não apenas pelo 8 de março , mas todos os dias de todos os anos!
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Preconizada por Virginia Woolf, na década de 1930
[Virginia, irônica e realista, em conferência para jovens universitárias
inglesas no Giron College, estabelecia as condições mínimas para que as
mulheres atravessassem a fronteira física e psíquica da criação literária, ao
declarar : “tendo um quarto para si e renda própria” -- ditames abrigados no
livro A Room of One’s Own (Um quarto todo seu.) ], defendida pelas feministas européias de 1970, uma ‘escrita feminina’
ganhou corpo (e forma) na literatura .
Mulheres escritoras (ficcionais e não-ficcionais) passaram
a ter – ou adquiriram, por ‘méritos próprios de qualidade e personalidade -- voz própria, estilo próprio, linguagem
própria, temática própria, longe de “simplesmente reproduzirem modelos
falocêntricos, caracterizados por racionalismos e pragmatismos” acentua a ensaísta Luce Irigaray:
Qual seria afinal
uma ‘linguagem feminina’, como se expressa
um discurso essencialmente
‘feminino’? existe afinal uma voz
especificamente feminina ?
Apesar das (para alguns, incontornáveis) dificuldades
para uma definição precisa, entendo -- e
sustento, convicto -- existir uma linguagem literária feminina com elementos,
valores e vetores próprios, nitidamente percebidos na prosa ficcional, na
poesia e no teatro, e que só fazem
acrescentar e enriquecer a Literatura (e a Cultura, em geral) – linguagem marcada
pela subjetividade, por uma escrita mais sensorial e sensível, mais poética,
lírica , uma escritura com ‘o corpo e a alma’.
Na ficção feminina, o (originariamente ditado pelos
cânones românticos) amor -- condimentado pelo erotismo, por vezes intenso --
deixa de ser tema absoluto para ceder espaço a sondagens existenciais, e até ao
questionamento político e filosófico. Tudo isso traduzido e materializado em
experiências formais e estilísticas : fragmentação narrativa, o ritmo
‘labiríntico’ no lugar da estrutura
linear, intertextualidade, tendência a impregnar a escrita com elementos
de oralidade, foco narrativo
múltiplo, intenso fluxo-de-consciência..
Certamente pode-se encontrar desses elementos na
denominada ‘literatura masculina’– e efetivamente encontra-se: como negar serem
essencialmente ‘femininas’ a linguagem literária, o estilo, a escrita de Marcel
Proust, de Flaubert, de Balzac, ou muitas passagens de Tolstoi, e mesmo de
Shakespeare, para citar gigantes da literatura universal – o que,de algum modo,
desmistificaria esse tipo de distinção acentuada, da qual, enfatizo, não sou
partidário. Gratifica-me bastante acentuar que a escrita feminina, marcante
como é, ostenta suas características próprias, peculiares, plena de,digamos,
‘personalidade literária’, assim como a possui,em sua devida proporção, a
‘literatura masculina’.
E no que enfatizo as
concretas existência e expressão de uma literatura feminina,vis a vis com uma ‘literatura masculina’ [sic -- longe muito longe de ratificar, conforme
certas críticas de contingentes assumidamente feministas, uma indesejável,digna
de repúdio, “divisão de sexos”-- ao
contrário justamente confiroe identidade própria e plena personalidade às
linguagem,escrita e estilo praticados literariamente pela mulher.
A meu juízo, valorizo-as, enalteço-as, dignifico-as.
MR
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uma escrita feminina brasileira, sim
Muitos constataram — e
comprovaram — a influência negativa da literatura em relação à posição da
mulher na sociedade, "os literatos, romancistas e poetas explorando a
concuspicência, a imoralidade e a luxúria que chamam amor; e naturalmente como
nas relações entre senhor e escrava só pode haver obscenidade, os homens de
talento produziram montanhas de livros onde a patologia mundana do amor é
rebuscada ao mais íntimo e profundo limite." Com o tempo e a evolução dos
conceitos sociais, almejada uma efetiva
mudança na sociedade, tornou-se imperativo repensar a condição feminina,
enxergando a mulher, não como um complemento da família, mas como importante
agente de mudanças pela função que exerce na sociedade.
