sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

São Paulo, 459 anos , genuína cidade literária


um tributo pessoal e intelectual -- tanto que amo a cidade,aprendi quando lá morei e vivi. 
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Há uma história da literatura que se projeta na cidade de São Paulo; e há uma história da cidade de São Paulo que se projeta na literatura”
                                                                                                            Antonio Candido

A cidade de  São Paulo sempre foi pólo fundamental da literatura brasileira.

E a aura do pioneirismo sempre a acompanhou, desde seus primórdios. Não surpreende  pois que em São Paulo tenha nascido e se manifestado um dos momentos fundamentais da história cultural brasileira , o Modernismo.A cidade , já natural e sequencialmente pioneira em diversas  manifestações literárias — desde os jesuítas, fundadores da Vila São Paulo de Piratininga, a 25 de janeiro de 1554 (não se pode  esquecer que o Diálogo sobre a conversão do gentio, de Manuel da Nóbrega, é o primeirissimo documento literário do Brasil, e o Auto da Pregação Universal, de José de Anchieta, a primeira peça encenatória) — o foi também , por exemplo, na precursora expressão poética do ‘indianismo’ no poema “Nênia” de Firmino Rodrigues Silva ;  nela  se deram ainda as realizações literárias iniciais de autores não paulistanos como José de Alencar, com seu “Como e por que me tornei romancista”, Castro Alves e seu “Navio negreiro”, Raimundo Corrêa com “Primavera”; nela ocorreu o primeiro movimento literário de vulto não apenas em relação à cidade mas ao próprio País ,em torno da Revista da Sociedade Filomática,em 1830,constituída na então recém-criada  Faculdade de Direito — a primeira manifestação de brasilidade literária por sua consciência de fins e coesão de esforços renovadores.
A cidade pioneira e  precursora
O retrato da História exibe a importância capital da Faculdade de Direito, a partir de 1827, na congregação de homens e idéias por meio da convivência acadêmica que propiciou a formação de agrupamentos de estudantes, com idéias estéticas, manifestações literárias e expressões próprias — deflagrando um processo vigoroso de efervescência  intelectual que passou a agitar intensamente a pequena cidade de então. Ainda que se reconheça as limitações  quantitativa e qualitativa da produção desses estudantes, não há como negar que estabeleceram a literatura como atividade presente na comunidade paulistana.
 Deu-se por ela a primeira manifestação  de uma vertente poética considerada “o início da escola brasileira” : o indianismo, desenvolvido na obra de Gonçalves Dias, mas praticado pioneiramente no poema “Nênia”, de Firmino Rodrigues Silva, composto  entre as arcádias da Faculdade de Direito. E exercido ainda de forma pioneira em 1844, três anos antes do Primeiros cantos , de Gonçalves Dias, em “Cântico do tupi”, “Imprecação do índio” e “Prisioneiro índio”, do Barão de Paranapiacaba. Evidencia-se pois que quando Dias dominou o meio literário brasileiro, a poesia indianista -- base da obra do maranhense -- já existia e era praticada em São Paulo.Em 1845, com a fundação da Sociedade Epicuréia, consolida-se um processo de produção literária estudantil, embora de qualidade reduzida mas que viria a receber um influxo importante com a estadia de Castro Alves, em 1868 — foi em evento da Faculdade de Direito que declamou pela primeira vez o antológico  poema “Navio negreiro” -- quem incutiu um  teor social ao tipo de  obra, sobretudo poética, que se fazia
 Por essa época, o ‘corpo acadêmico’ já constitui um grupo social diferenciado da comunidade paulistana, a boemia e a literatura como manifestações mais características de um segmento com consciência grupal própria.Artistas criadores e ao mesmo tempo críticos, nas  revistas e jornais , são os estudantes, entre os naturais da cidade e os migrantes e radicados, autores de denúncias e protestos contra a corrupção, a hipocrisia, as injustiças da sociedade . Na década de 1880 São Paulo acolhe também um grupo de jovens inflamados pelo verbo eloqüente de José Bonifácio o moço , uma geração empenhada numa luta em prol das idéias liberalistas e republicanas : Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Afonso Pena, Rodrigues Alves .
A cidade modernizada e mutante
 O desenrolar e desdobrar de percursos literários que culminariam com o Modernismo foi coincidente  e conseqüente de um vigoroso processo de evolução econômica, social e urbana da cidade, e há de obrigatoriamente levar em conta determinados ‘símbolos’ da época : o modus literário que passou a ser atuante deve necessariamente ser  visto e analisado a partir do desenho dos cenários e ambientes em que veio a se desenrolar , que são  representações  significativas  da própria literatura brasileira na passagem do século XIX para o século XX.
O declínio do Império coincidiu com a ascensão das classes médias urbanas por força do processo da gradativa  metamorfose de uma sociedade rural para urbana.Em sua luta pela aquisição de status, segmentos da classe média passaram a prestigiar valores essencialmente burgueses, como o saber e agilidade intelectual -- até porque já era uma tradição,no mundo,a valorização de virtudes intelectuais, o escritor passando a ser objeto de grande consideração social e atividade cobiçada por muitos filhos da classe média. A valorização da inteligência -- a par de possibilitar uma “profissionalização da literatura” --com a ascensão social por via da  literatura, fez com que o escritor absorvesse valores aristocráticos, desprovidos de visão crítica do real -- com raríssimas exceções— e veio a comprometer, na imensa maioria dos autores , a vitalidade do estilo, em troca do emprego de  linguagem, digamos, ‘ornamental’.
 No caso particular de São Paulo — então com cerca de 240 mil habitantes na passagem do século XIX para XX, em radical mudança de perfil demográfico, com a maciça chegada de imigrantes, já um importante centro ferroviário, comercial, político, a indústria se implementando — o extraordinário desenvolvimento da cidade acentua uma significativa diferenciação social e evidencia um novo perfil de estrutura sócio-cultural, em que a produção literária antes deflagrada pelos estudantes, passa a ser executada por outro estamento —tornando-se manifestação de uma classe : a nova burguesia, mais urbana e ‘industrializante’, da mesma forma que em outras partes do País incorporando costumes segundo o modelo europeu, eivada de academicismo art-nouveau.
