sábado, 18 de outubro de 2014
Em tempo de eleições : Lima Barreto e a política
Em essência, Lima Barreto sempre tratou mais
de política do que qualquer outro tema. Ninguém como ele, em seu tempo,
escreveu tanto sobre o tema e, por extensão, sobre questões sociais. Sua ‘literatura militante’,
assim por ele definida, determina o caráter marginal de sua obra: sua visão
crítica da sociedade o fez enveredar concreta e irreversivelmente no caminho da
luta social; nos jornais e revistas investiu contra todos os signos do poder,
nos textos ficcionais denunciou as profundas injustiças da sociedade
brasileira.
Toda a obra barretiana desenvolve-se a
partir e em torno de um tema nuclear: o
poder e seus efeitos discricionários — o poder
visto e descrito por ele como “o
variado conjunto de elementos, vetores e procedimentos encadeados no interior
da sociedade, compondo grandes e pequenas cadeias, visíveis e invisíveis,
tendentes a restringir e constringir o pensamento dos homens, coibindo-lhes as
possibilidades de afirmação, pessoal, cultural, profissional, social, e a justa
inserção social”. Tinha a visão verticalizada, analisando desde as
estruturas políticas como o governo e as ideologias, e as instituições
culturais como a imprensa e a ciência, até os modelos determinantes do
comportamento coletivo e do relacionamento cotidiano. Lima Barreto era, acima
de tudo, um anti-patrimonialista.
Crítico implacável da pretensa modernidade que
se queria implementar com a República, avesso a todas as formas de assimilação
de valores estrangeiros (no bojo, p. ex. de sua resistência ao futebol, ao
cinema e à cultura importada ), defensor ,por vezes intransigente, de uma
brasilidade que sustentava devia permear a “autêntica língua nacional”, foi no
entanto opositor ativo do nacionalismo
ufanista surgido no final do séc. XIX e início do XX,a começar por questionar as imagens errôneas que o Brasil
fazia de si mesmo, levando ad absurdum os clichês e mitos nacionalistas e os
desmascarando um a um.(no romance Triste
fim de Policarpo Quaresma parodia
implicitamente o opúsculo patrioteiro de Afonso Celso, filho de seu protetor,
intitulado Por que me ufano do meu país
(1901), livro muito popular no começo do século XX, que deu origem ao termo
ufanismo e foi traduzido para diversas línguas na época, inclusive o alemão. Lima Barreto inclusive alertava para
o que denominava “um dos mitos mais
perigosos,o do patriotismo : no fundo, os patriotas grandiloqüentes de plantão
não passam de traidores da pátria, pois a usam para a sua própria autopromoção
e enriquecimento (...), a sociedade
de classes e o Estado a
instrumentalizarem o patriotismo e o nacionalismo em favor do interesse das
elites.”. Na contrapartida, procurou esboçar um patriotismo social, com
consciência histórica e respeito pela cidadania, ancorado na cultura própria,
resistente ao cosmopolitismo e de reconhecimento da mestiçagem – étnica,social
e cultural --no Brasil.
