domingo, 29 de junho de 2014

MACHADO DE ASSIS, 175 anos(21.06.1839) - um corolário

 para concluir a série acerca dos 175 anos de nascimento de Machado, uma reflexão inerente à mais emblemática de suas obras.
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 em torno de Capitu e o exercício machadiano da dúvida.
 Machado sempre cultivou a dúvida como instrumento de reflexão, e evitava o maniqueísmo de personagens por não aflorar os questionamentos.. Uma das expressões de sua evolução literária foi a narração. O narrador machadiano muda. Existem as expressões cunhadas no estudo machadiano do narrador confiável e do narrador não-confiável; o narrador não-confiável se sobressaindo a partir da segunda fase, iniciada em 1880. Esse tipo de narrador é quem coloca dúvidas sobre as coisas. Nesse particular, costuma-se conferir importância desmesurada àquela grande questão do romance  Dom Casmurro: Capitu traiu ou não traiu? – o que é absolutamente descartável e desprezível. E aqui peço licença para abrir um longo parênteses e me estender nesse assunto, que é importante para caracterizar um elemento fundamental , um dos fulcros capitais de toda a ficção machadiana . A tola discussão se Capitu traiu ou não traiu é o que menos -- na verdade,nada – importa :Machado faz de Dom Casmurro -- a meu juízo, a maior obra da literatura brasileira, anos-luz acima de qualquer outra, comparável às maiores obras-primas da literatura universal -- um transcendental exercício da dúvida, um ensaio sobre a dúvida, que de resto permeia toda sua ficção : evoca-se,nesse romance,  o 'shakespearianismo' [sic : neologismo meu...] do ciúme e traição a la Otelo \Desdêmona, mas o que existe mesmo, assim entendo,é uma conotação 'hamletiana', vale dizer o 'ser ou não ser', que seria traduzido, sob a égide do exercício machadiano da dúvida,pelo 'traiu ou não traiu' inerente a Capitu -- aliás, a mais complexa e bem construída protagonista feminina da literatura brasileira , a suma da mulher machadiana criada e fomentada em toda sua ficção . Nesse ‘teor hamletiano’ reside toda a ficção machadiana, mormente na seara contística : é o 'fez\nãofez',''disse\não disse', ' saiu\não saiu', 'roubou\não roubou', 'recaiu\não recaiu' (caso do primoroso conto "Singular ocorrência"), e por aí vai. E o narrador é o agente dessas dúvidas .Examinado, ou lido, pela ótica, ou na órbita do ciúme --'oteliano': e  Shakespeare foi a maior influência sobre Machado, suas referência e citação prediletas, mil vezes referenciado em contos e crônicas -- Capitu é julgada infiel pelo narrador Bentinho, um ciumento nato e hereditário,doentio,e dissimulado -- e aqui entra outra grande influência de Machado : Freud , pois fomenta a pseudo-traição de Capitu como processo de transferência de sua atração pela mulher de Escobar.   Bentinho  é o narrador da história . e aqui chegamos ao âmago da coisa, no âmbito da análise literária, que creio 'mata' a questão : o narrador-em –primeira- pessoa machadiano, mormente pós-1880 é um narrador não-confiável, que de resto Machado adotou em muitos dos textos ficcionais desse período -- justo os mais importantes e impactantes -- ao contrário do narrador confiável de antes, que se expressa pelo chamado narrador-em terceira-pessoa (embora Machado tenha também criado um ‘falso’ narrador-em-terceira-pessoa, mas isso faz parte de outra digressão) . Se o narrador de Dom Casmurro  fosse este, distanciado e isento  tanto quanto possível, haveria campo para se cogitar de Capitu infiel, adúltera , mas não : sendo em primeira-pessoa, nada a declarar, ou melhor nada a discutir. Dom Casmurro surgiu cerca de 3 ou 4 anos depois de Madame Bovary, de Flaubert, e de O primo Basilio, de Eça de Queiroz, dois 'parentes' sanguíneos ,literariamente, do romance de Machado, mas neles o narrador –em- terceira-pessoa não deixa dúvidas quanto à infidelidade de Ema Bovary e de Luisa , que são personagens 'chapados',definidos, mulheres praticantes nitidamente da infidelidade --não cabe aqui discutir quais os motivos que as levaram, ainda que saibamos ter sido o abandono por parte dos maridos ou a insatisfação com o casamento, etc : aliás, a infidelidade que Machado insinua em suas protagonistas, ao longo de sua ficção, é exatamente motivada ou gerada por esse comportamento dos homens, vide como exemplo emblemático disso o conto "Uma partida',neste livro que ora publico. Capitu não, não é nada 'chapada', é primorosamente construída como figura literária , sua grandeza ficcional é comparável á de Ana Karenina, e por aí vai.
Machado ao longo de sua ficção levantava ,incentivava, insuflava e cultuava todas essas dúvidas,praticava quase que permanentemente esse exercício,  e as colocava no leitor. Então, ao mesmo tempo em que Machado moldava ,e mutava,  sua trama e seus protagonistas, também moldava e mutava narradores e, conseqüentemente, leitores. Esse culto ao questionamento passou para o leitor, que começou a ler,ou pelo menos deveria ler – o que é mais do válido para o leitor de hoje, também --  as histórias de Machado de forma diferente. E nisso está plenamente demonstrada a genialidade de um autor : na evolução literária de Machado, alteram-se formas e ritmos narrativos (condimentados de ironia e humor,adquirem um tom mais coloquial e de certa forma intimista), transformam-se protagonistas, transmutam-se narradores e leitores. Mutações e transformações, dos protagonistas , que se manifestam também em  transmutação do narrador e da voz narrativa e a criação  de um ‘novo’ leitor, o leitor- modelo em contraponto ao leitor-empírico. Machado construiu em seu texto  ,e por meio dele,  um novo “leitor-modelo” — definido este conforme a conceituação de “leitor-modelo’ e “leitor-empírico” de Umberto Eco. Machado formou seus leitores recorrendo a estratégias temáticas,tramáticas,narrativas,estilísticas que ,como poucos, tinha e sabia usar -- entre essas estratégias ,as digressões,fragmentações narrativas,retardamentos de fatos anunciados ou prometidos ao leitor, metamorfoses de vozes narrativas, de forma e de linguagem .Machado descondicionou o leitor empírico do leitor-modelo, como ninguém na literatura brasileira,  'desconstruiu' essa relação, embora via de regra seja ela utilizada para que o leitor chegue aonde o autor deseja. Contudo,  não satisfeito,na esteira desse 'dissídio' fez o leitor(o empírico) oscilar em "grave"-- que espera algo mais do que um 'simples texto', ou um 'puro romance', ou uma 'obra correta',um leitor que deseja reflexões de caráter mais realista-- e "frívolo"-- que espera impactos e emoções no texto ou na obra,um leitor de tipo romântico ;  ora graves ora frívolos, esses leitores são por assim dizer 'transportados' para dentro dos romances e para a maioria dos contos pós-1880 :   na obra machadiana, o leitor empírico é o ‘frívolo’, e ‘grave’ é o leitor-modelo.  Até o final da década de 1870, os  romances e contos , atendiam ao leitor empírico\frívolo ,  como aliás não poderia deixar de ser,  condicionado e formado no âmbito do Romantismo e seus valores ; ao passo que  o grave mantinha-se em ‘surdina’.  As metamorfose ao longo do tempo, a partir da década de 1860, deram-se concomitantes : na medida da evolução literária machadiana,o leitor empírico\frívolo vai ‘cedendo espaço’ ao leitor-modelo (inclusive um novo,criado por Machado)\grave, ao mesmo tempo em Machado  'camufla'  as diferenças existentes  entre injunções ficcionais e reais ,incentiva o leitor a acreditar no fictício,ou embuste\artimanha, e o induz a ilusões interpretativas, simplesmente fomentando um narrador de pouca,ou nenhuma, confiabilidade, uma espécie de 'narrador volúvel' que habita e conduz muitos de seus contos. E o leitor situa-se como um ‘espelho’ desse narrador.No fim , ainda que sob o controle do autor, ou do narrador  cabe ao leitor,quase que exclusivamente,  o acesso a unidade dentro da imensa e complexa obra ficcional de Machado – que nisso parece contrariar Nietzsche\Zaratustra : “Alguém que conhece o leitor, nada fará por ele...”
Vale lembrar que desde seu primeiro livro publicado,em 1861 , Queda que as mulheres têm para os tolos – que título instigante, provocador ! – Machado fomenta o enigma,o mistério, o disfarce,o subterfúgio: porque persiste a dúvida histórica de ser uma tradução ou uma criação original dele – de que teci especulações reflexivas em artigo específico sobre esse texto. Cá entre nós e para nós, a versão de ser criação original é muito mais,digamos,’charmosa’, muito mais – não há dúvida alguma — ao estilo e espírito machadiano: sutil, insinuante, ambíguo, dissimulado -- a par de outras igualmente grandiosas, a mais espetacular característica/conotação de toda obra de Machado. Ele sempre cultivou a dúvida, o ‘traiu ou não traiu’(implícito em sua maior e definitiva obra), ‘insinuou ou não’, ‘seduziu ou não’, ‘mentiu ou não’, ‘furtou ou não’,‘fez ou não fez’— e é esse teor ‘hamletiano’, a  ligá-lo e  referenciá-lo a ninguém menos que Shakespeare, uma de suas maiores admirações e citação constante .Dele, Machado assimilou e incorporou  à sua obra ficcional a temática do ciúme, aliás o binômio ‘ciúme e perdão’  – presente e atuante  em romances como Ressurreição, A mão e a luva, sobretudo em Dom Casmurro, e em inúmeros contos : binômio que remete a Freud, de quem Machado consubstanciou – sem o conhecer...— os elementos e conceitos do inconsciente, do psiquismo humano, da sexualidade feminina, estabelecendo como nenhum outro escritor brasileiro de seu tempo vetores e  pontos de interseção entre a literatura e a psicanálise,  desde as primeiras obras, mesmo as da ‘fase de aprendizado’ e atingindo seu clímax na denominada ‘fase de maturidade’. Como sentencia Roberto Schwarz  ,Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25 anos depois. Em Esaú e Jacó, por exemplo, antecipou-se a Freud no ‘complexo de Édipo’”.
O certo é que Queda que as mulheres têm para os tolos ser ou não tradução é o que menos importa. O que vale ser considerado mesmo é , primeiro, sua própria textura — leve, gracioso, fluente, irônico, bem-humorado — e sua indefinição genética, sua não-identificação formal; depois, ter sido inspiração para muito do que viria a seguir , o modelo de uma ‘teoria amorosa’ exercitada por Machado em “Desencantos”(1861), em Ressureição (1872), e finalmente na opera-mater, a grandiosa Dom Casmurro.(1899) .  Todos esses textos têm por modelo essa “teoria amorosa” -- traduzida ou não por Machado, em 1861; em todos eles, a ‘ideologia’ da dúvida, da dubiedade, da incerteza, da ambigüidade; todos abordam a questão da escolha que a mulher deve fazer entre um homem de espírito e um homem sem juízo – que constitui-se num dos primordiais arcabouços dramatúrgicos e temáticos da ficção machadiana.
Em Dom Casmurro a história de amor e ciúme de Bento Santiago e Capitolina representam a reescrita não apenas de Otelo de Shakespeare, mas das principais peças teatrais do dramaturgo inglês : Machado embebeu-se nas lições shakespeareanas e delas impregnou seu romance mais lido e estudado , conseguindo atar, finalmente, as duas pontas de sua carreira literária — a de tradutor, iniciada em sua juventude, paralelamente com a de dramaturgo,  e a de romancista, já maduro. Nessa simbiose, inclusive, Machado como que prenuncia, cerca de 100 anos antes, a tese contemporânea — vigente no âmbito da Teoria Literária desde o final do século XX — proposta por especialista, “a ficção vista  como  nova fonte de teorização para a tradução”, a  tradução  aparecendo como  fio condutor e meio operandi , quer tendo sido feita realmente em Queda que as mulheres têm para os tolos , quer ‘incorporada’ em Dom Casmurro, e estabelecendo vetores claros de inflexão em quatro etapas cruciais da vida literária de Machado.Um elo a ligar  ‘primeiras obras’ — a pioneira publicada, o exercício teatral inicial, o romance precursor — com aquela que é a síntese, corolário, consolidação. Elo que se alonga mais  ,  visto por outros aspectos e ângulos: vai  a Esaú e Jacó e atinge o corolário final em Memorial de Aires. Nos dois derradeiros trabalhos, Machado opta por um expediente ficcional — dentre os vários que utiliza ao longo de sua obra – atribuindo a um morto a autoria desses romances, deslocando-se para uma condição ambígua de editor e crítico de si mesmo, fingindo abrir mão da autoria de seu texto –-  ambiguidade gerada e conduzida pelo mesmíssimo vetor que o fez, nos primórdios, assumir a também condição ambígua de ‘tradutor’ em Queda...  e da mesma forma abrir mão da autoria de seu texto.







