sábado, 18 de outubro de 2014

Em tempo de eleições : Lima Barreto e a política


Em essência, Lima Barreto sempre tratou mais de política do que qualquer outro tema. Ninguém como ele, em seu tempo, escreveu tanto sobre o tema e, por extensão, sobre  questões sociais. Sua ‘literatura militante’, assim por ele definida, determina o caráter marginal de sua obra: sua visão crítica da sociedade o fez enveredar concreta e irreversivelmente no caminho da luta social; nos jornais e revistas investiu contra todos os signos do poder, nos textos ficcionais denunciou as profundas injustiças da sociedade brasileira.
Toda a obra barretiana desenvolve-se a partir  e em torno de um tema nuclear: o poder e seus efeitos discricionários — o poder  visto e descrito por ele como “o variado conjunto de elementos, vetores e procedimentos encadeados no interior da sociedade, compondo grandes e pequenas cadeias, visíveis e invisíveis, tendentes a restringir e constringir o pensamento dos homens, coibindo-lhes as possibilidades de afirmação, pessoal, cultural, profissional, social, e a justa inserção social”. Tinha a visão verticalizada, analisando desde as estruturas políticas como o governo e as ideologias, e as instituições culturais como a imprensa e a ciência, até os modelos determinantes do comportamento coletivo e do relacionamento cotidiano. Lima Barreto era, acima de tudo, um anti-patrimonialista.
Crítico implacável da pretensa modernidade que se queria implementar com a República, avesso a todas as formas de assimilação de valores estrangeiros (no bojo, p. ex. de sua resistência ao futebol, ao cinema e à cultura importada ), defensor ,por vezes intransigente, de uma brasilidade que sustentava devia permear a “autêntica língua nacional”, foi no entanto opositor ativo do  nacionalismo ufanista surgido no final do séc. XIX e início do XX,a começar por  questionar as imagens errôneas que o Brasil fazia de si mesmo, levando ad absurdum os clichês e mitos nacionalistas e os desmascarando um a um.(no romance Triste fim de Policarpo Quaresma  parodia implicitamente o opúsculo patrioteiro de Afonso Celso, filho de seu protetor, intitulado Por que me ufano do meu país (1901), livro muito popular no começo do século XX, que deu origem ao termo ufanismo e foi traduzido para diversas línguas na época, inclusive o alemão. Lima Barreto inclusive alertava para o que denominava “um dos mitos mais perigosos,o do patriotismo : no fundo, os patriotas grandiloqüentes de plantão não passam de traidores da pátria, pois a usam para a sua própria autopromoção e enriquecimento (...), a sociedade de classes e o Estado  a instrumentalizarem o patriotismo e o nacionalismo em favor do interesse das elites.”. Na contrapartida, procurou esboçar um patriotismo social, com consciência histórica e respeito pela cidadania, ancorado na cultura própria, resistente ao cosmopolitismo e de reconhecimento da mestiçagem – étnica,social e cultural --no Brasil.
 Para ele, a nova sociedade ,caracterizada  pelo binômio cosmopolitismo, inspirador das ações da elite do país , e bovarismo[1], “atitude mistificatória de o homem se conceber outro que não é, entre o que é e o que acredita ser”, era um sistema que premiava o egoísmo, o banal, a decadência dos costumes, o preconceito, lastreada nos valores máximos da elite – a fruição do conforto material, os privilégios, a superioridade, gerando discriminação e sectarismo.  “A nossa República se transformou no domínio de um feroz sindicato de argentários cúpidos, com os quais só se pode lutar com armas na mão. Deles saem todas as autoridades, deles são os grandes jornais, deles saem as graças e os privilégios; e sobre a Nação eles teceram uma rede de malhas estreitas, por onde não passa senão aquilo que lhes convém[2]
Lima Barreto,em sua fértil produção contística, publicou 46 contos de teor explicitamente político – ainda que em alguns deles, caso específico do conjunto de 13 textos que ele próprio batizou de “contos argelinos”, se utilize da alegoria e do simulacro. Exemplares insofismáveis de veemente oposição à República, da ferrenha crítica aos governos republicanos ,notoriamente o ‘florianismo’ (referente a  Floriano Peixoto) e o ‘hermismo’ ( a Hermes da Fonseca)[3] -- já objetos de críticas exacerbadas em inúmeros artigos e crônicas e também na novela Numa e a ninfa e no memorialístico Diário íntimo -- expressão do  intransigente e obstinado repúdio  para as coisas da política, aos políticos, aos conchavos partidários,às oligarquias ,  Lima Barreto os “contos argelinos”   têm  em seu cerne paródico a ascensão dos militares, com sua crescente  participação  na política, e o militarismo —  importando notar que, em outro viés de leitura e interpretação, trazem em si a  emblematização ficcional do patrimonialismo, contra o qual  Lima Barreto  se colocava na própria essência  de sua ideologia.