Para
ele, a nova sociedade ,caracterizada
pelo binômio cosmopolitismo, inspirador das ações da elite do país , e
bovarismo[1],
“atitude mistificatória de o homem se
conceber outro que não é, entre o que é e o que acredita ser”, era um
sistema que premiava o egoísmo, o banal, a decadência dos costumes, o
preconceito, lastreada nos valores máximos da elite – a fruição do conforto
material, os privilégios, a superioridade, gerando discriminação e
sectarismo. “A nossa República se
transformou no domínio de um feroz sindicato de argentários cúpidos, com os
quais só se pode lutar com armas na mão. Deles saem todas as autoridades, deles
são os grandes jornais, deles saem as graças e os privilégios; e sobre a Nação
eles teceram uma rede de malhas estreitas, por onde não passa senão aquilo que
lhes convém” [2]
Lima Barreto,em sua fértil produção
contística, publicou 46 contos de teor explicitamente político – ainda que em
alguns deles, caso específico do conjunto de 13 textos que ele próprio batizou
de “contos argelinos”, se utilize da alegoria e do simulacro. Exemplares
insofismáveis de veemente oposição à República, da ferrenha crítica aos
governos republicanos ,notoriamente o ‘florianismo’ (referente a Floriano Peixoto) e o ‘hermismo’ ( a Hermes
da Fonseca)[3]
-- já objetos de críticas exacerbadas em inúmeros artigos e crônicas e também
na novela Numa e a ninfa e no memorialístico Diário íntimo --
expressão do intransigente e obstinado
repúdio para as coisas da política, aos
políticos, aos conchavos partidários,às oligarquias , Lima Barreto os “contos argelinos” têm
em seu cerne paródico a ascensão dos militares, com sua crescente participação
na política, e o militarismo — importando
notar que, em outro viés de leitura e interpretação, trazem em si a emblematização ficcional do patrimonialismo,
contra o qual Lima Barreto se colocava na própria essência de sua ideologia.
A
criação, confecção e publicação desses 46 contos deram-se em período histórico
conturbado, durante os sucessivos governos de Hermes da Fonseca, Venceslau Brás
e Epitácio Pessoa, em sete dos mais cruciais anos de plena sedimentação do
regime republicano — de resto um processo de altíssima ebulição política,
convulsionante e transformadora.
Por
essa época , apenas Lima Barreto (Euclydes
da Cunha morrera em 1909) mantinha , entre os escritores, uma postura
participativa – de natureza crítica -- nas coisas da política , uma vez que os
demais literatos se afastaram do
envolvimento e da militância a que se entregaram ainda durante as campanhas
abolicionista e republicana, nas últimas décadas do século XIX e início do
século XX : frustrados a expectativa e o entusiasmo iniciais despertados pela
República , os intelectuais desistiram da participação política ativa,
militante, que muitos tiveram no advento do novo regime e passaram a se
concentrar na literatura e em parte no jornalismo ‘croniquesco’,
dedicando-se a produzir uma literatura
de linguagem empolada, o ‘clássico’
calcado em expressões cediças e de figuras de efeito, cheia de arabescos
estilísticos — uma literatura impregnada
de vocábulos garimpados do virtuosismo lingüístico e verborrágico,expressão da
frivolidade dominante. Uma literatura como “o sorriso da sociedade” de que
falava Afrânio Peixoto e contra a qual Lima Barreto lutava com denodo.
No
lado oposto, além da ferrenha oposição à escrita aristocrática predominante ,
destoando e substancialmente contrário aos estilos vigentes, Lima Barreto por
essa época já era respeitado como articulista e cronista e reconhecido como
excepcional escritor mercê dos elogiados romances publicados Recordações do escrivão Isaias Caminha(1909)
e Triste fim de Policarpo Quaresma
(1915)—que rejeitava terminantemente fazer de tanto de seu trabalho
jornalístico como de sua obra literária, fosse ficcional ou não-ficcional,
“instrumento de propaganda do sonho republicano de falso progresso e falsa
civilização”. Sustentava ele que fazia “uma
literatura militante, de obras que se ocupam com o debate das questões da época
(...), por oposição às letras que,
limitando-se às preocupações da forma, dos casos sentimentais e amorosos e da
idealização da natureza”.
Na
contrapartida ao aristocratismo da escrita de então , aos nefelibatas da
linguagem, tinha-se em
Lima Barreto um registro da
língua ‘brasileira’ do início do século XX e um ritmo genuinamente
nacional que prenunciava a linguagem
modernista.