sexta-feira, 27 de junho de 2014

MACHADO DE ASSIS, 175 anos(21.06.1839) - VI

Os primeiros de Machado (contin.)
o 1o. livro publicado, 1861 -- extremamente significativo, por um conjunto incrível de elementos, que o fazem obra fundamental na produção literária machadiana
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Queda que as mulheres têm para os tolos

      Um sugestivo e instigante título batizou a primeira obra de Machado de Assis publicada em forma de livro — embora não o fosse o primeiro  texto dado a público : fora precedido por três poemas,um conto (que,a la Machado, duvida-se ser tradução ou criação original) e uma incipiente novela (cuja autoria é discutida até hoje), todos eles modestos exercícios de iniciação ficcional, praticados na imaturidade literária dos 20 anos .
         A primeira de suas peculiaridades reside no fato -- que o leitor perceberá de imediato -- de não constituir-se em um gênero definido, difícil de classificar nos moldes tradicionais, aproximando-se mais de uma sátira e menos de um ensaio, muito longe de ser um romance,uma novela, um conto ou uma crônica. Outra das particularidades refere-se ao ter despertado ao longo do tempo – não tanto quando de sua publicação – dúvidas, daí uma salutar (culturalmente falando) polêmica, quanto à sua condição de criação original ou tradução de Machado de Assis,contendo em si, portanto, uma conotação de mistério,dúvida e polêmica, que de resto apenas corroboram, por assim dizer, o ‘espírito’ machadiano de fazer literatura : afinal, todos sabemos, o autor de Dom Casmurro  utilizou em muitas de suas criações – romanescas e contísticas, até mesmo em crônicas – o subterfúgio, a dissimulação, o cultivo consciente, fundamentado e deliberado do enigma.
        A multiplicidade da representatividade histórica de Queda que as mulheres têm para os tolos expressa-se em especial por deflagrar , a par de todos os elementos acima mencionados,  um elo de interações, afinidades e intertextualidades com outros  importantes momentos da vida literária  de Machado de Assis, prenunciando,anunciando, antecipando e consubstanciando em sua forma,linguagem,estilo e conteúdo muito  do que viria a seguir na lavra ficcional do autor.
        Que elos de intertextualização são esses ? a) como suposta tradução -- que a meu juízo não é -- inserida na produção machadiana como intérprete de Victor Hugo, La Fontaine, Lamartine, Shakespeare, Dante, Poe, Dickens, Goethe,e outros, constitui manifestação pioneira do conceito da tradução, a incorporar a célebre “teoria do molho”  , reaplicada e reutilizada numa perspectiva das teorias do comparatismo elaboradas por ele  próprio, em muitos aspectos antecipadora da vertente atual dos estudos de Literatura Comparada ; b) a ‘teoria amorosa’ desenvolvida  em “Desencantos”, em Ressureição, e chegando a Dom Casmurro – o  livro inaugural interagindo com a primeira peça teatral, com o primeiro romance e  com a  obra-mater : em todas elas, a ‘ideologia’ da  dubiedade, da  ambigüidade, da dicotomia ; c) a mulher como protagonista primordial da ficção machadiana ,que nos moldes de  Flaubert, Balzac, Eça de Queiroz (juntamente com Freud – de quem Machado ‘antecipou’ muitos conceitos, não fosse este,como aquele, grande perscrutador da alma humana), traz para o centro das discussões, o feminino  e a questão da sexualidade feminina  : nenhum escritor de seu tempo  ‘edificou’ tanto a mulher como personagem capital e leitmotiv básico de seus textos como Machado ,que escrevia sobre mulheres e para mulher  ; d) a tríade  tolo -- mulher -- homem de espírito , que permeia toda a ficção machadiana, sob uma teia dramatúrgica presente em contos e romances ao longo do tempo e da evolução literária de Machado ,transportando a 'ideologia' de Queda que as mulheres têm para os tolos  para muitas das obras posteriores.
  