A criação, confecção e publicação desses 46 contos deram-se em período histórico conturbado, durante os sucessivos governos de Hermes da Fonseca, Venceslau Brás e Epitácio Pessoa, em sete dos mais cruciais anos de plena sedimentação do regime republicano  — de resto um processo  de altíssima ebulição política, convulsionante e transformadora.
 Por essa época , apenas  Lima Barreto (Euclydes da Cunha morrera em 1909) mantinha , entre os escritores, uma postura participativa – de natureza crítica -- nas coisas da política , uma vez que os demais literatos se afastaram  do envolvimento e da militância a que se entregaram ainda durante as campanhas abolicionista e republicana, nas últimas décadas do século XIX e início do século XX : frustrados a expectativa e o entusiasmo iniciais despertados pela República , os intelectuais desistiram da participação política ativa, militante, que muitos tiveram no advento do novo regime e passaram a se concentrar na literatura e em parte no jornalismo ‘croniquesco’, dedicando-se  a produzir uma literatura de  linguagem empolada, o ‘clássico’ calcado em expressões cediças e de figuras de efeito, cheia de arabescos estilísticos — uma literatura  impregnada de vocábulos garimpados do virtuosismo lingüístico e verborrágico,expressão da frivolidade dominante. Uma literatura como “o sorriso da sociedade” de que falava Afrânio Peixoto e contra a qual Lima Barreto lutava com denodo.
No lado oposto, além da ferrenha oposição à escrita aristocrática predominante , destoando e substancialmente contrário aos estilos vigentes, Lima Barreto por essa época já era respeitado como articulista e cronista e reconhecido como excepcional escritor mercê dos elogiados romances publicados Recordações do escrivão Isaias Caminha(1909) e Triste fim de Policarpo Quaresma (1915)—que rejeitava terminantemente fazer de tanto de seu trabalho jornalístico como de sua obra literária, fosse ficcional ou não-ficcional, “instrumento de propaganda do sonho republicano de falso progresso e falsa civilização”. Sustentava ele que fazia “uma literatura militante, de obras que se ocupam com o debate das questões da época (...), por oposição às letras que, limitando-se às preocupações da forma, dos casos sentimentais e amorosos e da idealização da natureza”.
Na contrapartida ao aristocratismo da escrita de então , aos nefelibatas da linguagem, tinha-se em Lima Barreto um registro da  língua ‘brasileira’ do início do século XX e um ritmo genuinamente nacional  que prenunciava a linguagem modernista. 
Contrariamente à maioria de seus contemporâneos,  Lima Barreto conferia à sua obra ficcional o sentido militante de uma “missão social, de contribuir para a felicidade de um povo ,de uma nação, da humanidade” Em sua concepção, a literatura tinha de ser “militante”, com objetivo concreto e definido, como sentencia em entrevista a A Época,18.02.1916 : “(...)não desejamos mais uma literatura contemplativa, cheia de ênfase e arrebiques ,falsa e sem finalidade, o que raramente ela foi; não é mais uma literatura plástica que queremos, a encontrar beleza em deuses para sempre mortos, manequins atualmente, pois a alma que os animava já se evolou com a morte dos que os adoravam; digamos não a uma  literatura puramente contemplativa, estilizante sem cogitações outras que não as da arte poética, consagrada no círculo dos grandes burgueses embotados pelo dinheiro, de amplo emprego por pretensos intelectuais,bacharéis e políticos”  (...) “a obra de arte tem por fim dizer o que os simples fatos não dizem. Este é meu escopo. Vim para a literatura com todo o desinteresse e toda coragem. As letras são o fim da minha vida. Eu não peço delas senão aquilo que elas me podem dar: glória!”