Expressa-se  sobretudo um certo aristocratismo intelectual, que  agrada em cheio àquela burguesia ascendente : cristaliza-se pois um padrão estético-literário-cultural definido pela elite social, retirados do contingente inicial dos estudantes  os valores e parâmetros da produção literária. Constitui-se, numa sociedade de classes, uma literatura ‘classista’, elitista, convencional, integrada aos padrões de refinamento da classe dominante. Acentuam-se então os teores de sentimentalismo e romantismo,privilegiando a ‘pureza’ da língua, a escrita correta, o ‘apuro’, a limpidez, a sonoridade, a ‘riqueza do vocabulário’. A literatura como meio e degrau de ascensão social incorpora-se  à sociedade paulistana por meio dos padrões de suas classes dominantes.
Contrária a essa vertente — personificada pelos “corifeus da bela escrita”, precipuamente, no Rio de Janeiro,  Coelho Neto, Olavo Bilac, os membros da chamada “geração boêmia” ; em São Paulo, Francisca  Julia, Vicente de Carvalho ,Julio Ribeiro, Silvio de Almeida — poucas vozes (ou melhor escritas ) se colocaram : notadamente Lima Barreto ,no Rio de Janeiro, e Alcântara Machado, em São Paulo  (há de se considerar também  Amadeu Amaral, Sylvio Floreal, em especial Juó Bananére, e anos depois João Antonio)  — que  adotaram e assumiram temática, ambientação, personagens, trama, linguagem e estilo eminentemente populares e ‘anti-aristocráticas’.
Vale ainda considerar a tese do historiador e ensaísta José Murilo de Carvalho a distinguir cidades ortogenéticas -- caso do Rio do Janeiro, por exemplo -- e cidades heterogenéticas -- São Paulo como o maior exemplo, e que veio a marcar o tipo de intelectual e modo de produção cultural gerados pelas duas cidades .A ortogenética é caracterizada pela função política e administrativa, com grande peso do governo e do poder público, cidade de consumidores e não de produtores , baseada  no comércio e na  escravidão .Carvalho sustenta que a proclamação da República  teria reforçado ainda mais essa função política do Rio de Janeiro, com mais intensa ainda presença do poder público, fazendo com que grande parte da intelectualidade se vinculasse de alguma forma à burocracia pública, em geral como funcionários do governo federal : e se tal fato não “introduzia necessariamente uma perspectiva governista na obra desses autores”, frisa ele, “certamente constituía limitação à sua liberdade de criação”. De outro lado, a quase obrigação que se impunha ao Rio de passar a  imagem civilizada do país fazia com que seus intelectuais tivessem grande dificuldade em compreender perfeitamente a realidade do País e da cidade — daí as contradições e bloqueios que se interpunham no caminho da criatividade dos intelectuais, a cidade não conseguindo produzir uma cultura moderna/modernista. Diferente de São Paulo.
A cidade heterogenética, que São Paulo exemplifica, estava fora do centro do poder político, caracterizada como cidade de produtores, com maior liberdade de criação, maior iniciativa cultural, com predomínio da atividade econômica e comercial e não política e administrativa — somado ao fato de que nunca teve grande presença escrava Em contrapartida, a intelectualidade paulista era muito menos vinculada ao Estado, e era na verdade patrocinada pela própria oligarquia local -- muitos dos intelectuais eram aliás eles mesmos membros da oligarquia. A independência em relação ao Estado lhes dava maior liberdade de criação Além disso, havia maior homogeneidade social entre a intelectualidade paulista, e isso propiciou a São Paulo maior possibilidade do que o Rio de Janeiro  de desenvolver um projeto cultural ,mais consistente e ‘autônomo’ : na Paulicéia, houve “melhor condição de um trabalho intelectual em cima da realidade social concreta”.
 O Modernismo de 1922 expressou um esforço para retirar à literatura o caráter de classe -- dado pela elite social e cultural pós -1890 -- transformando-a em bem comum a todos. Como o Romantismo, o Modernismo é de todas as correntes literárias brasileiras a que adquiriu tonalidades especificamente paulistanas. Antonio Candido sentencia que “se em São Paulo não tivesse havido os escritores do período clássico, do Naturalismo, do Parnasianismo, do Simbolismo, a literatura brasileira teria perdido um ou outro bom autor, mas nada de irremediável. Se tal acontecesse no Romantismo e no Modernismo, o Brasil ficaria mutilado de algumas de suas mais altas realizações artísticas, de  obras culminantes como Macário e Macunaíma, por exemplo. Dois momentos paulistanos, dois momentos em que a cidade se projeta sobre o País”.
 Modernismo , destruidor”e criador
 Nos primeiros anos do século XX, quando novas correntes artísticas começaram a circular pela Europa, a maior parte do mundo ocidental encontrava-se em meio a transformações sociais, políticas, econômicas, tecnológicas e culturais que alteraram radicalmente a forma de viver e de sentir o mundo. Invenções revolucionárias como o rádio, o telefone, o automóvel e o cinema passaram a fazer parte do cotidiano das grandes cidades, cada vez mais urbanizadas. A industrialização modificara a economia das potências, e os lucros acumulados pela produção em larga escala de artigos manufaturados garantiam  tamanha sensação de conforto, segurança e otimismo em relação ao futuro, que o período ficou conhecido como belle époque — uma época de efervescência artística sem precedentes. Mas no extremo oposto,para as classes trabalhadoras o tempo era de lutas por melhores condições de vida e, no plano internacional um conjunto de fatores econômicos e políticos levaram à eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914. O Brasil vivia então  período de grandes mudanças,  com a urbanização e a adoção de novas tecnologias que transformavam o ritmo de vida e o cenário das grandes cidades, e que pareciam alterar a percepção do mundo. O intenso crescimento urbano e industrial, acelerado desde o começo do século, e a chegada em massa de imigrantes, principalmente italianos, muitos dos quais haviam vivido a experiência da luta de classes em seus países, propiciando inclusive a difusão de idéias anarquistas e socialistas, fizeram com que o proletariado crescesse  e se  organizasse : nas primeiras décadas do século XX ocorreram várias greves em São Paulo,  a maior delas em 1917 - mesmo ano da Revolução Russa. Nos primeiros anos do século XX vieram radicais transformações políticas, com acontecimentos decisivos para a vida nacional, como as revoltas deflagradas pelo movimento tenentista ( julho de 1922 no Rio de Janeiro; julho de 1924 em São Paulo),a Coluna Prestes, a fundação do Partido Comunista, a derrocada da República Velha, das oligarquias rurais e da "política café-com-leite", o início da Era Vargas.