Machado, eterno enigma

Queda que as mulheres têm para os tolos  veio a lume no ano de 1861, originalmente publicada na revista A Marmota Fluminense, em cinco folhetins sucessivos: 19, 23, 26, 30 de abril e 03 de maio, e no mesmo ano em livro, um opúsculo de 43 páginas, formato 16 x 12cm , pela Typographia de Paula Brito [Francisco de Paula Brito, "o primeiro editor digno deste nome que houve entre nós", em citação de Machado de Assis, exerceu papel fundamental no desenvolvimento da carreira literária de Machado – bem como de muitos outros escritores, em meados do século XIX. Inaugurou, na verdade, uma vertente histórica e uma linhagem de editores ou casas editoriais que se constituíram em ponto de encontro da elite cultural e de incentivo à produção literária.]
 Tanto nos folhetins como nos volumes editados  aparece sob a indicação de “tradução de Machado de Assis”, sem informar no entanto   o nome do autor original.
 Estudiosos e pesquisadores de Machado de Assis por muito tempo sustentaram  -- em que me incorporei  -- tratar-se de  um trabalho original, disfarçado em tradução por ‘timidez’ do autor, mas o  ensaísta (e machadófilo) francês Jean-Michel Massa defendeu, recentemente, ser uma tradução do panfleto publicado anonimamente pela editora F. Renard de Liège, em 1859,  com o título “De l'amour des femmes pour les sots”, atribuído posteriormente ao belga Victor Henaux — ainda que apenas cite nominalmente  a obra, sem maiores detalhes , em seu livro Machado de Assis traducteur [Massa teria tido acesso, segundo ele, à 4ª. edição da obra de Henaux, pertencente à Biblioteca Nacional de Paris].
O disfarce concebido por Machado, segundo os que asseguram ser uma criação e não tradução – por ‘timidez’ do autor – seria mais um dos inúmeros  subterfúgios machadianos: de um lado, por ser Queda...  seu  primeiríssimo livro  publicado, em 1861; de outro lado, pelo fato de ser ele anda ‘um ilustre desconhecido’ e sobretudo por ser um texto de gênero absolutamente indefinido — não é romance, não é conto, não novela, não crônica, não poesia, não teatro : aproxima-se mais do ensaio (filosófico) .Machado , ‘a la Machado’, teria optado por aparecer como tradutor : inclusive porque sempre foi (e é) difícil encontrar, comprovar e certificar-se de  muitas das traduções  feitas por ele – que  constituem um permanente desafio a críticos,pesquisadores,historiadores e estudiosos.
Convém assinalar que em 1859, A Marmota publicou, também em folhetins,dois textos literários muito peculiares no que se referem a Machado de Assis. De 10 maio a 30 agosto, o conto “Bagatela” , com uma nota inicial informando “O  sr. Machado de Assis  cujo nome e de cujas produções literárias já os nossos leitores têm conhecimento, pelo que de sua pena se tem publicado, mimoseou-nos com a seguinte tradução,que muito lhe agradecemos, cujo trabalho não é,como o título diz, uma Bagatela”.No entanto, Jean-Michel Massa  realizou intensa pesquisa, consultando primeiramente “os melhores especialistas do conto fantástico(M.M. Castex, Vax, Stragliati,  M. Versians) e nenhum deles tinha a menor referência sobre esse texto; depois, buscando localizar na Biblioteca  Nacional de Paris o conto entre as principais obras -- nada menos que  19 obras publicadas entre 1842 e 1859 e em 3 coletâneas de contos fantásticos – da mesma forma nada encontrando; em última instância,Massa supõe que o conto possa ter sido publicado  numa revista literária francesa de pouca importância e algo obscura, da qual não restam exemplares ou registros bibliográficos.
Em se tratando de Machado, sabemos tudo ser possível – o feito pelo não-feito, o criado pelo traduzido, o escrito pelo não-escrito. Nada como esses exemplos para alimentarem especulações, divagações, ilações e interpretações em torno não apenas de Queda... – a rigor, um prenúncio do que se desenrolaria na produção literária de Machado – mas de várias outras obras, entre pseudônimos,anônimos e criptônimos, dúvidas e mistérios, sutilezas e enigmas,disfarces e subterfúgios .
Mestre dessas ‘artes’, Machado utilizou-os  à exaustão, como meios e instrumentos de disfarce: só de pseudônimos, foram mais de 30 assinaturas diferentes, em contos (como eram publicados em folhetins, por vezes uma assinatura diferente para cada capítulo) e crônicas : nestas, a prática do anonimato, por Machado, atingiu seu auge, por assim dizer, na série “Bons Dias!”, conjunto seqüencial de crônicas publicadas na Gazeta de Notícias de abril 1888 a agosto 1889  – porque somente descoberto e revelado na década de 1950, por J. Galante de Souza, vale dizer cerca de 70 anos depois (!)    

Mistério e enigmas, aliás, não faltam na obra e na carreira literária de Machado. O mistério machadiano pode perfeitamente ser  associado à lenda fáustica : Fausto, de Goethe,símbolo da inquietação humana, aturdido num universo que não compreendia, vendeu a alma ao diabo, em troca de sabedoria e poder ; Machado, ao contrário , desdenhou do poder, preocupado apenas em alcançar o conhecimento, “aquele conhecimento impiedoso, meio diabólico e tantas vezes doloroso que desnuda a alma do homem e procura, em vão, levantar o véu da natureza”. Em Machado, pressente-se sempre que há alguma coisa mais oculta, sem se saber exatamente  o quê — e nada o explica satisfatoriamente. Sente-se que existe sempre algo a descobrir no mistério machadiano, no enigma do criador de uma obra de ficção tão importante quanto a dos grandes mestres dos séculos XIX e XX, como Balzac, Stendhal,  Flaubert, Proust.
 Por outro lado, os que admitem Queda que as mulheres têm para os tolos como  efetivamente tradução, ainda assim mantêm suas dúvidas ( a que me integro) , de resto extensivas a essa dificuldade na localização de traduções efetivamente realizadas por  Machado e, importante saber, ao fato de Machado simplesmente suprimir seu nome como tradutor em alguns trabalhos.
Daí, quem garante Queda que as mulheres têm para os tolos ser  efetivamente uma tradução feita por Machado, ou mais um de seus subterfúgios ? E cá entre nós e para nós, a versão considerada por mais de um século é muito mais, digamos, ‘charmosa’, muito mais —  não há dúvida alguma — condizente e apropriada ao estilo e espírito  machadiano : sutil, insinuante, ambíguo, dissimulado. Pois não é essa, a par de outras igualmente grandiosas, a mais espetacular característica/conotação de toda obra de Machado ? Ele sempre cultivou a dúvida, o ‘traiu ou não traiu’(implícito em sua maior e definitiva obra), ‘insinuou ou não’, ‘seduziu ou não’, ‘mentiu ou não’, ‘furtou ou não’,‘fez ou não fez’— um  teor ‘hamletiano’ que permeia todos os romances, contos e  novelas, a  ligá-lo e  referenciá-lo a  Shakespeare,uma de suas grandes admirações e contumaz citação ..
De Shakespeare e de Goethe – este,  outra  de suas leituras mais assíduas --Machado assimilou e incorporou  à sua obra ficcional a temática do ciúme, aliás o binômio ‘ciúme e perdão’ , presente e atuante  em romances como Ressurreição, A mão e a luva, sobretudo em Dom Casmurro, e em inúmeros contos : binômio que também (ou essencialmente) remete a Freud, de quem Machado consubstanciou – sem o conhecer...—os elementos e conceitos do inconsciente, do psiquismo humano, da sexualidade feminina, estabelecendo como nenhum outro escritor brasileiro de seu tempo vetores e  pontos de interseção entre a literatura e a psicanálise,  desde as primeiras obras, mesmo as da ‘fase de aprendizado’ e atingindo seu clímax na denominada ‘fase de maturidade’. Como sentencia Roberto Schwarz  , “Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25 anos depois. Em Esaú e Jacó, por exemplo, antecipou-se a Freud no ‘complexo de Édipo’”. E sabemos ser   Machado de Assis  o grande  autor do romance psicológico brasileiro do século XIX e do início do século XX.
 O certo é que  Queda que as mulheres têm para os tolos ser ou não tradução é o que menos importa. O que vale ser considerado mesmo é, primeiro, sua própria textura — leve, gracioso, fluente, irônico, bem-humorado — e sua indefinição genética, sua não-identificação formal ; depois, ter sido inspiração para muito do que viria a seguir , o modelo de uma ‘teoria amorosa’ exercitada por Machado em “Desencantos”(1861), em Ressurreição(1872), e finalmente na opera-mater, a grandiosa Dom Casmurro.(1899).  Queda que as mulheres têm para os tolos adquire representativa especial e peculiar, pois lhe serviu de inspiração para a escrita de sua primeira peça teatral, por cadeia, de seu primeiro romance,e, por fim, de sua obra definitiva e  consagradora .Todos esses textos têm por modelo a “teoria amorosa” -- traduzida ou não – anunciada por Machado, em 1861;   em todas eles, a ‘ideologia’ da dúvida, da dubiedade, da incerteza, da ambigüidade; todos eles abordam a questão da escolha que a mulher deve fazer entre um homem de espírito e um homem sem juízo – que constitui-se num dos primordiais arcabouços dramatúrgicos e temáticos da ficção machadiana.