 Dono de obra ficcional e não-ficcional com vigoroso fulcro ideológico, Lima Barreto buscava na politização da literatura um sentido sobretudo ético.Na única conferência literária que faria, mas não o fez — “O destino da Literatura” [publicada na Revista Souza Cruz,Rio de Janeiro, 1921 , em cujo número também apareceu trecho do romance O cemitério dos vivos ], em Rio Preto, São Paulo, em fevereiro de 1921 — foi explícito :“A Beleza não está na forma, no encanto plástico, na proporção e harmonia das partes, como querem os helenizantes de última hora . A importância da obra literária que se quer bela sem desprezar os atributos externos de perfeição de forma, de estilo, deve residir na exteriorização de um certo e determinado pensamento de interesse humano(...) E o destino da literatura é tornar sensível, assimilável, vulgar esse grande ideal de fraternidade e de justiça entre os homens para que ela cumpra ainda uma vez sua missão quase divina. Mais do que qualquer outra atividade espiritual da nossa espécie, a Arte, especialmente a Literatura, a que me dediquei e com quem me casei; mais do que ela, nenhum outro qualquer meio de comunicação entre os homens, em virtude mesmo do seu poder de contágio, teve, tem e terá um grande destino em nossa triste humanidade.”
 Marginalizado por suas origens e condição social, execrado por ser ‘passadista e contrário à modernização’, Lima Barreto enfrentou as marcas de seu tempo e da sociedade brasileira que lhe foi contemporânea. Seu projeto era um projeto para uma vida inteira de militância literária contra o preconceito, mas também “contra os falsos intelectuais, contra um academismo espelhado no modelo europeu, contra uma literatura só de deleite, como ornamento”. Para ele, a literatura era uma verdadeira missão. A pretensa beleza estilística, os atributos externos formais de perfeição, de forma, de estilo, de vocabulário, não poderiam prescindir da “exteriorização de um certo e determinado pensamento de interesse humano, que fale do problema angustioso do nosso destino em face do Infinito e do Mistério que nos cerca, e aluda às questões de nossa conduta na vida” [Bagatelas ; Empresa de Romances Populares, Rio de Janeiro,1923].
Tanto nos romances e contos como nas crônicas e artigos, Lima Barreto  exerceu sempre uma crítica à cultura da modernidade contra a opressão social e a hipocrisia política — tal como se revelaram na implementação da República . A opção por uma literatura militante determinou o caráter marginal (e ‘revolucionário’, para muitos estudiosos) de sua obra : sua visão crítica da sociedade, da política e da cultura, renderam-lhe frutos amargos — desprezo do público, penúria econômica, alcoolismo e doença, internação em manicômio — mas nada o fez submeter-se aos ditames da moda e dos valores culturais da República. 
A “esperança” mencionada por Lima Barreto na entrevista de 1916 alimentava-se na verdade da recusa impassível em transigir com o que demandava popularidade — o aburguesamento do escritor, por via da adesão aos temas da moda, que fortaleciam os interesses políticos, econômicos, sociais e culturais da República. Nada porém o fez submeter-se a esses valores.







[1] bovarismo, conceito cunhado  pelo filósofo francês Jules de Gaultier em sua obra  Le Bovarysme, em 1892, advindo de Gustave Flaubert e sua Madame Bovary, seja em relação à figura do artista ‘sonhador irresponsável’ seja a um  comportamento artificial simbolizando um falseamento da vida,um desejo irreal de fuga –  o abismo que se abre entre as duas escalas, a da realidade e a do imaginário, conferindo-lhe  uma dimensão ao mesmo tempo trágica e irônica ; o termo é especialmente empregado também com o sentido da alienação intelectual que precede a construção de uma identidade cultural própria. Lima Barreto -- para quem o bovarismo era uma atitude mistificatória típica da nova elite, extremamente prejudicial para o país, “o  poder partilhado no homem de se conceber outro que não é, o afastamento entre o indivíduo real e o imaginário,entre o que é e o que acredita ser” -- aplicou esse conceito tanto literariamente – no romance Triste fim de Policarpo Quaresma e  nos contos “A biblioteca”, “Lívia” e “Na janela” aparece como a  própria essência dos textos – quanto socialmente : segundo ele, a República estava toda imersa em atitudes bovaristas e ,pior,  os próprios intelectuais, teoricamente dotados de maior capacidade e lucidez críticas, mergulharam desde o início numa militância ufanista,destemperada, de otimismo ingênuo ; e esse ufanismo bovarista era uma forma terrível de se alienarem dos graves problemas do  país.