No Brasil, o surgimento de
mulheres escritoras ocorre principalmente a partir do século XIX, no contexto
da crescente importância da imprensa e do início de movimentos em prol dos
direitos das mulheres. Quando as questões relativas à emancipação feminina
começaram a aparecer na imprensa, as mulheres se organizavam associativamente e
passaram a reivindicar maior participação na sociedade em mudança. Ocorreram
então os primeiros movimentos organizados tendo como principal objetivo a
melhoria das condições de vida da mulher — desde que orientada pela ótica
masculina. [afinal, na constituição da
família brasileira sempre imperou o pater
familias, ou seja, o poder nas mãos
do homem, responsável não só por seus escravos e agregados como também por sua
mulher, filhos e netos — a família patriarcal como a célula mais importante da
formação da sociedade; este poder social do homem advinha do direito
consuetudinário e as próprias leis brasileiras asseguravam-lhe autoridade : os
direitos civis no Brasil, basicamente, até 1890, eram uma extensão dos de
Portugal, isto é, eram regidos pelas Ordenações Filipinas — o primeiro Código
Civil Brasileiro só vigorou a partir de 1917. Na família monogâmica, criada
para preservar o poderio econômico dentro de um mesmo grupo sangüíneo,
exigia-se que a sexualidade feminina fosse rigorosamente controlada, pois era a
única forma de que o homem dispunha para assegurar a paternidade e a herança
familiar. ]
O que não impediu, porem, a
formação de uma linhagem de mulheres militantes dentro da literatura (como
personagens ou como autoras) e da sociedade (na militância política, por meio
sobretudo do veículo jornalístico) que desenvolveram trabalho emancipatório
preparador das condições que propiciariam, no século XX, a implementação e
solidificação de um movimento que se
poderia chamar de estética feminista.
Na literatura brasileira,
considera-se o romance Úrsula (1859),
da maranhense Maria Firmina dos Reis, a primeira narrativa de autoria feminina.
O romance reduplica os valores patriarcais, construindo um universo onde a
donzela frágil e desvalida é disputada pelo bom mocinho e pelo vilão da
história. Contrariando os finais felizes, a narrativa termina com a morte da
protagonista, vítima da sanha do cruel perseguidor.
No entanto, de modo geral
a escrita praticada por mulheres esteve
ausente dos anos decisivos para a formação da literatura brasileira durante o
século XIX , na vigência do Romantismo – o que soa algo inusitado, porquanto
justamente a mulher como leitora foi o grande,crucial, basilar
elemento,primeiro pela
prática de leitura no país, responsável pela existência e proliferação de
escritores e da própria literatura
brasileira. Se não totalmente ausente do mercado, restrita a
colaborações em periódicos de vida curta ou de público definido pela circulação
no espaço doméstico (o que, de resto, significa em meados dos 1800 uma confirmação antecessora
à interpretação de Virgina Woolf,
da década de 1930).. As primeiras manifestações de escrita feminina levadas
oficial e intensamente ao público externo vieram no final do século XIX, já na
‘vigência’ do Realismo na literatura brasileira [paradoxal ? seria o
Romantismo ‘mais apropriado’ para a
expressão da écriture féminine?,
reflito...]
Loas, todas as loas,
portanto, para as pioneirissimas Rita
Joana de Souza, Ângela do Amaral Rangel, Barbara Heliodora, Maria Josefa
Barreto, Beatriz Francisca de Assis Brandão, Maria Clemência Silveira, Delfina
Benigna da Cunha, Ildefonsa Laura Cesar, Ana Euridice de Barandas, Nisia
Floresta, Violante de Bivar e Velasco, Alta de Souza, Clarinda da Costa
Siqueira, Joana Paula de Noronha, Ana Luisa de Azevedo Castro, Maria Firmina
dos Reis, Adelia Fonseca, Maria Benedita de Oliveira Barbosa (Zaira Americana),
Maria Angélica Ribeiro, Isabel Gondim, Maria do Carmo de Melo Rego, Rita Barém
de Melo, Joaquina Meneses de Lacerda, Ana Ribeiro, Julia da Costa, Amália
Figueiroa, Luciana de Abreu, Serafina Rosa Pontes, Adelina Vieira, Josefina
Álvares de Azevedo, Carmem Dolores, Narcisa Amália, Gabriela de Andrada, Maria
Benedita Bormann, Inês Sabino, Anália Franco, Delminda Silveira, Adelaide de
Castro Guimarães, Honorata Carneiro de
Mendonça, Carmen Freire, Emilia Freitas, Vitalina de Camargo Queirós, Ana Facó,
Francisca Izidora da Rocha, Maria Carolina Corcoroca de Souza, Ana Autran,
Corina Coaraci, Luísa Leonardo, Alexandrina Couto dos Santos, Ana Aurora do
Amaral Lisboa, Revocata Heliosa de Melo, Anna Alexandrina Cavalcanti de
Albuquerque. Até entrarmos o século XX com Júlia Lopes de Almeida, chegar a
Gilka Machado e Maria Lacerda de
Moura.