Contrariamente
à maioria de seus contemporâneos, Lima
Barreto conferia à sua obra ficcional o sentido militante de uma “missão
social, de contribuir para a felicidade de um povo ,de uma nação, da
humanidade” Em sua concepção, a literatura tinha de ser “militante”, com
objetivo concreto e definido, como sentencia em entrevista a A Época,18.02.1916
: “(...)não desejamos mais uma literatura contemplativa, cheia de ênfase e
arrebiques ,falsa e sem finalidade, o que raramente ela foi; não é mais uma
literatura plástica que queremos, a encontrar beleza em deuses para sempre
mortos, manequins atualmente, pois a alma que os animava já se evolou com a
morte dos que os adoravam; digamos não a uma
literatura puramente contemplativa, estilizante sem cogitações outras
que não as da arte poética, consagrada no círculo dos grandes burgueses embotados
pelo dinheiro, de amplo emprego por pretensos intelectuais,bacharéis e
políticos” (...) “a obra
de arte tem por fim dizer o que os simples fatos não dizem. Este é meu escopo.
Vim para a literatura com todo o desinteresse e toda coragem. As letras são o
fim da minha vida. Eu não peço delas senão aquilo que elas me podem dar:
glória!”
Dono
de obra ficcional e não-ficcional com vigoroso fulcro ideológico, Lima Barreto
buscava na politização da literatura um sentido sobretudo ético.Na única
conferência literária que faria, mas não o fez — “O destino da Literatura”
[publicada na Revista Souza Cruz,Rio de Janeiro, 1921 , em cujo número
também apareceu trecho do romance O cemitério dos vivos ], em Rio Preto , São Paulo, em
fevereiro de 1921 — foi explícito :“A Beleza não está na forma, no encanto
plástico, na proporção e harmonia das partes, como querem os helenizantes de
última hora . A importância da obra literária que se quer bela
sem desprezar os atributos externos de perfeição de forma, de estilo, deve residir
na exteriorização de um certo e determinado pensamento de interesse humano(...)
E o destino da literatura é tornar sensível, assimilável, vulgar esse grande
ideal de fraternidade e de justiça entre os homens para que ela cumpra ainda
uma vez sua missão quase divina. Mais do que qualquer outra atividade
espiritual da nossa espécie, a Arte, especialmente a Literatura, a que me
dediquei e com quem me casei; mais do que ela, nenhum outro qualquer meio de
comunicação entre os homens, em virtude mesmo do seu poder de contágio, teve,
tem e terá um grande destino em nossa triste humanidade.”
Marginalizado
por suas origens e condição social, execrado por ser ‘passadista e contrário à
modernização’, Lima Barreto enfrentou as marcas de seu tempo e da sociedade brasileira
que lhe foi contemporânea. Seu projeto era um projeto para uma vida inteira de
militância literária contra o preconceito, mas também “contra os falsos
intelectuais, contra um academismo espelhado no modelo europeu, contra uma
literatura só de deleite, como ornamento”. Para ele, a literatura era uma
verdadeira missão. A pretensa beleza estilística, os atributos externos formais
de perfeição, de forma, de estilo, de vocabulário, não poderiam prescindir da “exteriorização de um certo e determinado pensamento
de interesse humano, que fale do problema angustioso do nosso destino em face
do Infinito e do Mistério que nos cerca, e aluda às questões de nossa conduta
na vida” [Bagatelas ; Empresa de Romances Populares, Rio de
Janeiro,1923].
Tanto nos romances e contos como nas crônicas
e artigos, Lima Barreto exerceu sempre
uma crítica à cultura da modernidade contra a opressão social e a hipocrisia
política — tal como se revelaram na implementação da República . A opção por
uma literatura militante determinou o caráter marginal (e ‘revolucionário’,
para muitos estudiosos) de sua obra : sua visão crítica da sociedade, da
política e da cultura, renderam-lhe frutos amargos — desprezo do público,
penúria econômica, alcoolismo e doença, internação em manicômio — mas nada o
fez submeter-se aos ditames da moda e dos valores culturais da República.