[2] Sobre a carestia”, in O Debate, 15.09.1917.
[3] em dezembro de 1909,Lima Barreto editara com Antônio Noronha Santos (o maior de seus amigos) um panfleto contra a candidatura Hermes da Fonseca à presidência da República, intitulado “O Papão – semanário dos bastidores da política,das artes e... das candidaturas”.

sábado, 11 de outubro de 2014

INÉDITOS DE MACHADO DE ASSIS


acaba de se dar à luz: edição especial da ABL [que,de minha lavra, me prestigia ainda com Crônicas inéditas de Arthur Azevedo, 1886-87 (publicado em fevereiro 2014) e com "A cidade maravilhosa, de Coelho Neto" (ora no prelo) .
-- em Machado e de Machado, nada se esgota, sempre há,e haverá, o que revelar...(dele, eu já resgatara,em 2008, o conto então perdido "Um para o outro", incluído no livro Contos de Machado de Assis : relicários e raisonnés)
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Apresenta-se aqui uma coletânea de textos inéditos de Machado de Assis : recolhidos nas suas respectivas fontes primárias, até então nunca publicadas em livro ou obra impressa ou em outros meio e suporte, inclusive digital ou audiovisual, que não a veiculação original nos periódicos que lhe deram origem, em determinados anos do século XIX.
Dotados, cada um deles, de peculiaridades próprias, reúnem-se no presente conjunto, textos machadianos de gêneros diversos -- uma crônica (a primeira por ele publicada,de alto teor político) ; um editorial (essencialmente político – escrito por injunções e circunstâncias peculiares) ; um conto (inacabado, mas originário e ‘embrião’ de outro publicado depois e incorporado à sua obra ; uma tradução (de conferências científicas, voltadas à Educação – bastante diferenciado na atividade tradutória machadiana) ; um prólogo a tradução (de poema conhecido – mas desconhecida a introdução exclusiva no periódico) – expostos sob a sequência cronológica em que se deram na origem -- respectivamente junho de 1859; maio de 1863; fevereiro de 1866; dezembro de 1866,;dezembro de 1866; julho de 1873 e fevereiro de 1875 -- e agrupados em claves específicas que os referencia : “Desde sempre, essencialmente político”; “Um parênteses na contística machadiana”; “Traduttore – nunca ‘traditore’,
Estas, as matérias básicas a comporem a obra: fazem - se acompanhar de comentários específicos e breves estudos, especialmente escritos para a presente coletânea, sobre a crônica, o conto e a tradução de Machado de Assis.
Reveste-se este livro de notável relevância histórico-bibliográfico que escritos de Machado de Assis -- sempre indispensável de ser difundido – per se abrigam; ainda mais da natureza dos textos aqui expostos e comentados : manifestações de ineditismo -- imprescindíveis de se darem à luz -- a contribuírem para dar a público mais elementos valiosos da magnífica obra literária do grande nome da cultura brasileira.
                                                                                                                   

terça-feira, 7 de outubro de 2014

O cinema vai à literatura (e a literatura se vale do cinema)

a propósito do Festival do Rio 2014 (que,projetadas as cenas desde 24.09 encerra-se neste 08.10 
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o cinema sempre  é  objeto  do foco, das luzes; e como a literatura,  ,  sempre presente no imaginário e no  cotidiano de praticamente todas as pessoas no mundo.
elementos  mais do que suficiente  para examinar as relações entre cinema e literatura
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Todos os eventos,  ocasiões, oportunidades e motivos  são excelentes por  permitir uma reflexão sobre a sempre vigente relação literatura-cinema , com suas interseções, confluências ...e divergências . Poucas formas artísticas estabelecem entre si tantas relações de sentido mútuo, ainda que sujeitas a entreveros e embates, acusações de “infidelidade autoral”, polêmicas sobre liberdades de criação, etc.-- até porque são diferenciadas as linguagens e distintos os respectivos códigos e modos de funcionamento : narrativa literária e narrativa fílmica distinguem-se e na maioria dos casos  contrastam- se; são  sempre  difíceis as transposições de uma para o outro, pois as características intrínsecas do texto literário -- originalidades, subjetividades, entrelinhas, elaboramentos -- por princípio não encontram a mesma expressão na narrativa cinematográfica.