É nesse contexto de crises e incertezas que surgiram as correntes de vanguarda (do francês avant-garde, "o que marcha à frente"), entre elas  o Futurismo, o Cubismo, o Dadaísmo, o Expressionismo, o Surrealismo, recebidas com entusiasmo por escritores que procuravam renovar as formas de expressão artística. Muito antes de 1922 os artistas participantes da Semana já produziam obras influenciadas pelas novas correntes européias, como a publicação, em 1917, de diversos livros de poemas em que jovens autores buscavam uma nova linguagem, ainda não bem realizada., em  Nós, de Guilherme de Almeida; Juca Mulato, de Menotti del Picchia;  Há uma gota de sangue em cada poema, de Mário de Andrade — e a célebre exposição de Anita Malfatti, em 1917, duramente criticada por Monteiro Lobato no famoso artigo “Paranóia ou mistificação ?”
 A Semana de Arte Moderna de 1922 foi o fato concreto que definitivamente integrava o Brasil no contexto filosófico-estético-cultural do século XX  e levava-o a inserir-se nas coordenadas culturais, políticas e socioeconômicas dos novos tempos —o mundo da técnica, o mundo mecânico e mecanizado. A partir dela caminha o movimento modernista em busca de padrões autônomos e formas autênticas para a criação estética nacional -- e não somente no âmbito artístico : da mesma forma no campo do pensamento social, os intelectuais procuravam estabelecer novos modos de se tratar e compreender a cultura e a história do Brasil, estabelecendo novas interpretações e valores para a  identidade nacional e dando  início à consolidação institucional do pensamento sociológico brasileiro. Gerou sobretudo  um estado permanente, latente , criativo, estimulante, instigante, de inquietação intelectual, e iniciou um processo de unificação cultural sem precedentes no Brasil.
 Fica para a História o depoimento de Mário de Andrade:
                   "A Semana de Arte Moderna dava um primeiro golpe na pureza do nosso aristocracismo espiritual. Consagrado o movimento pela aristocracia paulista, si ainda sofreríamos algum tempo ataques por vezes cruéis, a nobreza regional nos dava mão forte e... nos dissolvia  nos favores da vida. Está claro que não agia de caso pensado, e si nos dissolvia era pela própria natureza e o seu estado de decadência. Numa fase em que ela não tinha mais nenhuma realidade vital, como certos reis de agora, a nobreza rural paulista só podia nos transmitir a sua gratuidade. Principiou-se o movimento dos salões. E vivemos uns oito anos até perto de 1930, na maior orgia intelectual que a história do país registra. (...) se alastrou pelo Brasil o espírito destruidor do movimento modernista. Isto é, o seu sentido verdadeiramente específico. Porque, embora lançando inúmeros processos e idéias novas, o movimento modernista foi essencialmente destruidor.".
 A "destruição" tinha como objetivo, em um primeiro momento, o rompimento com estéticas passadas, especialmente a parnasiana — em oposição ao rigor gramatical e ao preciosismo lingüístico parnasianos, os poetas modernistas valorizavam a incorporação de gírias e de sintaxe irregular, e a aproximação da linguagem oral de vários segmentos da sociedade brasileira— e mais: a preparação de um terreno onde se pudesse reconstruir a a cultura brasileira, sobre bases nacionais, a realização de uma revisão crítica da história e das tradições culturais do país. Os autores do Modernismo procuraram no índio e no negro  os elementos primordiais da cultura brasileira que proporcionariam a reconstrução da realidade nacional, e procuraram retratar a mistura de culturas e raças existente no país.
Porém, o nacionalismo, a mais marcante característica do Modernismo, iria separar ideologicamente os adeptos do movimento, opondo os grupos “Pau-Brasil”,e depois “Antropofágico”(que incorporva o comunismo, o freudianismo e o matriarcalismo), de  Oswald de Andrade , Raul Bopp e Tarsila do Amaral , e  o “Verde-Amarelismo , de Menotti del Picchia, Plínio Salgado e Cassiano Ricardo. Estudiosos sustentam que a verdadeira ‘revolução’ modernista se deu mesmo em 1924,  ano do rompimento de Graça Aranha  com a Academia Brasileira de Letras, ano do “Manifesto Pau-Brasil”, de Oswald de Andrade, anos de dois textos fundamentais de Mario de Andrade : A escrava que não é Isaura — a ‘teoria’ do modernismo compendiada - e seu  livro mais ousado, em termos formais, Losango caqui.
Em seguida, 1928 marca a publicação de Macunaíma, de Mario de Andrade, máxima obra literária do movimento, excepcional romance-retrato do Brasil de grande miscigenação cultural — as tradições culturais indígenas dos primórdios ao lado da modernidade europeizada dos centros urbanos brasileiros da época — e  de Retrato do Brasil, de Paulo Prado, inaugurando o ensaio de cunho ao mesmo tempo histórico e sociológico que abriria caminho para o grande ciclo de “interpretações do Brasil”.À renovação estética modernista,na década de 1920, alia-se no decênio seguinte  o ensaio de interpretação e crítica social, que tenta recontar o processo de formação histórica do país: a procura da identidade social passa igualmente pela busca premente de uma ponte entre uma completa renovação cultural e a reforma da sociedade, uma ponte entre a modernidade e a modernização do país .
O ano de 1930 é a época de instauração do Estado Novo, que se ‘apropria’ ideológica e retoricamente  do Modernismo — Getulio Vargas declarava  em seu  discurso de posse: “As forças coletivas que provocaram o movimento revolucionário do Modernismo na literatura brasileira  foram as mesmas que precipitaram no campo social e político a Revolução de 1930 (seguindo uma sugestão formulada por Cassiano Ricardo) — mas inicia um período de intensa fermentação política, social  e cultural. É na primeira metade dessa década  que nascem as primeiras tentativas de interpretação de conjunto da história, da economia e da sociedade brasileira.Sobretudo a  prosa literária se desenvolve, ficcionalmente no romance e no conto, que retratam decadência da aristocracia rural, a formação do proletariado urbano, a luta do trabalhador, o êxodo rural, as cidades em rápida transformação — os cenários para a expansão e proliferação dos ensaios de interpretação do País, de Gilberto Freyre , Paulo Prado (Retrato do Brasil),  Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil) ,Caio Prado Júnior (Formação do Brasil contemporâneo), todos lastreados pela ‘índole’ modernista em busca da síntese explicativa dos múltiplos aspectos da vida social brasileira e de seu desenvolvimento histórico.
Acima de tudo um processo de mudança cultural geral, em direção a uma nova reconstrução sócio-política da identidade nacional, o Modernismo “difunde-se no tempo, balizando grande parte dos sequentes debates intelectuais, espalha-se no espaço, o poderoso ímã da literatura interferindo com a tendência sociológica, dando origem àquele gênero misto de ensaio, construído na confluência da história com a economia, a filosofia ou a arte, que é uma forma bem brasileira de investigação  e descoberta do Brasil”, sentencia Antonio Candido. Irradiante , difuso e difusor, o Modernismo modelou substancialmente a literatura brasileira no século XX e desdobrou-se pelas décadas seguintes em  irreversível processo de  amadurecimento : uma terceira fase  do movimento,na busca de uma nova linguagem, que expressasse os anseios de renovação do pós-guerra, veio na denominada “geração de 1945”, depois, na Poesia Concreta, da mesma forma na Poesia-Práxis , na atual narrativa em prosa —   caracterizada esta por novas formas de  linguagem , ora intensa e ágil, ‘cinematográfica’ , ora densa e introspectiva, ‘filosófica’,e pela preponderante ambiência urbana retratando “a vivência vertiginosa nas grandes cidades”, confluiu no último decênio do século XX e no despontar deste Terceiro Milênio para o irreversível despontar  de uma nova geração de escritores, que abre espaço na literatura brasileira com uma marcante característica vetorial  : o deslocamento maciço do eixo principal  da nova criação literária para São Paulo.
Na cidade, os novos e novíssimos ficcionistas exercem sua prosa “de estrutura desconstrutivista , subversiva da linearidade, de narrativa fragmentada, quebradiça, de temática citadina, com os elementos da urbanidade pós-moderna , as tensões sociais e os conflitos individuais, o envolvimento pela violência urbana , os impasses existenciais —  fomentando uma produção literária como não é feita em nenhuma outra cidade do País.
A São Paulo heterogenética continua abrigando escritores, naturais ou imigrantes, paulistas ou radicados, que produzem uma literatura ímpar, diferenciada, atualizada com os elementos da realidade, afinada com a modernidade, determinante — hoje como ontem, e desde sempre — da própria cultura brasileira.