A “esperança” mencionada por Lima
Barreto na entrevista de 1916 alimentava-se na verdade da recusa impassível em
transigir com o que demandava popularidade — o aburguesamento do escritor, por
via da adesão aos temas da moda, que fortaleciam os interesses políticos,
econômicos, sociais e culturais da República. Nada porém o fez submeter-se a
esses valores.
[1] bovarismo, conceito cunhado pelo filósofo francês Jules de Gaultier em
sua obra Le Bovarysme, em 1892, advindo de Gustave Flaubert e sua Madame
Bovary, seja em relação à figura do artista ‘sonhador irresponsável’ seja a
um comportamento artificial simbolizando
um falseamento da vida,um desejo irreal de fuga – o abismo que se abre entre as duas escalas, a
da realidade e a do imaginário, conferindo-lhe
uma dimensão ao mesmo tempo trágica e irônica ; o termo é especialmente
empregado também com o sentido da alienação intelectual que precede a construção
de uma identidade cultural própria. Lima Barreto -- para quem o bovarismo era
uma atitude mistificatória típica da nova elite, extremamente prejudicial para
o país, “o poder partilhado no homem de se conceber
outro que não é, o afastamento entre o indivíduo real e o imaginário,entre o
que é e o que acredita ser” -- aplicou esse conceito tanto literariamente –
no romance Triste fim de Policarpo Quaresma e nos contos “A biblioteca”, “Lívia” e “Na
janela” aparece como a própria essência
dos textos – quanto socialmente : segundo ele, a República estava toda imersa
em atitudes bovaristas e ,pior, os
próprios intelectuais, teoricamente dotados de maior capacidade e lucidez
críticas, mergulharam desde o início numa militância ufanista,destemperada, de
otimismo ingênuo ; e esse ufanismo bovarista era uma forma terrível de se
alienarem dos graves problemas do país.
[2] “Sobre a carestia”, in O
Debate, 15.09.1917.
[3] em dezembro de 1909,Lima Barreto editara com Antônio
Noronha Santos (o maior de seus amigos) um panfleto contra a candidatura Hermes
da Fonseca à presidência da República, intitulado “O Papão – semanário dos
bastidores da política,das artes e... das candidaturas”.
sábado, 11 de outubro de 2014
INÉDITOS DE MACHADO DE ASSIS
acaba de se dar à luz: edição especial da ABL [que,de minha lavra, me prestigia ainda com Crônicas inéditas de Arthur Azevedo, 1886-87 (publicado em fevereiro 2014) e com "A cidade maravilhosa, de Coelho Neto" (ora no prelo) .
-- em Machado e de Machado, nada se esgota, sempre há,e haverá, o que revelar...(dele, eu já resgatara,em 2008, o conto então perdido "Um para o outro", incluído no livro Contos de Machado de Assis : relicários e raisonnés)
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Apresenta-se aqui uma coletânea de textos inéditos de Machado de Assis : recolhidos nas suas respectivas fontes primárias, até então nunca publicadas em livro ou obra impressa ou em outros meio e suporte, inclusive digital ou audiovisual, que não a veiculação original nos periódicos que lhe deram origem, em determinados anos do século XIX.
Dotados, cada um deles, de peculiaridades próprias, reúnem-se no presente conjunto, textos machadianos de gêneros diversos -- uma crônica (a primeira por ele publicada,de alto teor político) ; um editorial (essencialmente político – escrito por injunções e circunstâncias peculiares) ; um conto (inacabado, mas originário e ‘embrião’ de outro publicado depois e incorporado à sua obra ; uma tradução (de conferências científicas, voltadas à Educação – bastante diferenciado na atividade tradutória machadiana) ; um prólogo a tradução (de poema conhecido – mas desconhecida a introdução exclusiva no periódico) – expostos sob a sequência cronológica em que se deram na origem -- respectivamente junho de 1859; maio de 1863; fevereiro de 1866; dezembro de 1866,;dezembro de 1866; julho de 1873 e fevereiro de 1875 -- e agrupados em claves específicas que os referencia : “Desde sempre, essencialmente político”; “Um parênteses na contística machadiana”; “Traduttore – nunca ‘traditore’,
Estas, as matérias básicas a comporem a obra: fazem - se acompanhar de comentários específicos e breves estudos, especialmente escritos para a presente coletânea, sobre a crônica, o conto e a tradução de Machado de Assis.