A par das diferenças, entre a página e a tela há laços  estreitos -- em forma de ‘mão e contra-mão’ : a página contém palavras que acionarão os sentidos e se transformam na mente do leitor em imagens; a tela abriga imagens em movimento que serão decodificadas pelo expectador  por meio de palavras.Entre a literatura e o cinema, há um parentesco originário, diálogo que se acentuou sobremaneira após a intermediação dos processos tecnológicos. Assim, a enorme e expressiva influência da literatura sobre o cinema tem sua contrapartida, por meio de um  ‘cinema interior ou mental’ sobre a literatura e as artes em geral, mesmo em uma época precedente ao advento dos artefatos técnicos.
Optando pela modalidade narrativa, o cinema roubou da literatura parte significativa da tarefa de contar histórias, tornando-se, de início, um fiel substituto do folhetim romântico. E, apesar de experimentações mais ousadas, como a "Avant-Garde" francesa da década de 1920, ou o surrealismo cinematográfico, que buscaram fugir dessa linha, a narratividade continua a ser o traço hegemônico da cinematografia.
Daí, adaptar para o cinema ou para a televisão — meios reconhecidamente ligados à cultura de massa — obras de autores como Shakeaspeare, Dostoiévski, Tolstói, Balzac, Flaubert, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, para citar apenas alguns nomes de relevo no panorama universal e nacional — equivale a trazer para as mídias o prestígio da grande arte ou, no dizer de alguns, tornar a arte erudita acessível ao grande público. Mas a adaptação de obras literárias para o cinema e, posteriormente para a televisão --  meios que privilegiam a linha narrativa — também não se tem feito sem conflitos, pois as adaptações resultam sempre em empreendimentos insatisfatórios.
Não se pode negar que, principalmente em seu período clássico, o cinema tenha procurado na aproximação com a literatura uma forma de legitimar-se. E além das freqüentes adaptações de obras literárias para a tela, tornou-se prática corrente, em particular naquele período, a contratação de escritores como roteiristas. Assim é que, em Hollywood, notáveis escritores como William Faulkner, Scott Fritzgerald, Aldous Huxley, Gore Vidal, James Age,Nathanael West, dentre outros, tornaram-se os contadores de muitas histórias que comoveram o grande público e garantiram o sucesso de vários empreendimentos. Saber se tais roteiros traziam a marca da criação literária já é uma outra questão, que talvez possa ser analisada a partir da postura de alguns desses escritores-roteiristas. Faulkner, por exemplo, não fazia segredo sobre a natureza de sua atividade em Hollywood: "Faço apenas o que me dizem para fazer; é um emprego, e pronto."
“A literatura e cinema não são tão distantes assevera o pesquisador e professor do departamento de espanhol e português da University of California (UCLA), Randal Johnson – com quem tive oportunidade de conversar quando de sua estadia no Rio de Janeiro, em 2008, convidado pelo Programa de Pós-graduação da Escola de Comunicação (ECO-Pós) da UFRJ, para ministrar uma disciplina compactada sobre Cinema, Literatura e TV. Para ele, as relações entre cinema e literatura não se limitam às adaptações do texto escrito para a tela, apontando três outros importantes pontos de encontro : o primeiro seria os filmes feitos sobre escritores – de que gradativamente proliferam vários exemplos em cinematografias distintas; outro, seria o uso estrutural ou incorporação de textos literários no discurso cinematográfico – esta indubitavelmente a ocorrência maior; e também  o encontro da literatura e do cinema poderia se dar através de referências como alusões literárias nos diálogos e citações implícitas ou explícitas, visuais, orais ou escritas diretamente na tela – um expediente cada vez mais recorrente na produção contemporânea. Por outro lado,  Johnson critica  enfaticamente  a valorização do texto literário sobre o discurso cinematográfico, sustentando ser  muito comum entre os espectadores uma exigência de fidelidade do filme ao livro. A insistência na fidelidade da adaptação cinematográfica à obra literária originária,pode resultar em julgamentos superficiais que freqüentemente valorizam a obra literária em detrimento da adaptação, sem uma reflexão mais profunda. Os filmes são julgados criticamente porque, de um modo ou de outro, não são “fieis” à obra modelo. O conceito, de ‘fidelidade’ assume conotação crucial,tornando-se na discussão\reflexão do relacionamento entre cinema e literatura, no chamado ‘x da questão’ : tudo, a rigor, gravita em torno disso.
