, presentes e futuras de todas as nações do mundo:
- Você tem o direito de pôr impedimentos ao casamento da pequena, mas quem lhe indica a moradia sou eu. Você é pai para empatar o consórcio, mas não o é para dar comida e casa à filha. Quem dá o ensino não dá o pão.
É uma decisão das mais extraordinárias que se pode conceber e esperar em matéria de lógica. Os raciocínios se articulam aí tão perfeitamente para se chegar a conclusão tão fatal que, creio, nem na geometria do velho Euclides se encontrará demonstração tão rigorosamente arquitetada e perfeita.
Continuemos, porém, a estudar o caso do rapto de São Paulo.
O pai, que não queria a filha no asilo, veio afinal a dar o seu consentimento para o matrimônio.
Parecia que a causa estava resolvida; as autoridades jurídicas, porém, que até aí tinham julgado como único impedimento para se efetuar o consórcio a oposição do pai, vetaram o negócio.
Então, o "velho", a filha e o genro de fato ligaram-se e pediram habeas corpus para legalizar a união consumada dos dois últimos. Nesse ponto, começam a entrar os luminares da ciência jurídica; e o Tribunal Superior de Justiça de São Paulo, consoante um embrulho de leis enumeradas até no infinito, nega o habeas corpus, para que os pacientes realizem uma coisa que, quase sempre, os simples delegados obtêm, mais ou menos sob ameaças.
Toda essa barulhada que não quero esmiuçar mais vem mostrar que, além de inúteis, muitas dessas leis são contraditórias, umas destruindo as outras, e concorre não para simplificar a nossa vida e as nossas relações sociais, mas para complicá-las, obscurecer o que é claro e, quase sempre, dar razão a quem não a tem, mas que pode dispor de argumentadores e trapalhistas jurídicos de profissão que se fazem pagar caro.
Não é este o caso do habeas corpus de que trato; mas outros exemplos mais eloqüentes e elucidativos do que afirmo devem existir e existem por aí. É ter paciência de procurá-los.
O que se chama - "saber jurídico" - mete-me mais medo do que toda a ciência astrológica dos antigos; e se me ameaçassem de morte para estudar-lhe um pedaço que fosse, eu preferia mesmo morrer.
Quando será que os homens se hão de convencer da inutilidade e da importância de leis que só servem para complicar a sua existência e esmagar os fracos?
A. B. C. 14.02.1920
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Mais uma vez