Reveste-se este livro de notável relevância histórico-bibliográfico que escritos de Machado de Assis -- sempre indispensável de ser difundido – per se abrigam; ainda mais da natureza dos textos aqui expostos e comentados : manifestações de ineditismo -- imprescindíveis de se darem à luz -- a contribuírem para dar a público mais elementos valiosos da magnífica obra literária do grande nome da cultura brasileira.
terça-feira, 7 de outubro de 2014
O cinema vai à literatura (e a literatura se vale do cinema)
a propósito do Festival do Rio 2014 (que,projetadas as cenas desde 24.09 encerra-se neste 08.10
_____________________
o cinema sempre é
objeto do foco, das luzes; e como
a literatura, , sempre presente no imaginário e no cotidiano de praticamente todas as pessoas no
mundo.
elementos mais do que suficiente para examinar as
relações entre cinema e literatura
.
Todos os eventos, ocasiões, oportunidades e motivos são
excelentes por permitir uma reflexão
sobre a sempre vigente relação literatura-cinema , com suas interseções,
confluências ...e divergências . Poucas formas artísticas estabelecem entre si
tantas relações de sentido mútuo, ainda que sujeitas a entreveros e embates,
acusações de “infidelidade autoral”, polêmicas sobre liberdades de criação,
etc.-- até porque são diferenciadas as linguagens e distintos os respectivos
códigos e modos de funcionamento : narrativa literária e narrativa fílmica
distinguem-se e na maioria dos casos
contrastam- se; são sempre difíceis as transposições de uma para o
outro, pois as características intrínsecas do texto literário --
originalidades, subjetividades, entrelinhas, elaboramentos -- por princípio não
encontram a mesma expressão na narrativa cinematográfica.
A par das diferenças, entre a página e a tela há
laços estreitos -- em forma de ‘mão e
contra-mão’ : a página contém palavras que acionarão os sentidos e se
transformam na mente do leitor em imagens; a tela abriga imagens em movimento
que serão decodificadas pelo expectador
por meio de palavras.Entre a literatura e o cinema, há um parentesco
originário, diálogo que se acentuou sobremaneira após a intermediação dos
processos tecnológicos. Assim, a enorme e expressiva influência da literatura
sobre o cinema tem sua contrapartida, por meio de um ‘cinema interior ou mental’ sobre a
literatura e as artes em geral, mesmo em uma época precedente ao advento dos
artefatos técnicos.
Optando pela modalidade narrativa, o cinema roubou da
literatura parte significativa da tarefa de contar histórias, tornando-se, de
início, um fiel substituto do folhetim romântico. E, apesar de experimentações
mais ousadas, como a "Avant-Garde" francesa da década de 1920, ou o
surrealismo cinematográfico, que buscaram fugir dessa linha, a narratividade
continua a ser o traço hegemônico da cinematografia.
Daí,
adaptar para o cinema ou para a televisão — meios reconhecidamente ligados à
cultura de massa — obras de autores como Shakeaspeare, Dostoiévski, Tolstói,
Balzac, Flaubert, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, para
citar apenas alguns nomes de relevo no panorama universal e nacional — equivale
a trazer para as mídias o prestígio da grande arte ou, no dizer de alguns,
tornar a arte erudita acessível ao grande público. Mas a adaptação de obras
literárias para o cinema e, posteriormente para a televisão -- meios que privilegiam a linha narrativa —
também não se tem feito sem conflitos, pois as adaptações resultam sempre em
empreendimentos insatisfatórios.
