sexta-feira, 7 de março de 2008

salve, salve 8 de março ! - I


Quem tem medo da literatura feminina / feminista ?

Preconizada por Virginia Woolf, na década de 1930 [Virginia, irônica e realista, em conferência para jovens universitárias inglesas no Giron College, estabelecia as condições mínimas para que as mulheres atravessassem a fronteira física e psíquica da criação literária, ao declarar : “tendo um quarto para si e renda própria”__ ditames abrigados no livro A Room of One’s Own (Um quarto todo seu.) ] , defendida pelas feministas européias de 1970, uma “escrita feminina” ganhou corpo (e forma) na literatura, sim senhor __ queira-se ou não. Mulheres escritoras (ficcionais e não-ficcionais) têm voz própria, estilo próprio, linguagem própria, temática própria , longe de “simplesmente reproduzirem modelos falocêntricos, caracterizados por racionalismos e pragmatismos” como acentua a ensaísta Luce Irigaray.
A contrapartida, segundo ela, é uma “subjetividade feminina, marcada por uma escrita mais sensorial e sensível, mais poética, lírica mesmo, uma escritura com o corpo e a alma, maior liberdade de escrita”
Apesar das (para alguns, incontornáveis) dificuldades para definição precisa do que seja uma escrita feminina, eu particularmente entendo existir uma ‘literatura feminina’ com elementos, valores e vetores próprios __ que só fazem acrescentar e enriquecer a Literatura (e a Cultura, em geral). Fácil identificar entre escritoras brasileiras e estrangeiras contemporâneas uma escrita nitidamente feminina __ com suas obras carregadas de suas características específicas.

existe uma voz especificamente feminina ?

“Femininos,sim, são os textos que apresentem determinadas marcas, que percorrem o campo semântico de falta, silêncio, indizível, confessional, subjetivo, íntimo, prevalência do eu-narrador, visão interior, esgarçamento do sentido da palavra e da ordem do discurso, dilaceramento da escrita,busca da identidade, descontínuo, atópico, atemporal, extático, etc...”, sentencia a ensaista Vera Queiroz.
Segundo Luiza Lobo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ, em "A literatura feminina na América Latina", “(...) o cânone da literatura de autoria feminina se modificará muito se a mulher retratar vivências resultantes não de reclusão ou repressão, mas sim a partir de uma vida de sua livre escolha, com uma temática, por exemplo, que se afaste das atividades tradicionalmente consideradas ‘domésticas’ e ‘femininas’ e ainda de outros estereótipos do ‘feminino’ herdados pela história, voltando-se para outros assuntos habitualmente não associados à mulher até hoje”. Para Luiza, “o termo ‘feminino’ vem sendo associado a um ponto de vista e uma temática retrógrados, o termo ‘feminista’, de cunho político mais amplo, em geral é visto de forma reducionista, só no plano das ciências sociais. Entretanto, deveria ser aplicado a uma perspectiva de mudança no campo da literatura. A acepção de literatura ‘feminista’ vem carregada de conotações políticas e sociológicas, sendo em geral associada à luta pelo trabalho, pelo direito de agremiação, às conquistas de uma legislação igualitária ao homem no que diz respeito a direitos, deveres, trabalho, casamento, filhos etc”.
“Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos”. Na afirmação de uma personagem do romance As meninas (1975), de Lygia Fagundes Teles, parece estar a raiz do fenômeno de transformação vivenciado pela mulher desde o século passado. Qual seria afinal uma “linguagem feminina” na arte e como é um discurso essencialmente ‘feminino’? A crítica argentina Marta Traba costuma apontar como características ‘femininas’ na literatura contemporânea “a palavra fragmentada, a tendência a impregnar a palavra escrita com elementos de oralidade, o discurso voltado para ‘o sujeito que fala’, a projeção da linguagem no nível simbólico, a tendência a explicar o universo em vez de interpretá-lo, a predileção pelo detalhe”.
Nelly Novaes Coelho , autora do Dicionário crítico de escritoras brasileiras , meticuloso registro da produção literária feminina brasileira de ontem e de hoje, e de A literatura feminina no Brasil contemporâneo , alerta para o fato de que toda criação literária está condicionada à cultura na qual se encontra imersa : daí, derivam certas peculiaridades na criação literária de um e de outro, e nessa perspectiva pode-se então falar em “literatura feminina” e em “literatura masculina”.Ao abordar a questão de haver ou não uma ’escrita feminina’ distinta da ’escrita masculina’, Nelly observa que a linha francesa, liderada por Hélène Cixous, chama a atenção para a peculiaridade de escrita feminina, a ‘écriture féminine’ — um conceito que estabelece a diferença feminina na língua e no texto, possibilitando uma maneira de se discutir os escritos que reafirmam o valor do feminino; mas tecnicamente, não se poderia falar em literatura "feminista" antes que o termo fosse cunhado, na década de 1960 — “como uma espécie de respiração, de sopro vital, de silêncios densos, algo meio mágico que diferenciaria a voz da mulher. Realmente isso existe. É realmente uma espécie de magia vocabular, inerente às grandes criações, a magia da palavra poética autêntica, mesmo quando escrita em prosa”.
Sem dúvida alguma, a literatura de autoria feminina já criou seu espaço próprio dentro do amplo universo literário mundial. Desde fins do século XIX e principalmente no século XX, a principal transformação pela qual passou a literatura de autoria feminina é a conscientização da escritora quanto a sua liberdade e autonomia e a possibilidade de trabalhar e criar sua independência financeira. Na verdade, as grandes mudanças que o século XX trouxe para a vida da mulher foram fator determinante para o surgimento e expansão de uma literatura feminina __ reflexo e manifestação dos novos papéis da mulher na sociedade e no mundo. A gestação dessa ‘nova mulher’ deu-se pelo amadurecimento crescente de sua consciência crítica, que determinou uma transformação radical da escrita realizada pela mulher : de uma literatura lírica-sentimental, de ‘contemplação emotiva’, para uma literatura ética-existencial, de ‘ação ética-passional’__ um caminho trilhado , e nitidamente percebido no meio exterior (por críticos, leitores, editores, agentes, midia, etc), na área da prosa ficcional, da poesia e do teatro.
Na nova ficção feminina, o amor __ codimentado pelo erotismo, por vezes exacerbado __deixa de ser o tema absoluto para ceder espaço a sondagens existenciais, ao ludismo e ao feérico na invenção literária, ao questionamento político e filosófico.Tudo isso traduzido e materializado em experiências formais e estilísticas : fragmentação narrativa, intertextualidade, o foco narrativo múltiplo, o intenso fluxo-de-consciência, o registro labiríntico no lugar da estrutura linear, a exploração dos mitos,do esotérico, a clara opção a pela ‘linguagem do corpo’, “a procura do sentido das coisas” __ esta talvez, a expressão-chave da escrita feminina contemporânea.
(continua)...

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