a forma literária de uma trindade machadiana
        Entre os vários e relevantes  elementos por meio dos quais Queda que as mulheres têm para os tolos prenuncia, integra-se e intertextualiza-se  com diversas obras machadiana,entre eles a ironia, o sarcasmo, a sutileza, a finura psicológica, o vocativo ao leitor, vale  destacar o que se pode denominar de  ‘diplomacia amorosa’ ,  expressa pela  tríade  tolo -- mulher -- homem de espírito que permeia toda a ficção machadiana e sua evolução literária .
     A trindade habita intensamente, como protagonista, a maioria dos contos do ciclo 1858-71 -- mormente nos contos “Confissões de uma viúva moça”,“Fernando e Fernanda”,”A felicidade pelo casamento” , “O anjo Rafael” ,”A mulher de preto”, “Linha reta e linha curva” ,“Ernesto de Tal”, “O machete”, “Aires e Vergueiro”, “Antes que cases” – e está presente em todos os contos  do período 1872-79 . A tríade está nos romances RessureiçãoA mão e a luvaHelena , anuncia-se algo transformada na transição representada por Iaiá Garcia, transmuta-se inteiramente em Memórias póstumas de Brás Cubas (quando surge consistentemente o cético, oriundo do homem de espírito transformado), reaparece em Quincas Borba , e, sob outra perspectiva ,em Dom Casmurro , por fim chega a seu ocaso nos derradeiros romances Esaú e Jacó e Memorial de Aires (o cético  atingindo seu cume no Conselheiro Aires) : na última obra, a seara  da redenção total da mulher machadiana(protagonizada por Carmo), definitivamente apartada da preferência pelo tolo ao invés e em vez do homem de espírito.
            Os tolos são, via de regra, frívolos, estroínas, praticam as fórmulas socialmente estabelecidas, sua linguagem assemelha-se à retórica romântica dos folhetins, ostentam autoconfiança, são determinados e objetivos nas ações afetivas, até mesmo fingindo sentimentos e aparentando paixões com o fito exclusivo de conquistar a mulher. Exatamente ao contrário dos homens de espírito, que fracassam e são excluídos por não se coadunarem com os padrões de postura, convenções e relacionamento sociais e por acreditarem numa vida  além e acima do jogo estratégico de aparências falsas e artificiais – mas se verá  que , ao longo do tempo e dos contos  ( e aqui convém lembrar o quanto os contos se constituíram de terreno e instrumento de experimentação, como meio fundamental do processo de evolução ficcional de Machado até a ‘inflexão’ do final da década de 1870/início de 1880 ,  cujas causas e motivos tanto intrigam os analistas e estudiosos de Machado) , numa espécie de aprendizado pelo fracasso, irão amadurecer,assumir  uma atitude de reflexão sobre a "realidade aética da vida" vis –a - vis com a desilusão com as possibilidades da vida moral e  transmutar-se no cético.
       Se o macro-universo do entorno – os cenários político-institucionais-sociais, mormente a partir da década de 1870 --  se transforma, o micro-universo literário deve acompanhá-lo: Machado pressente os novos tempos,convence-se da necessidade crucial de mudança, já exercita os primeiros passos do grande salto que virá no final dessa década, altera seu enfoque, sua temática,sua linguagem,seu estilo, sua estética literária – a começar pelos novos perfis dados a dois dos vértices do triângulo. Apenas dois, porque o tolo continuará com sua frivolidade e estoicismo, servil das convenções sociais e atado ainda à retórica romântica. De um lado, o homem de espírito muda, amadurece, estabelece nova relação com a mulher-- recusando terminante e objetivamente aquelas que fingem e ostentam--caminha da contemplação para o ceticismo; de outro, a senhorinha ingênua,namoradeira,festeira,‘casamenteira’(por interesse ou conveniência) cede lugar,primeiro à mulher matrimonial (por sentimento ou segurança),voltada para a vida íntima, para “a paz doméstica”,tornando-se  depois – pelo rompimento gradativo dessa paz e a fragilidade dessa vida doméstica – vulnerável à “vida exterior”,“estratégica”,dual,.determinada, paradoxal..
              A ‘nova’ mulher machadiana deplora a frivolidade do tolo (com quem se casou) e passa a se inclinar para o homem de espírito (de quem aspira ser  amante). Machado, atento e obediente aos ditames sociais-‘ideológicos’ dos novos tempos,como sempre praticou em toda sua obra ficcional, convoca o leitor à acurada reflexão sobre a preferência da mulher – quer a antiga quer a atual – e deixa-lhe a responsabilidade do julgamento conclusivo. A ele cabe dizer afinal o que pensam/querem as mulheres. 
 Em  Dom Casmurro  a história de amor e ciúme de Bento Santiago e Capitolina representam a reescrita não apenas de Otelo de Shakespeare, mas das principais peças teatrais do dramaturgo inglês : leitor contumaz,e em especial tradutor,  dos textos shakespeareanos, Machado embebeu-se nas lições do ‘bardo’ e delas impregnou seu romance mais lido e estudado , conseguindo atar, finalmente, as duas pontas de sua carreira literária — a de tradutor, iniciada em sua juventude, paralelamente com a de dramaturgo,  e a de romancista, já maduro. Nessa simbiose , inclusive, Machado como que prenuncia, cerca de 100 anos antes, a tese contemporânea — vigorante no âmbito da Teoria Literária desde o final do século XX  — proposta por especialista, “a ficção vista  como  nova fonte de teorização para a tradução”, a  tradução  aparecendo como  fio condutor e meio operandi , quer tendo sido feita realmente em Queda que as mulheres têm para os tolos., quer ‘incorporada’ em Dom Casmurro, e estabelecendo vetores claros de inflexão em quatro etapas cruciais da vida literária de Machado.

Por outro lado, ao se  examinar  alguns aspectos da atividade de tradutor em Machado de Assis, denota-se que em todas as traduções que fez, “se permitiu algumas licenças”, as quais demonstram que, para ele, o traduzir não deveria ser um ofício de menor valor na carreira de um escritor. Como tradutor e crítico-teórico do traduzir, Machado desde o início de sua carreira literária percebeu como nenhum de seus contemporâneos a importância do papel da tradução  como geradora e incentivadora do ‘diálogo’ entre textos, ou ‘diálogo entre literaturas’,como propiciadora da hoje extremamente citada e difundida intertextualidade — na qual, como em muitos outros campos e searas,  foi ele também um precursor.