[ sob o terrível risco de não
elencar aqui todas as escritoras de hoje, o que seria praticamente impossível,contemporaneamente
a escrita feminina brasileira encontra
expoentes, entre outras, em: Clarice Lispector, Cecilia Meireles, Maria
Alice Barroso, Maria Helena Cardoso,Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Teles,
Nélida Piñon, Sonia Coutinho, Ana Cristina César ,Hilda Hist, Adélia Prado, Lya
Luft,Zelia Gattai, Ana Miranda, Marina Colasanti, Lygia Bojunga Nunes, Nilma
Gonçalves Lacerda, Maria Adelaide Amaral, Luzilá Gonçalves Ferreira, Myriam
Campelo. E entre as mais novas, Heloisa Seixas, Patricia Melo, Fernanda Young ;
e nas novissimas, Carmen Oliveira, Adriana Lisboa, Maria Conceição Góes, Clarah
Averbuck, Cíntia Moscovich , Leticia Wierzchowski. O ensaísmo abriga Flora
Sussekind, Heloisa Buarque de Holanda, Leyla Perrone-Moisés, Walnice Nogueira
Galvão, Lucia Abreu, Regina Zilbermann, Nelly Novaes Coelho, Marisa Lajolo,
Marilena Chuaí, Marilene Felinto, Eliane Vasconcelos, Beatriz Resende. E outras e outras e outras,
muitas outras...]
Os homens e as mulheres
Naquele século XIX e na primeira quadra do século XX,
no entanto, não foram apenas elas que escreveram ‘sobre elas ou para elas’:
quatro escritores-homens se destacaram
por voltar-se, em graus e enfoques diferentes, para as mulheres.: Joaquim
Manuel de Macedo descreveu-a e tratou-a como “donzela de irrepreensíveis
pendores” em especial em A Moreninha e em
inúmeros contos. José de Alencar traçou o mais completo
retrato da mulher ‘urbana’ da corte, no Brasil pós-Independência, no auge do
romantismo, notadamente na trilogia Senhora, Diva e Lucíola, além de
nas novelas Cinco minutos e
A
viuvinha ,e nos romances A pata da gazela, Sonhos d'ouro, Encarnação.
Há de se destacar, porém, Lima
Barreto: debruçou-se como ninguém sobre a mulher ‘republicana’ : primeiro na
década de 1910, ao desenvolver o “tema de Carmen” , uma série de artigos e
crônicas em jornais e revistas nas quais a propósito de crimes ou
julgamentos, ataca os homens “que se
atribuem direitos sobre a vida das mulheres”, denunciando crimes de uxoricídio,
nos quais homens matavam “mulheres infiéis”— e pior eram absolvidos nos
julgamentos por “legítima defesa da honra”; e ao longo de toda sua produção
croniquesca em jornais e revistas tratar de questões como movimento feminino,
voto feminino, direitos femininos.