Às vezes a mais fiel das adaptações faz o pior dos filmes, porque o material não se presta a uma história filmada e, na forma como está escrito, não funciona na tela, por mais forte que seja a história no original.
Esse freqüente discurso da fidelidade baseia-se,a meu juízo, na crença difundida de que a literatura é superior ao cinema, um preconceito devido ao fato da literatura ser anterior no tempo ao cinema, o que pode levar à idéia de que o livro é historicamente mais nobre e o filme secundário -- além evidentemente do pensamento de que cinema e literatura são rivais a partir da crença na idéia de que o filme adaptado suga e destrói o que é essencial no livro.
Na verdade, desde que o cinema é cinema, a literatura tem sido um de seus pontos de partida – as relações entre o cinema e a literatura são tão fortes que alguns estudiosos chegam a afirmar a sua existência antes mesmo do surgimento do cinema. Para isto evocam uma teoria limite, segundo a qual há uma essência do cinema, de um “pré-cinema” embutido em alguns textos literários anteriores à forma de expressão cinematográfica, e que teriam como especificidade o fato de os escritores ordenarem o relato em função da incidência do olhar do narrador, da sua ‘ocularização’ da cena a narrar. Desse modo, a narrativa cinematográfica já se encontraria latente em alguns textos narrativos literários, e  a relação logo passou a trilhar indissolúvel (sic)  mão dupla, quando literatos e dramaturgos começaram a se inspirar no cinema para formar narrativas em prosa e em  poesia. A rigor, as diferenças entre textos literários e filmes neles apoiados são marcadas por historicidades específicas de cada linguagem --- isto é, o tempo histórico que cada um retrata (um filme realizado na década de 2000 abriga um relato literário escrito ou passado em 1890 , ou em 1950, etc ) : e o  momento histórico de cada um é que se constitui faceta que conduz a inevitáveis diferenças. Nenhum filme ‘repete’ uma obra literária, nenhuma obra literária ‘repete’ um filme, quer pelas diferenças de linguagem, quer pelo momento próprio de produção e circulação de cada um de seus produtos.
 Essa intrínseca,  dialógica e dinâmica relação nasce no momento em que o cinema descobre seu potencial digamos literário, ao absorver o modelo narrativo do romance do século XIX a subsidiá-lo para melhor contar histórias – malgrado podermos hoje levantar a reflexão em plena  era da imagem digital em que vivemos : o cinema  continuaria ‘preso’ a um modelo narrativo já ,em maior ou menor grau, superado pela própria literatura? .Se o cinema beneficiou-se do romance do século XIX, por que na era da imagem digital, quando a capacidade plástica do cinema atinge seu ponto mais alto, continuam-se a ilustrar romances do século XIX?

Examinado detidamente com isento rigor crítico, no campo da narrativa, em sua já longa história, o cinema não sofreu muitas variações – malgrado certas exceções, como experimentos ‘de vanguarda’ – e vem à mente, por aproximação etimológica, a  “Nouvelle Vague” da década de 1960 , que se propunha a romper  com a lógica linearizante da estética e da narrativa fílmica de até então, inspirada num congênere da seara literária, o “nouveau roman”—ambas dialogando entre si pelas respectivas técnicas narrativas, num movimento de realimentação recíproco entre as duas linguagens.Convém não esquecer,entretanto, que sob a égide de suas  afinidades com a cultura literária, se o cinema europeu tendia, então, a se afastar do modelo romanesco tradicional, a indústria cinematográfica hollywoodiana, voltada para o entretenimento, consolidou-se seguindo padrões já consagrados da narrativa literária – levando  Jorge Luis Borges  a  observar que, com os westerns, “Hollywood, por razões comerciais, naturalmente, salvou a épica, num tempo em que os poetas tinham esquecido que a poesia começou pela épica”.Tanto uma quanto o outro buscando ultrapassar  as limitações formais e “não procurando  ordenar o caos”, ao contrário, o caos tornando-se o princípio da criação. Os cineastas da “Nouvelle Vague”, p. ex., queriam mostrar que nem tudo faz sentido e que os caminhos são múltiplos; e por fim  aquilo que Jean Cocteau afirmou sobre o cinema pode agora se efetivar, pois para ele, os filmes só seriam bons quando fossem acessíveis como uma caneta e um papel.