    








      
































segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Por que esquecer este centenário ?



Há 100 anos, neste 21 janeiro, morria Aluisio Azevedo(1857-1913) – um excepcional escritor, autor de romances (um pouco mais conhecido, e lido, por estes : inclusive pelo status de O mulato,1881, como marco do Naturalismo – que à época gerou escândalo e sucesso,maior do que Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado, publicado no mesmo ano) ,contos e crônicas, mas sem ter até hoje devidamente reconhecida e enaltecida toda sua grandeza literária (embora  o provavelmente mais lido e estudado  de seus romances, O cortiço, 1890, seja consensualizado como obra-prima).
A obra literária de Aluisio,de alta qualidade,  sempre provocou  controvérsias – por isso mesmo deveria  permanecer, por todos os motivos, intensamente ‘viva’. O que lamentavelmente não ocorre nas proporções, medidas e escalas exigidas para um autor tão significativo na historiografia literária brasileira..
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 Aluisio,e aqui uma faceta extremamente importante desse notável escritor, foi um lúcido e ativo comentarista da literatura e da vida literária brasileira de seu tempo, em crônicas e contos – sabiam dele contista e cronista ?... -- publicados na imprensa. Dado como um  dos primeiros homens a viver das Letras no Brasil, seus escritos são bastante emblemáticos  para  descrição e traçado críticos sobre a leitura, a recepção e a circulação de obras literárias no  período. Muitas de suas cartas e crônicas demonstram sobejamente a dificuldade da formação de um público leitor já no século XIX, tanto que levou o próprio Aluísio à decisão de abandonar a Literatura e dedicar–se exclusivamente à carreira pública,especificamente de cônsul no exterior.
No exercício da  crítica literária, Aluisio chegou a inovar : inseriu-a,ou ‘enxertou-a’, em meio ao folhetim,  algo exemplarmente híbrido no cenário do roda-pé de página do século XIX. Fez isso em “Girândola de amores”, que ganhou o título de “Mistério da Tijuca” na edição folhetinesca do jornal Folha Nova do Rio de Janeiro entre 1882-1883 (seus  comentários  apontavam para a necessidade de agradar a dois tipos de público: o romântico, o leitor médio de folhetim, e outro de formação crítica mais refinada, ao mesmo
tempo em que alfinetavam os críticos, que o atacavam que o atacavam – o que poderia ser válido pra hoje, como refuto a restrições atuais à sua obra -- por escrever nos padrões românticos,quando o realismo-naturalismo já empolgava os homens de letras e o público).
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Aqui, duas crônicas de Aluisio sobre a literatura e a vida literária brasileira de seu tempo: “Do vendeiro ao poeta” e “Literatura nacional”, publicadas em O  Combate,  março de 1892.

Do vendeiro ao poeta

I

Meu Deus! como o Rio de Janeiro ainda está longe de ser uma cidade artística e principalmente um centro literário.
Nas grandes capitais do velho mundo civilizado a primeira camada social é formada pelos homens de espírito, pelos sábios, pelos homens de letras, pelos artistas de talento, pelos investigadores e reformadores científicos, pelos exploradores notáveis; depois seguem-se os políticos em evidência, os estadistas de pulso e os militares distintos pelo saber profissional, pela honra e pela coragem; depois os grandes funcionários jurídicos; depois os homens da alta indústria, os que movem grandes massas de operários; depois os banqueiros milionários; depois os grandes agricultores; depois vêm os artistas auxiliares, os cortesãos de merecimento, os reprodutores dos quadros vitoriosos, os propagadores da ciência e das letras, os peritos executores da boa música, os cantores, os gravadores, os tipógrafos, os atores de gênero ligeiro; enfim, todo esse mundo de habilidosos, que são incapazes de criar, mas que servem de veículo à grande obra dos artistas criadores; e afinal, em último plano, chega a vez dos mercadores, isto é, daqueles que, por falta de talento para conceber e por falta de técnica para executar ou reproduzir qualquer trabalho científico ou artístico, limitam-se a servir de intermediários entre a ciência, a arte e a indústria e entre o público que o consome.
Esta última camada social constitui o comércio, em grosso e a retalho. Na Inglaterra, na Alemanha, na Itália, e na Rússia, as portas da boa sociedade lhe são vedadas escrupulosamente.
A França, depois que se democratizou, limita-se a empurrá-la para o fim da ordem social, e, se lhe não fecha as portas da alta sociedade, faz pior: despreza-a, trata-a com desdém e até com repugnância.
Em França, hoje essa classe só serve para fornecer sogros ricos e noivas com bom dote.
É que a França vê no comerciante o homem que nada produz e mais lucra; o homem que vive exclusivamente para a ganância e para a especulação.
E o negociante, com efeito, ao mesmo tempo que é o intermediário entre o produtor e o consumidor, é o feroz parasita do homem de ciência, do homem de letras, do artista e do inventor industrial.
Estes quase sempre acabam pobres, e o negociante acaba rico, rico e são, porque durante toda a sua vida de lucros nunca fez o menor esforço intelectual e por conseguinte nunca se gastou nervosamente. Em toda a extensa classe social o negociante é o único que não trabalha.
A sociedade dá-lhe o direito de viver sem produzir, comprando por dois para vender por dois e meio; mas o negociante abusa sempre desse direito, comprando por dois e vendendo por quatro quando não vende por seis ou por oito. A consciência do comércio e muito elástica quando se trata de negócios, porque faz parte dos principais requisitos do seu ofício enganar o comprador. E tanto assim é, que eles inventaram para uso prático, provérbios da ordem filosófica deste: "Amigos, amigos - negócios à parte".
Efetivamente, entre os negociantes não se respeita a amizade, nem se observam certos deveres de consciência quando se trata de vender. Uma vez recebi de certa família do interior, a quem devo obrigações, o pedido de comprar aqui uma     dúzia de certos lenços especiais de cambraia de linho que então estavam em grande moda e custavam bastante caro.
Como não entendo de fazendas e não queria servir mal a quem me fez a encomenda, dirigi-me a certo dono de armarinho, que eu conhecia de muito tempo e a quem tinha na conta de homem sério.
- Não podias cair melhor! disse-me ele, quando lhe expus o que me levava à sua casa. Não encontrarias em outra parte fazenda como a que tenho no gênero que precisas. É o que há de melhor, vais ver!
- Não preciso ver, porque, já disse, não entendo da matéria. Uma vez me afianças que tens o que procuro, é quanto basta.
Ele embrulhou os lenços, paguei e saí.
Daí a alguns passos encontro outro negociante meu amigo.
Paramos a conversar um instante e contei-lhe a compra que fizera, dizendo que supunha aviar bem a encomenda recebida.
Ele pediu para ver os lenços, observou-os um instante e segredou-me:
- Foste enganado... Isto não é cambraia de linho. Se queres servir bem a família que te encomendou os lenços, não lhe mandes estes, vai à casa do Leite (e ensinou-me onde era) que é o único no mercado que possui hoje dessa fazenda. E tive de ir eu de novo comprar os lenços, pagando também quanto paguei pelos primeiros.
E agora digam-me com franqueza: Fui ou não fui roubado?
E se com efeito fui; se o dono do primeiro armarinho é um tratante, porque motivo hei de eu tratá-lo com mais consideração do que aos outros gatunos, menos velhacos e que mais se expõem, desses que roubam um queijo à porta de uma venda?...
Esses ao menos são mais sinceros e arriscam a dormir na cadeia.
Os negociantes, em geral, são como o amigo que me vendeu os lenços falsos; unicamente, eles lá na sua alta filosofia comercial entendem que não praticam ato desonesto quando nos impingem gato por lebre.
Concordo que assim vivam; concordo que enganem o freguês sempre que possam; concordo que enriqueçam, sem jamais produzir, concordo que o livreiro seja rico e que o autor que mais o enriqueceu morra de fome; concordo que o empresário de teatro tenha milhões, enquanto os artistas que trabalham para ele, escrevendo comédias, representando os papéis, fazendo música, pintando cenografia, não tenham onde cair mortos; concordo que o especulador engorde e que o produtor entisique e estoure de esgotamento nervoso a força de trabalhar; mas com um milhão de raios! não queiram que o parasita ignorante e sem escrúpulo venha colocar-se ao lado do artista de talento, do escritor de espírito, do homem de ciência ou do soldado de honra.
Dois proveitos não cabem no mesmo saco! As cocotes não sofrem as provocações da mulher honesta, mas também não gozam das regalias que esta goza!
Pois bem: para se calcular com justiça do nosso estado de civilização e cultivo intelectual, basta lembrar-nos de que aqui a escala social acha-se rigorosamente invertida.
Aqui, a primeira camada é feita pela classe comercial, e a última pelos homens de espírito.
Rompe a marcha na ordem social, em primeiro plano, o glorioso e brutal comendador, o vendeiro com o seu ventre de monstro, a sua indecorosa fortuna e a sua obscena estupidez.
E quando precisamos alugar ~a casa, diz-nos o proprietário:
- Não alugo sem carta de fiança de vendeiro ou negociante matriculado.
Não! Definitivamente o Brasil poderá ser um país civilizado, enquanto a grande revolução, a verdadeira, a única, não o tomar pelas duas extremidades e sacudi-lo violentamente, até deslocar todas as camadas sociais e obriga-las a tomar o lugar que lhes compete.
Antes disso, não passará esta terra de um grande porto comercial, onde os estrangeiros aventurosos vêm procurar fortuna rápida.
                                                                                       O Combate, 6 de março de 1892.
  