Não se pode negar que, principalmente em seu período
clássico, o cinema tenha procurado na aproximação com a literatura uma forma de
legitimar-se. E além das freqüentes adaptações de obras literárias para a tela,
tornou-se prática corrente, em particular naquele período, a contratação de
escritores como roteiristas. Assim é que, em Hollywood, notáveis escritores
como William Faulkner, Scott Fritzgerald, Aldous Huxley, Gore Vidal, James
Age,Nathanael West, dentre outros, tornaram-se os contadores de muitas
histórias que comoveram o grande público e garantiram o sucesso de vários
empreendimentos. Saber se tais roteiros traziam a marca da criação literária já
é uma outra questão, que talvez possa ser analisada a partir da postura de
alguns desses escritores-roteiristas. Faulkner, por exemplo, não fazia segredo
sobre a natureza de sua atividade em Hollywood: "Faço apenas o que me
dizem para fazer; é um emprego, e pronto."
“A literatura e cinema não são tão distantes assevera o
pesquisador e professor do departamento de espanhol e português da University
of California (UCLA), Randal Johnson – com quem tive oportunidade de conversar
quando de sua estadia no Rio de Janeiro, em 2008, convidado pelo Programa de
Pós-graduação da Escola de Comunicação (ECO-Pós) da UFRJ, para ministrar uma
disciplina compactada sobre Cinema, Literatura e TV. Para ele, as relações
entre cinema e literatura não se limitam às adaptações do texto escrito para a
tela, apontando três outros importantes pontos de encontro : o primeiro seria
os filmes feitos sobre escritores – de que gradativamente proliferam vários
exemplos em cinematografias distintas; outro, seria o uso estrutural ou
incorporação de textos literários no discurso cinematográfico – esta
indubitavelmente a ocorrência maior; e também
o encontro da literatura e do cinema poderia se dar através de
referências como alusões literárias nos diálogos e citações implícitas ou
explícitas, visuais, orais ou escritas diretamente na tela – um expediente cada
vez mais recorrente na produção contemporânea. Por outro lado, Johnson critica enfaticamente
a valorização do texto literário sobre o discurso cinematográfico,
sustentando ser muito comum entre os
espectadores uma exigência de fidelidade do filme ao livro. A insistência na
fidelidade da adaptação cinematográfica à obra literária originária,pode
resultar em julgamentos superficiais que freqüentemente valorizam a obra
literária em detrimento da adaptação, sem uma reflexão mais profunda. Os filmes
são julgados criticamente porque, de um modo ou de outro, não são “fieis” à
obra modelo. O conceito, de ‘fidelidade’ assume conotação crucial,tornando-se
na discussão\reflexão do relacionamento entre cinema e literatura, no chamado ‘x da questão’ : tudo, a rigor, gravita
em torno disso.
Às vezes a mais fiel das adaptações faz o pior dos
filmes, porque o material não se presta a uma história filmada e, na forma como
está escrito, não funciona na tela, por mais forte que seja a história no
original.
Esse freqüente discurso da fidelidade baseia-se,a meu
juízo, na crença difundida de que a literatura é superior ao cinema, um
preconceito devido ao fato da literatura ser anterior no tempo ao cinema, o que
pode levar à idéia de que o livro é historicamente mais nobre e o filme
secundário -- além evidentemente do pensamento de que cinema e literatura são
rivais a partir da crença na idéia de que o filme adaptado suga e destrói o que
é essencial no livro.