Machado em sua  ação tradutória  não compartilhava com seus contemporâneos “o entendimento de cor local, no sentido dado pelo Romantismo – o etnocentrismo, o indigenismo, a paisagem natal como elementos essenciais para se criar uma literatura nacional genuína” – colocando-o em discordância com o momento cultural do País no século XIX. E ia além, criando e praticando um conceito da tradução – na verdade, um processo criador -- que, entre outros aspectos, incorporava  em maior ou menor grau sua célebre “teoria do molho” , segundo a qual  "pode-se ir buscar a especiaria alheia, mas há de ser para temperá-la com o molho de sua fábrica" : vale dizer, embora bebesse nas fontes européias utilizadas como ‘comida para seus pensamentos’,  ruminava os diversos alimentos e os transformavam em pratos tipicamente machadianos, pois tirava de cada coisa uma parte e fazia o seu ideal de arte, que praticava pioneiramente como ninguém --  reaplicada e reutilizada numa perspectiva das teorias do comparatismo elaboradas por ele  próprio, em muitos aspectos antecipadoras da vertente atual dos estudos de Literatura Comparada.
Tenha sido tradução ou não -- em ambos os casos, manifesto eloqüente de criatividade de Machado – dando início e alavancando sua evolução literária ,  Queda que as mulheres têm para os tolos ultrapassa os limites de seu próprio significado histórico, como  obra debutante e reveladora para , estabelecendo elos e decorrências na criação ficcional, na inspiração  teatral, na atividade tradutória ,abrindo e fechando ciclos temáticos, oferecendo todas as possibilidades de análise,interpretação e reflexão, contextualiza-se na fértil e enorme seara da genialidade de Machado de Assis como uma das expressões mais proeminentes de verdadeira transcendência literária.   



MACHADO DE ASSIS, 175 anos(21.06.1839) - V


Os primeiros de Machado (contin.)

a crônica primeira:
A odisséa econômica do sr. ministro da Fazenda"
Afinal apareceu uma das medidas prometidas pelo governo contra os males da situação; medida homeopática com que o Gabinete similia similibus pretende curar o mal que enxerga nas instituições bancárias. O projeto do sr. Sales é realmente uma concepção enfezada, irmão ou próximo parente de um outro de certo deputado que pretende a organização do trabalho.
O homem moral do sr. Sales Torres Homem sofreu uma transformação, e não é certo aquele mesmo que tão ardente parecia no apostolado das liberdades públicas. Este projeto com que o atual ministro pretende aniquilar o crédito, tem um só vislumbre das idéias que animavam aquele Graco de tantas painas vigorosas? 

(...)

### não posso mais do que apresentar aqui excerto dos dois parágrafos iniciais desta crônica, publicada originalmente no jornal O Parahyba, de Petrópolis, em , 26 junho 1859 [há portanto exatos 155 anos, considerando estarmos hoje em 26.06.2014], porquanto , INÉDITA QUE ATÉ AGORA É, em livro ou no digital, será dada a público formal e oficialmente em meu livro "Inéditos de Machado de Assis (uma crônica; um editorial; um conto; duas traduções)', pela Academia Brasileira de Letras - ora no prelo.
_________________
"O Parahyba", jornal bissemanal, fundado em Petrópolis em 1857(a 02.12) pelo jornalista e escritor Augusto Emílio Zaluar, caracterizou-se por um acervo de idéias "progressistas", abrigando, no campo político, teses e posturas liberais pouco comuns então, como p. ex. a educação, questões econômico-financeiras, problemas fundiários e de colonização de terras,além de aspectos ligados a costumes e comportamentos e tratamento de temas pouco enfocados, alguns considerados ‘difíceis’ ou delicados(como p. ex. a situação da mulher na sociedade). o jornal manteve-se até novembro(27) de 1859, vencido por dificuldades financeiras, apesar de contar com um grupo de colaboradores bastante qualificado e de nomes, como Machado de Assis, Quintino Bocaiúva, Manuel Antonio de Almeida,entre outros.
Esta foi a única crônica publicada por Machado em "O Parahyba" , ele então com 20 anos (as outras colaborações machadianas no jornal foram os poemas “Vem!”(11.04.1858), “A uma donzela árabe”- tradução de original de Lamartine (20.01.1859), “A um poeta” (17.02.1859), “S. Helena”(22.05.1859), “Nunca mais” (12.06.1859).
..........
A crônica – já se denota por suas primeiras linhas -- ostenta nítido e explícito teor político, detectados claramente em seus próprios título e conteúdo. Importante notar que, apesar do vigoroso tom da crônica, não vacila em assiná-la expressamente, com seu nome – ao contrário da ‘cautela’ adotada, p. ex., nos mencionados dois primeiros textos, ao assinar respectivamente As e M.A., em outras de suas crônicas e artigos, em contos – em muitas e muitos com o uso de pseudônimos.
A crônica tem em foco a política econômica preconizada por Sales Torres Homem, então ministro da Fazenda do Gabinete conservador(1858-59) de Antônio Paulino de Abreu, visconde de Abaeté, de reversão do programa de grande expansão do meio circulante posto em prática pelo anterior Gabinete (também conservador,1857-58) de Pedro de Araújo Lima, marquês de Olinda ; Torres Homem encaminha à Câmara projeto, tido como radicalmente conservador e tendente a restringir vigorosamente o crédito. Machado, então liberal ao extremo, interpreta o plano de Torres Homem como “atentatório a liberdades constitucionais” e pondo em cheque a competência financeira do ministro. 

MACHADO DE ASSIS, 175 anos(21.06.1839) - IV

Os primeiros de Machado (contin.)

o conto debutante:
Três tesouros perdidos

o primeiro conto de Machado, publicado originalmente em A Marmota ,5 janeiro 1858,oferece importantes elementos de interpretação : ao lhe conferir um evidente teor anedótico , Machado formaliza um desvio de viés ‘ideológico’ no figurino romanesco: de acordo com o qual , nas obras iniciais , pelo menos até 1871/73 , as personagens machadianas são do
nzelas conformadas com os casamentos ,em geral ao sabor de conveniências ou por vontade dos pais, por mais contrárias que fossem a seus sentimentos e inclinações, ou por mais inesperadas e surpreendentes que se dessem as decisões.
Machado prenuncia, em seu debut ficcional, um elemento temático que habitaria muito de seus contos e romances -- a infidelidade conjugal. só que, ao contrário da absoluta maioria dos contos em que aparece, em que é apenas desejada,idealizada,aspirada pela mulher, nunca concretizada , aqui a faz explícita, concreta, plenamente realizada e 'visível'. notável ousadia machadiana ! ainda desconhecido,tratando de tema tão 'delicado', o expõe corajosamente de modo claro, mas resguarda-se assinando o conto por criptônimo [ ***] (ele, mestre também no uso de pseudônimos) e construindo a narrativa ( em terceira pessoa), que não dá nome aos personagens.primórdios,claro, dos exercícios de dissimulação e subterfúgio machadianos.
..............................
Uma tarde, eram quatro horas, o sr. X... voltava à sua casa para jantar. O apetite que levava não o fez reparar em um cabriolé que estava parado à sua porta. Entrou, subiu a escada, penetra na sala e... dá com os olhos em um homem que passeava a largos passos como agitado por uma interna aflição.
Cumprimentou-o polidamente; mas o homem lançou-se sobre ele e com uma voz alterada, diz-lhe:
— Senhor, eu sou F..., marido da senhora Dona E...
— Estimo muito conhecê-lo, responde o sr. X...; mas não tenho a honra de conhecer a senhora Dona E...
— Não a conhece! Não a conhece! ... quer juntar a zombaria à infâmia?
— Senhor!...
E o sr. X... deu um passo para ele.
— Alto lá!
O sr. F... , tirando do bolso uma pistola, continuou:
— Ou o senhor há de deixar esta corte, ou vai morrer como um cão!
— Mas, senhor, disse o sr. X..., a quem a eloqüência do sr. F... tinha produzido um certo efeito, que motivo tem o senhor?...
— Que motivo! É boa! Pois não é um motivo andar o senhor fazendo a corte à minha mulher?
— A corte à sua mulher! não compreendo!
— Não compreende! oh! não me faça perder a estribeira .
— Creio que se engana...
— Enganar-me! É boa! ... mas eu o vi... sair duas vezes de minha casa...
— Sua casa!
— No Andaraí ... por uma porta secreta... Vamos! ou...
— Mas, senhor, há de ser outro, que se pareça comigo...
— Não; não; é o senhor mesmo... como escapar-me este ar de tolo que ressalta de toda a sua cara? Vamos, ou deixar a cidade, ou morrer... Escolha!
Era um dilema. O sr. X... compreendeu que estava metido entre um cavalo e uma pistola. Pois toda a sua paixão era ir a Minas, escolheu o cavalo.
Surgiu, porém, uma objeção.
— Mas, senhor, disse ele, os meus recursos...
— Os seus recursos! Ah! tudo previ... descanse... eu sou um marido previdente.
E tirando da algibeira da casaca uma linda carteira de couro da Rússia, diz-lhe:
— Aqui tem dois contos de réis para os gastos da viagem; vamos, parta! parta imediatamente. Para onde vai?
— Para Minas.
— Oh! a pátria do Tiradentes ! Deus o leve a salvamento... Perdôo-lhe, mas não volte a esta corte... Boa viagem!
Dizendo isto, o sr. F... desceu precipitadamente a escada, e entrou no cabriolé, que desapareceu em uma nuvem de poeira.
O sr. X... ficou por alguns instantes pensativo. Não podia acreditar nos seus olhos e ouvidos; pensava sonhar. Um engano trazia-lhe dois contos de réis, e a realização de um dos seus mais caros sonhos. Jantou tranqüilamente, e daí a uma hora partia para a terra de Gonzaga , deixando em sua casa apenas um moleque encarregado de instruir, pelo espaço de oito dias, aos seus amigos sobre o seu destino.
No dia seguinte, pelas onze horas da manhã, voltava o sr. F... para a sua chácara de Andaraí, pois tinha passado a noite fora.
Entrou, penetrou na sala, e indo deixar o chapéu sobre uma mesa, viu ali o seguinte bilhete:
“Meu caro esposo! Parto no paquete em companhia do teu amigo P... Vou para a Europa. Desculpa a má companhia, pois melhor não podia ser. — Tua E...”
Desesperado, fora de si, o sr. F... lança-se a um jornal que perto estava: o paquete tinha partido às oito horas.
— Era P... que eu acreditava meu amigo... Ah! maldição! Ao menos não percamos os dois contos! Tornou a meter-se no cabriolé e dirigiu-se à casa do sr. X..., subiu; apareceu o moleque.
— Teu senhor?
— Partiu para Minas.
O sr. F... desmaiou.
Quando deu acordo de si estava louco... louco varrido!
Hoje, quando alguém o visita, diz ele com um tom lastimoso:
— Perdi três tesouros a um tempo: uma mulher sem igual, um amigo a toda prova, e uma linda carteira cheia de encantadoras notas... que bem podiam aquecer-me as algibeiras !...
Neste último ponto, o doido tem razão, e parece ser um doido com juízo.
                                         