II

Começo a convencer-me de que esta seção não tem razão de ser e não devia existir, porque infelizmente a vida literária de hoje no Brasil é uma cousa tão hipotética como a vida elegante na costa d'África.
Dantes surgia ainda um livro de vez em quando; vinha à tona, de longe em longe, um volume de versos ou de contos; mas agora, valha-me Deus! não aparece com que dar à gente uma hora de regalo ao apetite de letras pátrias.
E no entanto, o que dantes inspirava versos aos poetas, e o que dantes fornecia aos romancistas capítulos de enredo ou páginas de observação, continua por aí afora, inalteravelmente, enchendo a vida de cousas bonitas, de cousas tristes e de cousas heróicas.
O amor, o grande manancial onde os líricos e os românticos abeberaram por longos séculos as suas musas, não nos consta que fosse também deposto, antes pelo contrário parece que se tem desenvolvido ultimamente e que hoje é o único que não morre de fome no Brasil.
Eva continua, como Jesus Cristo, a atravessar as gerações de braços abertos, à espera dos aflitos que precisam de consolo e que se queiram abrigar na religião da ternura e do carinho. As flores, ao que me consta, nada perderam da integridade do seu perfume primitivo e as rosas continuam a ser belas e os lírios a ser cândidos que faz gosto. Os lagos e os vales, afogados de verdura, perseveram em ter-se misteriosos e as brisas não deixaram ainda de ciciar depois que o Sr. Floriano tomou conta da República.
Segundo as minhas observações, o azul do céu não desbotou e está novinho em folha como saísse da fábrica; as estrelas são inalteravelmente as mesmas; e eu seria capaz de apostar que os sabiás cantam tal qual como no bom tempo de Gonçalves Das, e que as roas não são menos legítimas e gemebundas que as do falecido Casimiro de Abreu.
Por que pois acabaram-se os poetas? Se há azul de céu, se há crepúsculos, e há lua, como pois não há versos?
Como diabo não há versos e poetas, havendo tudo aquilo e, o que é mais, o soberbo e inestimável elemento da fome, da fome e da miséria?
Os senhores sabem quanto vale a fome para os poetas!...
Não sei que mais desejam, os exigentes!
Boa lua, mágoas de primeira ordem, estrelas a discrição, um ditador sanguinário no poder, que é uma tetéia; mulheres que só desejam ser cantadas e decantadas; lágrimas e luto por toda a parte, do que se pode desejar de melhor; uma ótima peste desoladora, um belo sol de rachar, uma falta absoluta de residências, e, por cima de tudo isso, que já é muito, a carne seca a 1$200 o quilo!
Pois mesmo assim, com todas essas vantagens, incrível! os senhores poetas conservam-se na moita e - nem pio! nem um verso!
Os romancistas e os contistas e novelistas, pelo eu lado, também não sei do que se possam queixar. Já não há Portelas para desviá-los do trabalho literário; o governo da legalidade fornece-lhes por dia assassinatos e tenebrosas perseguições, que dão para uma enfiada de volumes; os conspiradores esfervilham de todos os lados; há no ar gritos de agonia e fartum de sangue; rosna-se a respeito de fuzilamentos e cabeças cortadas e assaltos a mão armada; um tesouro!
E os romancistas - moita!
Pelo teatro a mesma cousa: as revoluções sucedem-se; os chefes políticos lutam como atletas; os estados transformam-se em campos de batalha; a peste e a fome, de mãos dadas, invadem a casa do pobre e promovem cenas de grande sensação. E, no entanto, não aparece um dramazinho, uma tragédia, e nem sequer uma comédia em um ato, apesar de que o elemento cômico não abunda menos que o dramático, se dermos crédito ao vizinho da Vida fluminense que conhece muita gente engraçada e capaz de provocar as maiores pilhérias e as mais largas gargalhadas.
Os Melos, por exemplo! Como aqueles dois gaiatos irmãos estão a pedir por amor de Deus que os ponham em cena, de cócoras, um defronte do outro, a torcerem-se de patriotismo! E que belo efeito não faria o Floriano de guarda ao tesouro, como o descreveu Pierrot, de espingarda ao ombro e vela de sebo ao lado? E o batalhão patriótico a gingar na frente da música? E a manifestação popular, obrigada a balõezinhos chineses e descompostura às folhas da oposição?
Oh! definitivamente, não vejo razões para não haver comédias, dramas, romances e poemas!
Se os Srs. literatos não aproveitarem esta boa ocasião, se não aproveitarem enquanto Brás é tesoureiro do Estado do Rio de Janeiro, nunca mais pilharão outra tão boa.
E é pena, porque o momento histórico que atravessamos, devia passar à história, cantado em prosa e verso, para gozo e regalo dos futuros brasileiros.
Um Floriano não se bispa duas vezes no mesmo século!
Vamos, coragem, meus senhores! mãos à obra, que a literatura brasileira precisa, para a sua glória, de ter também, como a literatura italiana, o seu Bertoldinho e o seu Cacasseno.
Vá o país à garra, mas salvem-se as letras, com um milhão de raios!
                                                                                  O Combate, 10 de março de 1892.
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Literatura nacional