Na verdade, desde que o cinema é cinema, a literatura tem
sido um de seus pontos de partida – as relações entre o cinema e a literatura
são tão fortes que alguns estudiosos chegam a afirmar a sua existência antes
mesmo do surgimento do cinema. Para isto evocam uma teoria limite, segundo a
qual há uma essência do cinema, de um “pré-cinema” embutido em alguns textos
literários anteriores à forma de expressão cinematográfica, e que teriam como
especificidade o fato de os escritores ordenarem o relato em função da
incidência do olhar do narrador, da sua ‘ocularização’ da cena a narrar. Desse
modo, a narrativa cinematográfica já se encontraria latente em alguns textos
narrativos literários, e a relação logo
passou a trilhar indissolúvel (sic) mão dupla, quando literatos e dramaturgos
começaram a se inspirar no cinema para formar narrativas em prosa e em
poesia. A rigor, as diferenças entre textos literários
e filmes neles apoiados são marcadas por historicidades específicas de cada
linguagem --- isto é, o tempo histórico que cada um retrata (um filme realizado
na década de 2000 abriga um relato literário escrito ou passado em 1890 , ou em
1950, etc ) : e o momento histórico de
cada um é que se constitui faceta que conduz a inevitáveis diferenças. Nenhum
filme ‘repete’ uma obra literária, nenhuma obra literária ‘repete’ um filme,
quer pelas diferenças de linguagem, quer pelo momento próprio de produção e
circulação de cada um de seus produtos.
Essa intrínseca, dialógica
e dinâmica relação nasce no momento em que o cinema descobre seu potencial
digamos literário, ao absorver o modelo narrativo do romance do século XIX a
subsidiá-lo para melhor contar histórias – malgrado podermos hoje levantar a
reflexão em plena era da imagem digital
em que vivemos : o cinema continuaria
‘preso’ a um modelo narrativo já ,em maior ou menor grau, superado pela própria
literatura? .Se o cinema beneficiou-se do romance do século XIX, por que na era
da imagem digital, quando a capacidade plástica do cinema atinge seu ponto mais
alto, continuam-se a ilustrar romances do século XIX?
Examinado detidamente com isento rigor crítico, no campo
da narrativa, em sua já longa história, o cinema não sofreu muitas variações –
malgrado certas exceções, como experimentos ‘de vanguarda’ – e vem à mente, por
aproximação etimológica, a “Nouvelle Vague” da década de 1960 , que
se propunha a romper com a lógica
linearizante da estética e da narrativa fílmica de até então, inspirada num
congênere da seara literária, o “nouveau
roman”—ambas dialogando entre si pelas respectivas técnicas narrativas, num
movimento de realimentação recíproco entre as duas linguagens.Convém não
esquecer,entretanto, que sob a égide de suas
afinidades com a cultura literária, se o cinema europeu tendia, então, a
se afastar do modelo romanesco tradicional, a indústria cinematográfica
hollywoodiana, voltada para o entretenimento, consolidou-se seguindo padrões já
consagrados da narrativa literária – levando
Jorge Luis Borges a observar que, com os westerns, “Hollywood, por razões comerciais, naturalmente, salvou a
épica, num tempo em que os poetas tinham esquecido que a poesia começou pela
épica”.Tanto uma quanto o outro buscando ultrapassar as limitações formais e “não procurando ordenar o caos”, ao contrário, o caos
tornando-se o princípio da criação. Os cineastas da “Nouvelle Vague”, p. ex., queriam mostrar que nem tudo faz sentido e
que os caminhos são múltiplos; e por fim
aquilo que Jean Cocteau afirmou sobre o cinema pode agora se efetivar,
pois para ele, os filmes só seriam bons quando fossem acessíveis como uma caneta
e um papel.