A rigor, Lima Barreto , que
nunca silenciou sobre seu tempo, não poderia mesmo ficar alheio à situação da mulher na
realidade social brasileira do início do século XX, época de tantas e profundas
transformações na sociedade. Retratou e a fez personagem em contos e romances, escreveu sobre a mulher em
artigos e crônicas, publicadas em jornais e revistas — sob um caráter de ambigüidade,ora a criticando, por
vezes atacando, ora a defendendo, muitas vezes enaltecendo : diz-se
“antifeminista”, põe-se abertamente contra os movimentos feministas, mas
defende a necessidade de instrução para a mulher ; repele o ingresso da mulher
no serviço público (“... rendosos cargos
para as mulheres das classes sociais mais favorecidas : e as reivindicações das
operárias ?...”), mas defende o divórcio ; imbuído da moral do seu tempo,
retrata a mulher pela ótica comum, Lima
destila sua ácida ironia crítica sobre a
mulher ,mas denuncia sua “absurda” situação de dependência aos homens . Longe,
muito longe da falsa, equivocada acusação de
misoginia, posicionado na realidade contra o movimento feminista
brasileiro — o que ele denominava “feminismo bastardo, burocrata”— não contra
as mulheres,e sim como ojeriza aos signos do progresso republicano, Lima
Barreto sempre dá à mulher espaço significativo em sua obra ficcional e
não-ficcional : nos romances, contos, artigos e crônicas, apontamentos e notas,
comenta a situação da mulher perante o casamento; a viuvez; as oportunidades
educacionais e profissionais; a moral que lhe é imposta pelo duplo valor; a
desigualdade de julgamento do adultério masculino e do feminino; o mundo da
prostituição e o início do movimento feminista no Brasil — e sobretudo defende
intransigentemente a mulher “que são “como todos nós, sujeitas, às influências
várias que fazem flutuar as suas inclinações, as suas amizades, os seus gostos,
os seus amores". Uma ambigüidade implícita e explícita em seus artigos não
permeia o retrato da mulher elaborado em seus romances, novelas e contos, em
que elas têm sempre atitude e
comportamento progressista, são superiores aos maridos (exemplos de Olga e
Edgarda em Triste fim de Policarpo Quaresma; Clara e Castorina em Clara
dos Anjos; Efigênia em O cemitério dos vivos; Cecília de Diário
íntimo , Cló, Adélia, Lívia em Histórias e sonhos; muitas outras em
contos, etc) .
Porém, nenhum escritor
brasileiro do período ‘edificou’ tanto a mulher como personagem capital e leitmotiv básico de seus textos como
Machado de Assis. Ele escrevia sobre
mulheres e para mulheres. Amores e frustações femininos eram temas constantes,
sempre presentes o ciúme, o adultério, a prostituição, e as personagens
femininas ocupam lugar privilegiado, lugar de destaque em todos os romances e
na maioria dos contos.E mais :Machado sempre escreveu para periódicos cujo
público era predominantemente feminino, primeiro no Jornal das Famílias ,depois em A
Estação.
Nas entrelinhas de seus contos,
romances, e também de suas crônicas, Machado sempre chamou atenção para as
necessidades e os direitos da vida afetivo-sexual de suas leitoras: argumentava
que a mulher devia receber instrução e não ficar confinada à vida doméstica,
tendo direito ao amor e à liberdade -- daí, seus temas mais constantes: o ciúme
e o adultério. Machado trouxe à luz a questão da sexualidade feminina ,a
exemplo de Flaubert, Balzac, Eça, e mais tarde Freud . [aliás, como Roberto Schwarz
diz , “Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25
anos depois” -- nos romances, principalmente da ‘segunda fase’, Machado capta
de forma aguda, a la Freud, as
sutilezas do ‘discurso do desejo inconsciente’,
descreve conflitos e enfatiza o inconsciente, sua obra como o principal
elemento/vetor de pontos de interseção entre a literatura e a psicanálise ; a
percepção acentuada do funcionamento do psiquismo humano na verdade vem desde
as primeiras obras.]
Na maioria dos romances, a
mulher é o elemento forte, põe o homem dependente, é também o esteio, a base da
relação. Há matriarcas que dominam e comandam propriedades e a família, a
figura masculina sendo até desnecessária; é comum no romance machadiano, que retrata a
sociedade de seu tempo, mulheres fortes, viúvas que não mais casam, como em Iaiá Garcia, Dom Casmurro, Casa Velha,
Memorial de Aires. Em toda sua obra,
Machado enfatizou o personagem feminino: mesmo em sua primeira fase, Livia,
Guiomar, Helena, Iaiá Garcia, Lalau já dominavam; na segunda fase, as mulheres --
Marcela, Virgília, Sofia, Capitu, Fidélia, Carmo --são personagens de grande
densidade psicológica
Para muitos estudiosos, Machado
era mesmo ‘feminista’ (eu, particularmente, não chego a tanto...)-- e a cada
leitura de seus contos, romances e
crônicas nos damos conta da sutileza e da abrangência desse 'feminismo'..
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