I
Agora, sempre que por aí se fala de literatura nacional, diz-se que ultimamente há grande desfalecimento entre os escritores brasileiros e que diminui o numero de volumes publicados, e que só se escreve sobre finanças e sobre política.
É exato. Mas a culpa não é dos escritores; é das dificuldades que se apresentam hoje em dia para realizar a publicação de qualquer trabalho. A falecida baronesa de Mamanguape levou os seus timos anos de vida a publicar; na casa Pinheiro, um volume de versos, que nunca veio à luz e lhe abreviou naturalmente os dias de existência.
Aluízio Azevedo, tem há quase ano e meio, um volume de contos a publicar-se na casa Mont'Alverne, hoje Companhia Editora; e, apesar de haver pago adiantado a primeira folha de composição, ainda não teve o prazer de ver uma página impressa do seu livro; outros e outros homens de letras queixam-se de iguais contrariedades, e não é natural que alguém se disponha a escrever com boa vontade, tendo uma obra encalhada no prelo.
Repetimos: a culpa não é de quem escreve; a culpa é dos que imprimem. Hoje, no Rio de Janeiro, dar um livro à publicidade é quase tão difícil como viver, ou talvez mais ainda, se atendermos ao que por aí vai pelas tipografias e casas editoras.
É que no Rio de Janeiro atualmente, ninguém quer trabalhar. A febre do jogo, criada desde o ministério Ouro-Preto e desenvolvida depois pela revolução, o desespero de enriquecer forte e rapidamente, o desalento causado pelos graves prejuízos trazidos pelo descalabro de companhias, que eram a grande esperança dos ambiciosos; tudo isso transformou a maior parte da população fluminense num infernal bando de jogatineiros decavés, doidos perdidos, furiosos, desanimados, sem vintém e sem ânimo para o mais insignificante trabalho honesto.
Vai-se a uma tipografia para imprimir uma obra. Aparece-nos o dono da casa, triste, desorientado, pensando nas suas tantas mil ações sem valor, e ouve-nos distraidamente, sem conseguir ligar importância ao trabalho que lhe encomendamos; e, quando lá voltamos, o homem já nem se lembra do que lhe dissemos a primeira vez.
Mas, se apesar de tudo, a encomenda fica feita, por um preço paradoxal, e tornamos lá para ver as provas, ai! que triste espetáculo nos espera! Cada tipógrafo é também uma vítima da bolsa; cada tipógrafo tem em casa, inúteis como um baralho de bilhetes brancos de loteria, unia infinidade de títulos de companhias arrebentadas.
E, macambúzio, dedos enterrados no cabelo, cotovelos fincados na caixa de composição, cada desgraçado desses olha sonambulamente para os tipos empastelados, mortos, emudecidos e cobertos de pó, e não encontra em si coragem para compor um paquet.
Compor! Trabalhar! Para quê?... Para receber uma soldada que, com os preços atuais do pão, mal chega para não morrer de fome?... Ganhar 5$000 por dia, quando, se não rebentasse tal companhia ou banco tal, deveríamos empolgar 300 ou 400 contos?... Não! definitivamente não há valor de homem capaz de ir até lá!
E o tipógrafo, convencido de que não vale a pena trabalhar tão resignadamente para ganhar tão pouco, faz como a maior parte dos operários, toma o chapéu, despede-se da casa em que está empregado, e sai de cabeça baixa e o coração encharcado de desalento; vai pedir dinheiro emprestado a um amigo, ou empenhar alguma joiazinha da mulher, para correr à roleta, que nada mais e do que a caricatura da bolsa; a roleta a ultima esperança de lucro rápido; a roleta, donde o infeliz nunca mais voltará ao trabalho e à dignidade da vida, porque a engrenagem daquela máquina infernal jamais largou a presa que lhe caiu nos dentes!
E diz o dono da tipografia, quando o autor vai à vigésima vez, pelas provas do seu pobre livro:
- Vê, meu caro senhor?... Estou sem gente!... Os operários foram-se todos! Estou disposto a pagar o duplo do que pagava dantes, mas ninguém aparece! E se isto continua assim - fecho a porta!
E a verdade inteira é que este dono de tipografia está morrendo por fazer como fez o tipógrafo: correr à roleta! Correr à tavolagem!
E lá, em volta dos malditos trinta e oito números, de 0O a 36, ou à música implacável do Trente et quarente irá ele encontrar como em uma praia de desilusão todos esses náufragos da megalomania, arrojadas à casa do jogo pelas ondas do oceano da bolsa.
Todos lá vão ter, desde o assombroso titular até o magro poeta, que interrompeu os estudos, para meter-se no ensilhamento. Banqueiros, doutores, funcionários públicos, artistas, caixeiros, todos, todos!
Triste e desconsoladora romaria que só tem uma fé - ganhar. Só tem uma esperança - levar a banca à glória.
Todos e tudo lá vão ter à praia da tavolagem. Sim, meus senhores, aqueles belos carros, aqueles cavalos de raça, aqueles diamantes, tudo isso rolará para sempre na areia e, com os tipos da composição e com as páginas, os poetas e prosadores.
                                                                                    O Combate, 2 de março de 1892.

II
Ontem encontrei de novo o meu querido romancista Ernesto Branco. Vinha ainda com o ar enfastiado e, ao ver-me, foi logo me passando o braço pela cintura e levando-me para a confeitaria dos pássaros.
-Estou furioso contigo! disse me ele, quando nos assentamos, e depois que o garçon se afastou para ir buscar uma garrafa de cerveja. - Furioso, mas o que se pode chamar "Furioso!".
-Por quê?
-Por causa do tal artigo de ontem Li a tua detestável Vida Literária! Aquilo não se faz! É uma infâmia!
-Mas o que fiz eu?