Contudo, há de se atentar para um outro viés, uma espécie
de contra-mão no processo de interação cinema-literatura, no caso um
contrafluxo mediado, executado,e recentemente cada vez mais incentivado pelo
setor editorial e mercado livreiro – nos quais dá-se o crescente movimento de
publicação de livros motivados... pelo
cinema :roteiros de filmes, diários de filmagens, histórias sobre a elaboração
de filmes(making-of), edição ou
reedição de obras literárias abrigando imagens e outros elementos
iconográficos que remetem para os filmes
realizados a partir da adaptação da obra para
o cinema – uma subversão das relações entre cinema e literatura. De resto, uma tendência à qual avolumam-se questionamentos sobre até que
ponto sinaliza tanto ‘perda de prestígio’ e ‘distorção\vulgarização’
da matéria literária, como sobretudo
‘dessacralização’ da literatura, tênues
que se tornam cada vez mais as fronteiras entre ela e outros tipos de bens
culturais que circulam pela mídia.e no seio de consumo da sociedade.
Das mesmas forma e diapasão e desse processo decorrente,
deflagra-se ao longo da segunda metade do século XX, por parte e ação do
setor editorial ,a contrapartida à incorporação da obra
literária,fosse best seller ou não –
muitas criadas especificamente para se transporem à tela – pelo cinema , com o
relançamento de romances adaptados e especialmente com a publicação de roteiros
.Toda a literatura poderia, então, ser considerada como texto básico para um
filme, e na direção oposta, parece que o cinema vem buscando cada vez mais o
espaço do livro, no que o mercado editorial explora o filão das publicações
derivadas de filmes.
Por
outro lado e em outra vertente, ao praticarem exercícios literários, cineastas
e roteiristas via de regra imprimem a suas narrativas muito mais o teor, o
timbre, o ritmo, o timing fílmico --
e menos literário. E além disso, mesmo
que sua estória e trama seja de ação,de movimento, costumam lidar
com o onírico, o sonho , e com o
psicológico -- que é, sabemos, elemento
recorrente ao extremo no cinema, do expressionismo alemão a Stroheim, de
Bergman a Buñuel, de Resnais a Godard. Não poderia ser de outra forma, pois são
eles antes e acima de tudo pessoas do cinema.
Tudo isso propicia
um exercício de reflexão e indagação: as incursões de cineastas e de
profissionais de tv na literatura podem ser bem resolvidas e bem sucedidas ? O
caso é que um diretor de cinema ou de tv
quando vai à literatura leva com
ele uma bagagem da linguagem -- o ritmo,
o corte abrupto, o esperar pronto entendimento do leitor, qual um espectador --
e assim comete pecados e pecadilhos marcantes . Ao
contrário, um escritor que vai para o cinema -- como roteirista, quase sempre
-- o faz melhor, sabe adaptar, mostra-se mais seguro, os resultados são
melhores: caso de Rubem Fonseca, dos exemplos clássicos dos escritores
norte-americanos com Hollywood, e ainda de Jean Louis Carrière , Dalton Trumbo
no cinema europeu.
Sob essa perspectiva, é comum cineastas em incursões
literárias atuarem numa espécie de
contramão, na via inversa do terreno do relacionamento -- ou do embate --
literatura/cinema ; os questionamentos sobre “apropriação de obras literárias
por cineastas”, ao realizar filmes, ganha outro contorno, de sinal trocado : no
caso, um cineasta não pega um livro e faz um filme -- e vale lembrar que para o escritor Autran Dourado “não existe
livro filmado, existe filme baseado
em livro” -- mas escreve um livro com elementos e ‘cacoetes’ de filme. Sai de
seu habitat original e vem para outro, mas utilizando o mesmíssimo instrumental,
na vã tentativa de sintetizar o mimetismo palavra-imagem.
No ‘umbelical’ -- nada dicotômico, portanto --
relacionamento do cinema com a literatura, podem ser extraídos, ou
inferidos\induzidos, alguns elementos que responderiam a Stanley Kubrick --
para quem “tudo que pode ser escrito e pensado pode ser filmado” -- também provando o inevitável desejo de cineastas e roteiristas, ao
escreverem uma obra literária, replicando a Kubrick, que ‘tudo que pode ser filmado poderia ser escrito’...
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