Este recente crime da rua da Lapa traz de novo à tona essa questão do adultério da mulher e seu assassinato pelo marido.
Na nossa hipócrita sociedade, parece estabelecido como direito, e mesmo dever do marido, o perpetrá-lo.
Não se dá isto nesta ou naquela camada, mas de alto a baixo.
Eu me lembro ainda hoje que, numa tarde de vadiação, há muitos anos, fui parar com o meu amigo, já falecido Ari Toom, no necrotério, no Largo do Moura por aquela época.
Uma rapariga - nós sabíamos isso pelos jornais - creio que espanhola, de nome Combra, havia sido assassinada pelo amante e, suspeitava-se, ao mesmo tempo maquereau dela, numa casa da Rua de Santana.
O crime teve a repercussão que os jornais lhe deram e os arredores do necrotério estavam povoados da população daquelas paragens e das adjacências do Beco da Música e da rua da Misericórdia, que o Rio de Janeiro bem conhece. No interior da morgue, era a freqüência algo diferente sem deixar de ser um pouco semelhante à do exterior, e, talvez mesmo, em substância igual, mas muito bem-vestida. Isto quanto às mulheres - bem entendido!
Ari ficou mais tempo a contemplar os cadáveres. Eu saí logo. Lembro-me só do da mulher que estava vestida com um corpete e tinha só a saia de baixo. Não garanto que estivesse calçada com as chinelas, mas me parece hoje que estava. Pouco sangue e um furo bem circular no lado esquerdo, com bordas escuras, na altura do coração.
Escrevi - cadáveres - pois o amante-cáften se havia suicidado após matar a Combra - o que me havia esquecido de dizer.
Como ia contando, vim para o lado de fora e pus-me a ouvir os comentários daquelas pobres pierreuses de todas as cores, sobre o fato.
Não havia uma que tivesse compaixão da sua colega da aristocrática classe. Todas elas tinham objurgatórias terríveis, condenando-a, julgando o seu assassínio cousa bem-feita; e, se fossem homens, diziam, fariam o mesmo - tudo isto entremeado de palavras do calão obsceno próprias para injuriar uma mulher. Admirei-me e continuei a ouvir o que diziam com mais atenção. Sabem por que eram assim tão severas com a morta?
Porque a supunham casada com o matador e ser adúltera.
Documentos tão fortes como este não tenho sobre as outras camadas da sociedade ; mas, quando fui jurado e, tive por colegas os médicos da nossa terra, funcionários e doutos de mais de três contos e seiscentos mil-réis de renda anual como manda a lei sejam os juízes de fato escolhidos, verifiquei que todos pensavam da mesma forma que aquelas maltrapilhas rôdeuses do Largo do Moura.
Mesmo eu - já contei isto alhures - servi num conselho de sentença que tinha de julgar um uxoricida e o absolvi. Fui fraco, pois a minha opinião, se não era fazer-lhe comer alguns anos de cadeia, era manifestar que havia, e no meu caso completamente incapaz de qualquer conquista, um homem que lhe desaprovava a barbaridade do ato. Cedi a rogos e, até, alguns partidos dos meus colegas de sala secreta.
No caso atual, neste caso da rua da Lapa, vê-se como os defensores do criminoso querem explorar essa estúpida opinião de nosso povo que desculpa o uxoricídio quando há adultério, e parece até impor ao marido ultrajado (sic) o dever de matar a sua ex-cara-metade.
Que um outro qualquer advogado explorasse essa abusão bárbara da nossa gente, vá lá ; mas que o senhor Evaristo de Morais, cuja ilustração, cujo talento e cujo esforço na vida me causam tanta admiração, endosse, mesmo profissionalmente, semelhante doutrina é que me entristece.
O liberal, o socialista Evaristo, quase-anarquista, está me parecendo uma dessas engraçadas feministas do Brasil, gênero professora Daltro, que querem a emancipação da mulher unicamente para exercer sinecuras do governo e rendosos cargos políticos; mas que, quando se trata desse absurdo costume nosso de perdoar os maridos assassinos de suas mulheres, por isto ou aquilo, nada dizem e ficam na moita.
A meu ver, não há degradação maior para a mulher do que semelhante opinião quase geral; nada a degrada mais do que isso, penso eu. Entretanto...
Às vezes mesmo, o adultério é o que se vê e o que não se vê são outros interesses e despeitos que só uma análise mais sutil podia revelar nesses Iagos.
No crime da rua da Lapa, o criminoso, o marido, o interessado no caso, portanto, não alegou quando depôs sozinho que a sua mulher fosse adúltera; entretanto, a defesa, lemos nos jornais, está procurando "justificar" que ela o era.
O crime em si não me interessa, senão no que toca à minha piedade por ambos; mas, se tivesse de escrever um romance, e não é o caso, explicaria, ainda me louvando nos jornais, a cousa de modo talvez satisfatório.
Não quero, porém, escrever romances e estou mesmo disposto a não escrevê-los mais, se algum dia escrevi um, de acordo com os cânones da nossa crítica; por isso guardo as minhas observações e ilusões para o meu gasto e para o julgamento da nossa atroz sociedade burguesa, cujo espírito, cujos imperativos da nossa ação na vida animaram, o que parece absurdo, mas de que estou absolutamente certo - o protagonista do lamentável drama da rua da Lapa.
Afastei-me do meu objetivo, que era mostrar a grosseria, a barbaridade desse nosso costume de achar justo que o marido mate a mulher adúltera ou que a crê tal.
Toda a campanha para mostrar a iniqüidade de semelhante julgamento não será perdida; e não deixo passar vaza que não diga algumas toscas palavras, condenando-o.
Se a coisa continuar assim, em breve, de lei costumeira, passará a lei escrita e retrogradamos às usanças selvagens que queimavam e enterravam vivas as adúlteras.
Convém, entretanto, lembrar que nas velhas legislações, havia casos de adultério legal. Creio que Sólon e Licurgo os admitia ; creio mesmo ambos. Não tenho aqui o meu Plutarco. Seja, porém, como for, não digo que todos os adultérios são perdoáveis. Pior do que o adultério é o assassinato; e nós queremos criar uma espécie dele baseado na lei.
A.B.C. 1920
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Coisas jurídicas

Este negócio de assassinatos perpetrados pelos maridos, por adultério da mulher, dá lugar a muitas reflexões. A estupidez desses matadores é evidente; a sua perversidade não é menos.
Mas, os jornais, no dever de forçar a publicidade e provocar a curiosidade, trazem à tona cousas bem interessantes.
Não quero falar bobagens e quinquilharias da vida doméstica de um qualquer casal: não quero falar do caderno da venda nem das reclamações do vizinho; não quero falar do choro das crianças nem das palmadas paternas e maternas. Tudo isto é igual em todas as notícias desses casos tristes em que um bobo ou perverso de marido mata a mulher porque adulterou.
No último caso, porém, em que isso se deu, surgiu uma situação onde a bodega de lei dança uma dança macabra com a justiça e a razão. Relembro um pouco. Um sujeito qualquer que descobre a mulher em flagrante adultério. Tenta matá-la à faca; o amante se interpõe e o marido o mata. Bem. Até aí, nada de novo.
O que de novo aparece, é o código civil ou criminal ou lá que for. Qualquer de um desses famosos calhamaços diz que a essa pobre mulher que escapou de ser morta, e, se o não foi, deve-o à generosa coragem do seu amante; a essa pobre mulher o calham aço dá direito ao matador manqué de processá-la e arranjar a sua condenação a um ano de prisão celular.
Ora bolas! O que é mais grave é o adultério ou a tentativa de assassinato ? Então o tipo que me mata ou tenta matar-me porque furtei um pão à sua padaria, pode processar-me por crime de furto?
Então eu que atiro e firo o gatuno que me vai furtar as galinhas do quintal, posso processá-lo por crime de furto?
Já se viu uma coisa dessas?
Essa jurisprudência é uma coisa muito engraçada!
Careta 19.02.1921

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