                                                                                        ***

MACHADO DE ASSIS, 175 anos - III

MACHADO DE ASSIS, 175 anos - III

Os primeiros de Machado (contin.)
[as primeiras poesias- postadas em 22.06]

* a 1ª. crítica literária
"Idéias Vagas — a Poesia"
Marmota Fluminense, 10-6-1856
"Idéias Vagas — a Comédia Moderna"
Marmota Fluminense, 31-7-1856
"Idéias Vagas — os Contemporâneos --Mont'alverne"
Marmota Fluminense, 4-9-1856; 6-9-1856.
.
* o 1o. conto
“Três tesouros perdidos”
A Marmota, 05.01.1858.
W. M. Jackson, 1937

*o 1o. artigo
“Os cegos”
A Marmota, 5-3-1858
“Os cegos”
A Marmota, 16-3-1858
“Os cegos”
A Marmota, 26-3-1858

* a 1ª. crônica
“A odisséia econômica do sr. Ministro da Fazenda”
O Parahyba, Petrópolis, 26-6-1859

* a 1ª. crítica teatral
“Revista do Teatro”
O Espelho, 11-9-1859

* a 1ª. peça teatral
“Hoje avental, amanhã luva”.
A Marmota, 20-3-1860; 23-3-1860; 27-3-1860.

*o 1o. romance
"Ressurreição"
em livro - B.L.Garnier, 1872

domingo, 22 de junho de 2014

MACHADO DE ASSIS, 175 anos - II

neste 21 junho, em 1839, nascia o maior escritor brasileiro de todos os tempos e um dos maiores da literatura universal

[se 18 abril é dado como o "Dia Nacional do Livro", por ser o dia de nascimento de Monteiro Lobato,  21 de junho há de ser definitivamente o "Dia Nacional da Literatura" ]
                                                                              ___________________

Os primeiros de Machado
textos abrigando as primeiras produções literárias de Machado, seguindo sua respectiva ordem cronológica.

a primeiríssima peça de criação machadiana foi um poema intitulado “Sonetos” , dedicado a uma misteriosa  "Ilma. Sra. D.P.J.A.", publicado em 1854 -- atentem : ele com 15 anos !!...-- com a assinatura J. M. M. Assis, no Periódico dos Pobres – poema esse de que se tem notícia mas nenhuma  cópia conhecida (perdeu-se no tempo,na então incipiência autoral de Machado e na insignificância da qualidade literária.do texto...).
devidamente registradas, como peças debutantes, são os  poemas “A palmeira”,estampado na edição de 6 janeiro 1855 no jornal A Marmota Fluminense (a partir de 1857 passou a intitular-se apenas A Marmota) de Paula Brito (o tipógrafo,livreiro e editor de enorme e crucial influência na vida de Machado), seguido do poema "Ela", publicado nesse mesmo jornal em 12 janeiro.
Manuel Bandeira escreveu que “Machado de Assis poeta tornou-se vítima de Machado de Assis prosador”, evidenciando o quanto de diferença existe entre a obra do contista,do romancista e do cronista e a produção do poeta.
o Machado poeta,quando se inicia,  prende-se aos padrões do romantismo da época, de autores românticos e até mesmo de alguns árcades—como não poderia deixar de ser : são poemas com  grande preocupação formal,  sempre com linguagem bem cuidada, de temática  amorosa ou lírica.
para o poeta e crítico Alexei Bueno “(...)requintada, harmoniosa, equilibrada, a poesia de Machado de Assis ocupa uma posição singular em nossa literatura ; desde  sua estréia,  em pleno período romântico, ele distinguiu-se dos seus pares pela expressão e o espírito : em versos de técnica apurada, com um certo sabor clássico, o jovem poeta falava de amor, mas sem a ingenuidade, o atropelo e o calor da escola romântica, de suas preocupações com problemas sociais e com a missão do poeta em meio ao desconcerto do mundo(...)"

A palmeira
              a Francisco Gonçalves Braga

Como é linda e verdejante
Esta palmeira gigante
Que se eleva sobre o monte!
Como seus galhos frondosos
S'elevam tão majestosos
Quase a tocar no horizonte!

Ó palmeira, eu te saúdo,
Ó tronco valente e mudo,
Da natureza expressão!
Aqui te venho ofertar
Triste canto, que soltar
Vai meu triste coração.

Sim, bem triste, que pendida
Tenho a fronte amortecida,
Do pesar acabrunhada!
Sofro os rigores da sorte,
Das desgraças a mais forte
Nesta vida amargurada!

Como tu amas a terra
Que tua raiz encerra,
Com profunda discrição;
Também amei da donzela
Sua imagem meiga e bela,
Que alentava o coração.

Como ao brilho purpurino
Do crepúsculo matutino
Da manhã o doce albor;
Também amei com loucura
Ess'alma toda ternura
Dei-lhe todo o meu amor!

Amei!. .. mas negra traição
Perverteu o coração
Dessa imagem da candura!
Sofri então dor cruel,
Sorvi da desgraça o fel,
Sorvi tragos d'amargura!
........................
Adeus, palmeira! ao cantor
Guarda o segredo de amor;
Sim, cala os segredos meus!
Não reveles o meu canto,
Esconde em ti o meu pranto
Adeus, ó palmeira!. .. adeus!
________
in A Marmota Fluminense,6 janeiro 1855


Ela
                   Nunca vi, - não sei se existe
                    Uma deidade tão bela,
                    Que tenha uns olhos brilhantes
                    Como são os olhos dela!
                                                     F. G. Braga


Seus olhos que· brilham tanto,
Que prendem tão doce encanto,
Que prendem um casto amor
Onde com rara beleza,
Se esmerou a natureza
Com meiguice e com primor.
Suas faces purpurinas
De rubras cores divinas
De mago brilho e condão;
Meigas faces que harmonia
Inspira em doce poesia
Ao meu terno coração!
Sua boca meiga e breve,
Onde um sorriso de leve
Com doçura se desliza,
Ornando purpúrea cor,
Celestes lábios de amor
Que com neve se harmoniza.
Com sua boca mimosa
Solta voz harmoniosa
Que inspira ardente paixão,
Dos lábios de Querubim
Eu quisera ouvir um - sim _
Pr'a alívio do coração!
Vem, ó anjo de candura,
Fazer a dita, a ventura
De minh'alma, sem vigor;
Donzela, vem dar-lhe alento,
Faz-lhe gozar teu portento,
"Dá-lhe um suspiro de amor!"
_____________
in A Marmota Fluminense,12 janeiro 1855

como ‘curiosidade’, vale ainda expor outro poema, muito peculiar, dessa fase -- no qual Machado evoca o 'byronismo' que influenciara e impregnara a poética de Álvares de Azevedo,para citar o exemplo mais manifesto e enfático, por extensão muito da poesia que se fazia mormente em São Paulo no início da década de 1850. o poema machadiano em questão é "Cognac".