-Fizeste pilhéria com as letras!
-Ora!
-Ora não! Não admito que se brinque com a cousa mais séria que há no mundo! Não admito que se meta a ridículo a Literatura, a sagrada e imaculada arte de escrever! Sabes tu o que é um poeta pobre, meu amigo? sabes quanto é venerável essa criatura de sapatos rotos, que só vive da amarga desgraça de não ser imbecil ou medíocre, e que vai atravessando cinicamente e corajosamente a dantesca escala de todas as torturas e de todas as misérias, olhos fitos no ideal e pé calcado sobre a convenção burguesa e sobre as conveniências sociais?
Sabes tu o que é esse sombrio boêmio que a multidão acotovela e que os felizes desdenham e odeiam; esse negro espetro que tem a alma branca e palpitante como as estrelas da manhã? Esse, que entre toda essa magra canalha que luta inconscientemente para comer e respirar sobre a terra, é o único que sofre, porque é o único que tem inteira consciência da lama em que se arrasta, com as asas inutilizadas pelo lodo da miséria? esse é o poeta, e ao poeta tu ofendeste com as tuas abomináveis chufas de cabotin de imprensa! Queres fazer graça? Que diabo! imita o Pierrot ou o Clown; toma as marionetes do governo; enfileira-as defronte de ti, sobre a tua mesa de trabalho, e pinta-lhes bigodes; põe-lhes chifres; puxa-lhes pela língua até ao umbigo; rasga-lhes a boca até às orelhas; prega-lhes rabos de papel; dá-lhes piparotes no nariz; toma-as entre as palmas da mãe e boleia-as até reduzi-las a uma grande pílula; atira com esta ao ar, torna a apanha-la, torna a atira-la; deixa-a cair ao chão; levanta-a com ponta do pé; atira-lhe outro antes que ela torne a cair; mas, por amor de Deus, por amor de quem mais ames! não fales de carne seca, quando falares de poesia! não exijas versos aos poetas que dormem para não ver o que vai pela República! não peças gracejando obra literária, quando o nosso país geme apunhalado por um salteador político!
- Mas, por isso mesmo, respondi eu, esquentando-me também. Por isso mesmo que o Brasil chora de dor; por isso que o Brasil é traído, é saqueado, é reduzido a ruínas, é que os poetas deviam erguer-se cheios de indignação e arrancar das liras, ao menos para dar com elas na cabeça do governo! Tu mesmo, que estás aí a declamar a favor deles; porque não atiras agora ao público um livro patriótico, um grito de revolta que fizesse tremer o palácio de Itamarati e gelar nas veias o sangue desses assassinos que acabam de ensangüentar o Ceará?
- Eu? Por uma razão muito simples: porque o talento é como os títulos da bolsa - sobe e baixa conforme a procura.
O meu neste momento está muito por baixo. Ainda ontem quis principiar um trabalho: dispus o papel sobre a pasta, enchi o tinteiro, acendi um charuto, assentei-me corajosamente à mesa, molhei com energia a pena e... em vez de escrever, pus-me a pensar... E em que pensava eu? Pensava em uma carta do meu senhorio que nesse dia me comunicara amavelmente a sua generosa resolução de aumentar-me 5O$OOO no aluguel da casa; pensava na minha rnenagêre que me avisara na véspera que o dinheiro que eu lhe dou agora para as despesas diárias não chega, apesar de ser quase que o duplo do que lhe dava dantes; e pensei nos escandalosos preços que me cobrava agora o alfaiate, e pensei no chapeleiro, e no sapateiro; e, insensivelmente, fui pondo a pena de parte e levantando-me para ir assentar-me à janela, a contemplar o céu.
Fez-se noite e eu continuava a pensar em cousas alheias ao meu trabalho. Lembrei-me com mágoa de um amigo meu, tão bom rapaz, tão simpático e tão bem educado, o Garcia do Amorim, que na véspera tinha sido, como muitos outros, devorado pela maldita febre-amarela; lembrei-me de o ter visto quatro dias antes, bom e esperançoso, a falar-me de seus versos e de sua próxima viagem a Roma.
Fiquei triste com esta idéia, e pus-me então a cismar no estado e no destino desta pobre terra em que vegetamos, acabrunhados pela peste, pelo calor, pela infernal carestia da vida, ameaçados a todos os instantes pela guerra civil... Pobre República viúva! Pobre noiva a quem arrancaram o esposo ainda na lua-de-mel, para entregá-la à prostituição, para entregá-la à torpe sensualidade da maruja! Ah! maldito Floriano! maldita raça de traidores!
E de todos esses negros pensamentos ficou-me no espírito uma surda amargura, uma funda e dura tristeza, um vago desejo de desertar desta infeliz pátria, correndo à procura de um lugar onde se respire um ar menos assassino, onde a vida não seja tão amarga e tão tenebrosa, onde se não vejam cair tantas vítimas da peste e onde se não encontrem pelas praias cadáveres boiando misteriosamente. E uma dor imensa, terrível, sem esperanças de remédio, apoderou-se de mim e fez-me amaldiçoar a hora em que vim ao mundo. Imagina se trabalhei!
- E por que não aproveitaste a tua própria dor para fazer uma obra? Por que não fizeste da tua dor um poema?
- Porque era verdadeira demais para isso! Desconfia das lágrimas descritas em prosa e verso. A dor legítima é egoísta, é besta, é inútil, não serve senão para doer! A arte nasceu para cantar e não para chorar!
Ia replicar, metendo as botas no governo, mas o meu amigo cortou-me a palavra, segredando-me rapidamente:
- Caia-te! Esse sujeito que se assentou agora atrás de ti é um espião de polícia... Cuidado!
Embucbei.
                                                                                 O Combate, 11 de março de 1892







domingo, 13 de janeiro de 2013

Machado,cronista modelo


nestes dias de homenagens natalícias a cronistas contemporâneos -- casos de Rubem Brafa e Sergio Porto -- vale reportar a Machado de Assis, verdadeiro criador da crônica brasileira, nos moldes praticados ao longo do tempo,até os dias de hoje e que se anuncia eterno.
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                                                        A crônica em Machado de Assis