Contudo, há de se atentar para um outro viés, uma espécie de contra-mão no processo de interação cinema-literatura, no caso um contrafluxo mediado, executado,e recentemente cada vez mais incentivado pelo setor editorial e mercado livreiro – nos quais dá-se o crescente movimento de publicação de  livros motivados... pelo cinema :roteiros de filmes, diários de filmagens, histórias sobre a elaboração de filmes(making-of), edição ou reedição de obras literárias abrigando imagens e outros elementos iconográficos  que remetem para os filmes realizados a partir da adaptação da obra para  o cinema – uma subversão das relações entre cinema e literatura.  De resto, uma tendência à qual  avolumam-se questionamentos sobre até que ponto  sinaliza tanto  ‘perda de prestígio’ e ‘distorção\vulgarização’ da matéria  literária, como sobretudo ‘dessacralização’ da literatura,  tênues que se tornam cada vez mais as fronteiras entre ela e outros tipos de bens culturais que circulam pela mídia.e no seio de consumo da sociedade.
Das mesmas forma e diapasão e desse processo decorrente, deflagra-se ao longo da segunda metade do século XX, por parte e ação do setor  editorial ,a  contrapartida à incorporação da obra literária,fosse best seller ou não – muitas criadas especificamente para se transporem à tela – pelo cinema , com o relançamento de romances adaptados e especialmente com a publicação de roteiros .Toda a literatura poderia, então, ser considerada como texto básico para um filme, e na direção oposta, parece que o cinema vem buscando cada vez mais o espaço do livro, no que o mercado editorial explora o filão das publicações derivadas de filmes.
Por outro lado e em outra vertente, ao praticarem exercícios literários, cineastas e roteiristas via de regra imprimem a suas narrativas muito mais o teor, o timbre, o ritmo, o timing fílmico -- e menos literário. E além  disso, mesmo que sua estória e trama seja de ação,de movimento, costumam  lidar  com o onírico, o  sonho , e com o psicológico -- que é, sabemos,  elemento recorrente ao extremo no cinema, do expressionismo alemão a Stroheim, de Bergman a Buñuel, de Resnais a Godard. Não poderia ser de outra forma, pois são eles  antes e acima  de tudo pessoas do cinema.
 Tudo isso propicia um exercício de reflexão e indagação: as incursões de cineastas e de profissionais de tv na literatura podem ser bem resolvidas e bem sucedidas ? O caso é que um diretor de cinema ou de tv  quando vai à literatura  leva com ele uma bagagem da linguagem  -- o ritmo, o corte abrupto, o esperar pronto entendimento do leitor, qual um espectador -- e assim  comete  pecados e pecadilhos marcantes . Ao contrário, um escritor que vai para o cinema -- como roteirista, quase sempre -- o faz melhor, sabe adaptar, mostra-se mais seguro, os resultados são melhores: caso de Rubem Fonseca, dos exemplos clássicos dos escritores norte-americanos com Hollywood, e ainda de Jean Louis Carrière , Dalton Trumbo no cinema europeu.
Sob essa perspectiva, é comum cineastas em incursões literárias  atuarem numa espécie de contramão, na via inversa do terreno do relacionamento -- ou do embate -- literatura/cinema ; os questionamentos sobre “apropriação de obras literárias por cineastas”, ao realizar filmes, ganha outro contorno, de sinal trocado : no caso, um cineasta não pega um livro e faz um filme -- e vale lembrar que  para o escritor Autran Dourado “não existe livro filmado, existe filme baseado em livro” -- mas escreve um livro com elementos e ‘cacoetes’ de filme. Sai de seu habitat original e vem para outro, mas utilizando o mesmíssimo instrumental, na vã tentativa de sintetizar o mimetismo palavra-imagem.

No ‘umbelical’ -- nada dicotômico, portanto -- relacionamento do cinema com a literatura, podem ser extraídos, ou inferidos\induzidos, alguns elementos que responderiam a Stanley Kubrick -- para quem “tudo que pode ser escrito e pensado pode ser filmado” --  também provando o inevitável  desejo de cineastas e roteiristas, ao escreverem uma obra literária, replicando a Kubrick, que  ‘tudo que pode ser filmado poderia ser escrito’...


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