Cognac!...

Vem, meu cognac, meu licor d'amores! ...
É longo o sono teu dentro do frasco;
Do teu ardor a inspiração brotando
             O cérebro incendeia! ...
Da vida a insipidez gostoso adoças;
Mais vai um trago teu que mil grandezas;
Suave distração - da vida esmalte,
              Quem há que te não ame?
  Tomado com o café em fresca tarde
Derramas tanto ardor pelas entranhas,
Que o já provecto renascer-lhe sente
               Da mocidade o fogo!
Cognac! - inspirador de ledos sonhos,
Excitante licor - de amor ardente!
Uma tua garrafa e o Dom Quixote,
                 É  passatempo amável!
Que poeta que sou com teu auxílio!
Somente um trago teu m'inspira um verso;
O copo cheio o mais sonoro canto;
               Todo o frasco um poema!
_________________
in A Marmota Fluminense,12 abril 1856

                                              --------------------------------------------------------------

  a 1ª. tradução de Machado
                                                                                   .....
......................
 [Machado  foi um excepcional, extraordinário tradutor. Mário de Alencar sustenta ter sido ele dos melhores de toda a literatura brasileira.
          A tradução ocupa um período bastante longo na carreira de Machado . O ensaísta francês e (grande) estudioso machadiano Jean-Michel Massa relaciona entre os textos traduzidos por Machado entre 1856 e 1894 :  24 poemas, 19  peças de teatro, 3 ensaios, 2 romances, 1 conto , 1 fábula e até  1 canção — sendo 39 textos oriundos do francês,4 do inglês, 3 do alemão, 1 texto cada do italiano e do espanhol — de autores como Lamartine, Dante Alighieri, Alexandre Dumas Filho, Chateaubriand, Racine, La Fontaine, Alfred de Musset, Molière, Victor Hugo, Beaumarchais, Shakespeare, Charles Dickens, Edgar Allan Poe, Schiller e Heine (ambos a partir de  versões francesas)..
         Machado, em sua ação tradutória não compartilhava com seus contemporâneos “o entendimento de cor local, no sentido dado pelo Romantismo”, colocando-se em discordância com o momento cultural do País no século XIX. E ia além, criando e praticando um conceito da tradução – na verdade, um processo criador -- que, entre outros aspectos, incorporava  em maior ou menor grau sua célebre “teoria do molho” , segundo a qual  "pode ir buscar a especiaria alheia, mas há de ser para temperá-la com o molho de sua fábrica" : vale dizer, embora bebesse nas fontes européias utilizadas como ‘comida para seus pensamentos’,  ruminava os diversos ‘alimentos’ e os transformava em pratos tipicamente machadianos, pois tirava de cada coisa uma parte e fazia o seu ideal de arte,  praticado, reaplicado e reutilizado numa perspectiva de  comparatismo e de tradução que consubstanciava no termo “transcriação”, -- em muitos aspectos antecipadora da vertente atual dos estudos de Literatura Comparada.
         Como tradutor e crítico-teórico do traduzir, desde o início de sua carreira literária percebeu como nenhum de seus contemporâneos a importância do papel da tradução como geradora e incentivadora do ‘diálogo’ entre textos, ou ‘diálogo entre literaturas’,como propiciadora da hoje extremamente citada e difundida intertextualidade — na qual, como em muitos outros campos e searas,  foi ele também um precursor.
        Uma citação do próprio  Machado de Assis serve para  demonstrar o quanto seus pressupostos teóricos para o exercício da tradução, formulados na época,aproximam-se de muitos dos conceitos atuais de Teoria Literária  — não fosse ele “criador avançado em seu tempo”,  “o escritor mais moderno do Oitocentos” :
            A literatura, como Proteu, troca de formas, e nisso está a condição de  sua vitalidade.]
                                                                                             ........................

Minha mãe
(imitação de Cowper *)

                Quanto eu, pobre de mim! quanto eu quisera
                          Viver feliz com minha mãe tambéml
                                                      C.A.de SÁ

Quem foi que o berço me embalou da infância
Entre as doçuras que do empíreo vêm?
E nos beijos de célica fragrância
Velou meu puro sono? Minha mãe!

Se devo ter no peito uma lembrança
É dela que os meus sonhos de criança
            Dourou: - é minha mãe!

Quem foi que no entoar canções mimosas
Cheia de um terno amor - anjo do bem
Minha fronte infantil - encheu de rosas
De mimosos sorrisos? - Minha mãe!

Se dentro do meu peito macilento
O fogo da saudade me arde lento
          É  dela: minha mãe.

Qual anjo que as mãos me uniu outrora
E as rezas me ensinou que da alma vêm?
E a imagem me mostrou que o mundo adora,
E ensinou a adorá-Ia? - Minha mãe!

Não devemos nós crer num puro riso
Desse anjo gentil do paraíso
         Que chama-se uma mãe?


Por ela rezarei eternamente
Que ela reza por mim no céu também;
Nas santas rezas do meu peito ardente
Repetirei um nome: - minha mãe!

Se devem louros ter meus cantos d'alma
Oh! do porvir eu trocaria a palma
              Para ter minha mãe!
 __________________

in A Marmota Fluminense,2 setembro 1856
* William Cowper(1731-1800), poeta inglês


sábado, 21 de junho de 2014

MACHADO DE ASSIS, 175 anos - I

neste 21 junho, em 1839, nascia o maior escritor brasileiro de todos os tempos e um dos maiores da literatura universal
[se 18 abril é dado como o "Dia Nacional do Livro", por ser o dia de nascimento de Monteiro Lobato,  21 de junho há de ser definitivamente o "Dia Nacional da Literatura" ]
                                                             ______________________