Inovador na ficção, como contista e romancista – está na história da literatura brasileira a magistral inflexão estilística, temática e de linguagem por ele executada no final da década de 1870 -- Machado de Assis foi soberbo cronista que fez da crônica muito mais do que um registro pontual do cotidiano, transformando-a em um verdadeiro gênero literário, a servir de modelo, molde e paradigma  a tudo e todos que o sucederam, inclusive os de hoje. .
Ao longo de 41 anos, Machado criou crônicas, nos mais diversos veículos, séries, formatos e assinaturas (ou disfarces), desde 1859, em O Parahyba (de Petrópolis), seguindo-se colaborações para o Correio Mercantil (1859-1864), para O Espelho (1859-60); para o Diário do Rio de Janeiro (1860-63: série “Comentários da Semana”; 1864-67: série “Ao Acaso”), O Futuro (1862-63), Imprensa Acadêmica, de São Paulo (1864 ; 1868 :série “Correspondência da Imprensa Acadêmica”) A Semana Ilustrada (1865-75: séries “Crônicas do Dr. Semana”, “Correio da Semana”, “Novidades da Semana” , “Pontos e Vírgulas”, “Badaladas), Ilustração Brasileira (1876-78: séries “Histórias de 15 dias”, “Histórias de 30 dias”), O Cruzeiro (1878: série “Notas Semanais), Revista Brasileira (1879), Gazeta de Notícias (1881-1900: séries “Balas de Estalo”, “A + B”, “Gazeta de Holanda”— constituídas em versos,os ‘versiprosa’ (termo cunhado por ele e que antecipa em muitos anos a mesma expressão usada por Carlos Drummond de Andrade --“Bons Dias!”  e “A Semana).
Nessas  quatro décadas -- com uma produção de 738 artigos --  o País  teve oportunidade de  conhecer um magnífico repositório da arte machadiana de criação de muitas  das melhores crônicas da literatura brasileira – um número nada desprezível delas consideradas verdadeiras obras-primas..
.Machado fez da crônica  mais do que simples jornalismo, superior ao comum do gênero – haja vista o que Artur Azevedo sentenciou em artigo em O Álbum ,janeiro 1893 : "(...) Atualmente escreve Machado de Assis, todos os domingos, na Gazeta de Notícias, uns artigos intitulados A Semana que noutro país mais literário que o nosso teriam produzido grande sensação artística", a atestar o quanto dotou a crônica dos elementos de verdadeira literatura.
A crônica de Machado de Assis, com suas primordiais características de leveza de tom e teor, fluência textual e estilística muito próxima da oralidade, ironia satírica e pilhéria, metáfora e paródia, ostenta também a presença incisiva (como ocorre em sua obra ficcional) dos conhecidos e admiráveis elementos machadianos do disfarce, da dissimulação, do subterfúgio, da sutileza, dos significados ocultos postos como desafios ao leitor, por meio de outras de suas peculiaridades, o uso do anonimato e do pseudônimo, de que ele foi um dos mais profícuos usuários, e em especial a “arte das transições”--  levada a extremos no unir tópicos aparentemente distintos, um parecendo não ter nada a ver com outro, mas que justapostos oferecem um resultado  surpreendente,cujo trajeto é ‘amenizado’ para o leitor , primeiro desviando-o do tema principal, depois retornando e reintegrando-o,numa espiral de circularidade muitas vezes nem percebida de todo. Mestre do subterfúgio, da dissimulação, da sutileza, do disfarce e do enigma, Machado esconde ou disfarça uma parte da verdade e desafia o leitor a descobri-la e fazê-la emergir, utilizando armadilhas retóricas típicas de sua narrativa na ficção, executadas também na crônica, sobretudo pelo absoluto  domínio da relação cronista-leitor, e a preponderância do conhecido narrador machadiano, o ‘narrador volúvel’ da ficção aparecendo  também na crônica :a rigor,   nos  comentários e ilações desse narrador é que a crônica  passa a se fazer e  sentir.
 Na verdade, sempre existiu em Machado um notável e meticuloso experimentador --  mutável na utilização de formas,estilos e modelos --  mas absolutamente seguro,determinado e consciente.. Ao longo do tempo, Machado sempre preocupou-se  com configurações para sua obra : (assim como o conto) a crônica foi um notável e eficaz terreno de experimentações narrativas, nelas se revelando uma seqüência notável de exercícios formais,estilísticos, de linguagem e de enfoque .As crônicas machadianas possuem , em si, estrutura,forma e encadeamentos consistentes e complexos, além de plena interação com os contextos histórico, político,econômico, social,cultural,urbano sob os quais  foram elaboradas : revelam cadeias de pensamento e reflexão em muitos aspectos, passagens e nuances intertextualizados, ou que viriam a se intertextualizar com elementos,ambiências e situações de romances e contos.
Nesse particular, é possível a construção de uma equação especulativa/ interpretativa sobre a correspondência do estilo e enfoque machadianos postos na crônica com estilos, formas e temas postos por ele na ficção e no conjunto de sua obra -- em especial o momento da inflexão, por volta do final da década de 1870, cujas causas e motivos tanto intrigam os analistas e estudiosos  de Machado. Em essência e matéria, a mesmíssima ‘reformulação’ de enfoque, forma e estilo imprimida por Machado de Assis em sua criação ficcional –-- transpondo o romantismo dos primeiros três romances (Ressurreição, A mão e a luva, Helena) e a ‘ideologia’ presente nos contos iniciais (abrigados nas coletâneas Contos fluminenses e Histórias da meia-noite), incorrente no processo de transição no final da década de 1870 (representado por Iaiá Garcia e anunciador da inovação/ ‘revolução’ sintetizada no ‘shandiano’ Memórias póstumas de Brás Cubas) para um  aprofundamento e sedimentação do realismo, mas ‘subvertendo’ e renovando esse realismo (em Papéis avulsos , consolidado em Quincas Borba, em Dom Casmurro, depois em Esaú e Jacó e no definitivo Memorial de Aires ) . Esse  processo de reformulação, dizíamos , deu-se da mesma forma, sob o mesmo diapasão, com a mesma ‘latitude’ literária , na mesma época, também na  produção das crônicas publicadas na imprensa.
 Ao se examinar a produção croniquesca de Machado encontraremos  crônicas que .impressionam não apenas pela matéria registrada e narrada mas sim pela forma de contá-la – quer interferindo direta e intimamente na narração, fazendo do narrador  o  comentarista, quer pelo distanciamento, numa forma de narrativa isenta mas intrinsecamente crítica. Em determinadas crônicas há por certo um Machado trivial e contido, em outros um autor meramente humorístico, com textos e narrativas que não passam do simples divertimento; alguns, aparentemente simplórios e despojados, mas carregados de significados; outros em que, sob a capa de uma escrita sóbria, discreta e ‘bem-comportada’ reveste contradições e ambigüidades comportamentais, , mazelas e injustiças sociais,hipocrisias morais e políticas. 
 Importante observar ainda quanto os períodos, os contextos históricos, os veículos e seus respectivos  espaços dados à crônica, as assinaturas, influíram tanto no enfoque temático, como  no timbre. Nenhuma série é essencial e totalmente idêntica a outra, ainda que guardem afinidades e similaridades, mantidas  as homogeneidade e unidade  inerentes a  cada uma .Da mesma forma se  constata que cada época, ou série, trata ou prioriza um tema que sobressai por sua relevância,sua particularidade, sobretudo por sua correspondência-consonância com o momento histórico de sua feitura : às distintas e seqüentes séries podem-se traçar a rigor, enredos e sub-enredos que se desdobram e interligam-se em ciclos -- cada script com seu pano de fundo temporal , sob o fio condutor   da própria história brasileira da segunda metade do século XIX.
Relevante e absolutamente indispensável realçar, nesse sentido, o quanto Machado, ao contrário do que equivocadamente interpretado e difundido, tratou de política em seus escritos – também nos contos e romances, sobretudo nas crônicas -- a desmistificar a pecha de “alheio a questões de seu tempo”, “alienado”, etc. Foi ele um lúcido ‘relator’ da história brasileira e um crítico atento e severo da sociedade e das instituições do País : dedicou-se intensamente, para quem não sabe, a registrar, comentar, refletir e especialmente criticar assuntos da esfera política.,  exposto em nada menos do que 385 crônicas ,vale dizer cerca de 52% de sua produção total de 738 artigos  – o mesmo se dando com relação à economia, referenciada e reportada em 77 crônicas..
 Ficção e realidade, ficção e história, ficção e sociedade brasileira constituem fulcros sempre presentes na obra machadiana. Em boa parte  de sua ficção e da não-ficção Machado oferece ao leitor uma interpretação satírica, por vezes alegórica,  desnundando mitos e certezas, aparências e disfarces, dilemas e mentiras -- sob o mesmo clamor crítico-satírico de seu olhar ,por vezes direto e transparente,por vezes machadianamente oblíquo e dissimulado, feito  testemunho incomparável  sobre a vida  brasileira  do século XIX.  


sábado, 12 de janeiro de 2013

salve,salve cronistas !!

pelos 100 anos de nascimento RUBEM BRAGA,em 12.01.013 -- mas também (e não sei o porquê de não o estar comemorando como merece) 90 anos,em 11.01.013, de SERGIO PORTO (aliás, quem cunhou Braga como "o sabiá da crônica"; e a quem Braga 'batizou' de Stanislaw Ponte Preta...) 

a crônica,mais do que um 'simples' gênero,encontra-se exatamente na fronteira entre o jornalismo e a literatura -- por isso grandes escritores constituíram-se grandes cronistas -- simbiose,e muitissimos outros elementos e atributos, criada e praticada originalmente por... Machado de Assis. então, na homenagem a Braga e a Sergio, como nasceu a crônica,segundo a acepção machadiana: -

- O nascimento da crônica
Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica.
Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.
Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.
Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopando que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.
Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contUdo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra.
Não afirmo sem prova.
Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!
Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, c dar às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?
                                                    [em 01.11.1877,na Semana Ilustrada, série "História de 15 dias"]