Machado de Assis , o Livramento , a Região portuária

Não fossem em geral com a cidade do Rio de Janeiro como um todo – por certo, alguns locais e bairros mais do que outros : sua obra literária o mostra sobejamente  – Machado de Assis guarda  estreitas, ‘íntimas’ relações,  em  diversas ordens e escalas, com a região portuária, ampla área urbana delimitada geográfica-geologicamente pelos morros de São Bento, do Livramento e da Conceição – este, marco da ocupação inicial da cidade do Rio de Janeiro pelos portugueses,  constituía  com os morros do Castelo, de Santo Antônio e de São Bento um quadrilátero onde a cidade cresceu por três séculos,a partir da sua fundação em 1565.
Relações – diga-se melhor: interações – machadianas com essa área da cidade criadas e delineadas ainda em sua origem natal : nasceu (a 21 junho 1839), batizado de Joaquim Maria,  e cresceu no morro do Livramento, então vasta área bucólica e  agrícola,  calmo e tranqüilo, com plantações, animais, carros-de-boi (importante frisar, a dirimir os equívocos interpretativos no sentido de conferir ao local características menos nobres...), na  chácara (estendida por toda a área da colina, a oeste até o atual Ministério do Exército, na Central, quase tocando o Campo da Aclimação – hoje Campo de Santana, a leste se prolongando até a baía, por pouco chegando à praia do Valongo, ponto de desembarque dos navios negreiros), de propriedade de Maria José de Souza e Silva, feita sua madrinha (o Maria do nome de escritor vem dela), onde viviam como agregados (então estado e condição corrente, nada demérita ou pejorativa, entre cidadãos), seus pais Francisco José de Assis e Maria Leopoldina Machado, casados 11 meses antes do nascimento do filho.
Passando e transmutando a  outras órbita e esfera – a  literária,  Machado tornado escritor desde 1855 (ele com 16 anos) – a região portuária carioca ambientou, por via da  Gamboa, Saúde, Santo Cristo, Prainha, praia Formosa, diversos de seus contos  -- como, p. ex., “O caso da vara”, “Anedota pecuniária”, “A cartomante”, “A igreja do diabo”, “Noite de almirante”, “Conto de escola”, “O cônego ou a metafísica de estilo”, “Missa do galo” , “O lapso”, “Pai contra mãe” ( nesses dois  aparece também o Valongo) , “Suje-se, gordo !” (em que a ladeira da Conceição é quase personagem...) – e  os romances “A mão e a luva”, “Memórias póstumas de Brás Cubas”, “Quincas Borba”.
Particularmente, os portugueses assumem papel crucial na sinergia de Machado com a região: primeiro, pela própria condição dos lusitanos como “formadores’ da região, originários habitantes do morro da Conceição no século XV, seus descendentes e novos grupos etários como moradores,também no morro de São Bento, no séculos subseqüentes, trabalhando como empregados ou empregadores (considerável,  até hoje, o número de negociantes e empresários lusos agrupados na atual rua do Acre e suas adjacências) nos estabelecimentos comerciais circundantes ; em especial, em outra órbita, pela integração machadiana nas esferas literária, intelectual e pessoal com escritores e literatos lusos no Rio de Janeiro das décadas de 1850 a 1880.
Em 1855 encontravam-se na cidade carioca cerca de 30 mil portugueses, a  maioria dedicada ao comércio,varejista e atacadista, mas que mantinham e  praticavam a ‘flama da literatura’, exercendo durante o dia a função de empregado ou de caixeiro e ao fim da tarde e à noite entregando-se a uma “liberdade poética” e atividades literárias : nos anos 1850, reunidos no Grêmio Literário Português -- que em 1858 publicou luxuoso álbum, com poemas e escritos por caixeiros, acerca do centenário do poeta português Bocage -- em 1862 no dissidente Retiro Literário Português, ambas sociedades abrigando tanto comerciantes e empregados no comércio quanto escritores e literatos, entre eles Machado.
Estritamente nos prismas cultural e intelectual, decisiva foi a participação e a atuação dos portugueses, vale dizer dos literatos aqui estabelecidos, nas formação, constituição, vida e obra literárias de Machado.
 Os estudiosos (e estudantes) de Machado de Assis e os estudiosos (e estudantes) de Literatura Comparada, também os leitores e ledores de modo geral, não desconhecem o quanto as formação e constituição literárias machadianas, de resto, válido para todos os escritores brasileiros, se fizeram por meio e via das influências e orientações recebidas de textos, obras e autores , entre clássicos ou não, entre contemporâneos, quer  nacionais quer estrangeiros : entre estes, os franceses (preponderantes), os ingleses, alemães, gregos, latinos, italianos, espanhóis – e os portugueses. Não obstante a preponderância dos franceses nesse cenário de influências estrangeiras, nenhum contingente marcou tanto Machado como os portugueses – não apenas na seara propriamente dita da literatura mas também no embasamento político-ideológico-filosófico. Nenhum escritor ou literato brasileiro, à época, aproximou-se e identificou-se de tal forma, e essência, junto aos portugueses, como ele.
A solidez e a característica genuína dos vínculos machadianos com os portugueses são nitidamente expressas por elementos que se estendem de  sua própria origem familiar aos fortes e intensos laços de amizade com lusitanos então residentes no Rio de Janeiro, de seu casamento às  leituras que lhe acompanharam por toda a vida ,fosse nos acervos públicos por ele regularmente freqüentados fosse nos livros em sua biblioteca pessoal, de sua formação literária e cultural às inúmeras (e significativas) citações,alusões, referências e recorrências a autores e obras lusitanos em sua ficção e não-ficção.
Extenso, como extremamente significativo, é o elenco de fraternas amizades cultivadas, desde sua juventude, com escritores portugueses recém transferidos para o Rio de Janeiro desde 1837,  afastando-se do levante do Porto e atraídos pelo ambiente acolhedor e boas condições de atividade  cultural..
Pelos anos 1850 já se encontravam radicados no Rio de Janeiro literatos como Francisco Gonçalves Braga, Augusto Emílio Zaluar, Carlos Augusto de Sá, Faustino Xavier de Novais, Francisco Ramos Paz, Ernesto Cybrão, Reinaldo Carlos Montoro, Manuel de Melo, José Feliciano de Castilho, Antônio Feliciano de Castilho : todos de alguma influência nas rodas literárias e nos ambientes letrados da capital brasileira.
Relacionamentos, convivências e atividades intelectuais em comum exercidos e praticados em torno, primeiramente da Sociedade Petalógica (criada e incentivada por Paula Brito),em  1854-55, na qual estavam Braga,Zaluar e Garção; em seguida no escritório de Caetano Filgueiras, onde constituiu-se o denominado “Grupo dos Cinco”, composto de Filgueiras,Braga,.os brasileiros Casimiro de Abreu,Cândido Macedo Junior,e Machado, em  1857; depois, um novo grupo,unidos por traços ideológicos comuns de elementos democráticos e liberais, a fornecerem o fermento para uma nova postura política de Machado (que a  sustentaria daí por diante, ao longo do tempo), no qual  estreitou seu relacionamento com Augusto Emilio Zaluar, Reinaldo Carlos Montoro,Francisco Ramos Paz, Remigio de Sena Pereira. Também exercidos, os relacionamentos e convivências, nos saraus literários; nas reuniões no Grêmio Literário Português, no Retiro Literário Português , na Arcádia Fluminense ; e  ao ensejo de dois eventos bastante significativos : o centenário (aliás, mais comemorado no Brasil que em Portugal) de nascimento de  Bocage, em 1865, e o tricentenário de nascimento de Camões, 1880, iniciativa do Gabinete Português de Leitura.
Como os portugueses marcaram literariamente o Machado escritor ? Primeiramente, por meio dos autores e obras clássicos, quer antigos e canônicos quer contemporâneos a ele, dos quais foi Machado um persistente leitor, entre aqueles  armazenados em sua biblioteca e aqueles consultados, uns regularmente outros especifica e episodicamente, nos acervos públicos e privados que freqüentava.
O papel e  influências de poetas portugueses  na formação de Machado de Assis, inserido  de resto na própria  tradição poética luso-brasileira da época, têm exemplos cristalinos em Camões,Garret e Castilho, que  marcaram forte e intensamente a poética machadiana, bem como  Francisco Gonçalves Braga , a quem Machado designou como “meu primeiro mestre”; a se destacar também as influências significativas de Alexandre Herculano – ao lado de Garret, considerado por Machado como modelo na prosa -- e João de Barros na constituição de seu conhecimento histórico.
Almeida Garret, mister enfatizar, a par da acentuada influência temática e estilística na poética machadiana, teve seu “Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa”, de 1827 ( estudo fundamental para a história da literatura no Brasil, a apontar caminhos da emancipação literária – o que viria a se constituir na égide do movimento deflagrado na década de 1830 por Gonçalves de Magalhães e José de Alencar, em prol de um “nacionalismo literário brasileiro”)como  forte inspiração para as reflexões de Machado acerca da literatura brasileira, expressas nos ensaios “O passado, o presente e o futuro da literatura brasileira”(1858), “Instinto de nacionalidade”(1873) e “A nova geração”(1879), e sua obra Viagens da minha terra como uma das peças que moldaram,no teor da sátira menipéica-luciânica (ao lado das obras de Sterne,Diderot e Xavier de Maistre),  a célebre inflexão machadiana no início da década de 1880.
A se arrolar ainda Camilo Castelo Branco, que inspirou Machado em certos recursos narrativos, como as digressões metaliterárias, as interferências do narrador em diálogo com o leitor, o uso da ironia (já foram apontados elementos da novela  Coração ,cabeça e estômago: uma estética da ambiguidade, de Camilo, em Memórias póstumas de Brás Cubas).
Machado e os portugueses, Machado e a região portuária;  o morro da Conceição – ‘berço’ da colônia lusitana no Rio – o ‘irmanado’  geologicamente morro do Livramento – nascedouro de um escritor brasileiro de estatura universal -- feitos epicentros de uma corrente histórico-geografico- literário- cultural da cidade do Rio de Janeiro e do País, desde sempre e para sempre.
“(...) Portugal não teve apenas influência, ele está presente [no Brasil]. Os portugueses suscitam desdobramentos delicados (...) ;são eles próprios engrenagens vivas e sensíveis. Trata-se de recolher os elementos que permitirão escrever a história interatlântica do mundo lusofalante no século XIX.. As duas literaturas vivem em simbiose.”( J.M-Massa)