sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

ano novo,sempre


Machado de Assis e o ano novo [de 1865-- que pode ser o de 2011, e todos...]


Volto com o novo ano - não direi tão loução como ele, nem ainda tão celebrado - mas seguramente tão cheio de promessas que espero cumprir, se, todavia, não intervier alguma razão de estado.

Os leitores sabem, mais ou menos, o que é uma razão de estado para o folhetim. A preguiça é um dom em que saímos aos deuses.

O ano que alvorece é sempre recebido entre palmas e beijos, ao passo que o ano que descamba na eternidade vai acompanhado de invectivas e maldições. Se isto não fosse uma regra absoluta, era legítima a exceção que se fizesse para a ocasião presente, em que se despede de nós o mais férreo, o mais infausto, o mais negro de todos os anos.

Se eu não receasse fazer uma revista do ano, em vez de uma revista da semana, percorria aqui os principais acontecimentos e desastres do finado ano de 1864. Foi esse o ano dos fenômenos de toda a casta, tanto naturais, como políticos, como financeiros; foi o ano que produziu as revoluções astronômicas, as crises comerciais e as patacoadas e empalmações políticas - em ambos os mundos, e quase em todos os meses.

Veja-se, pois, se o ano de 1865 não deve ser um ano singularmente celebrado, o alvo de todos os olhos, o objeto de todas as esperanças.

Ele é, por assim dizer, o arco da aliança, que se desenha no horizonte assombreado, como uma promessa de paz e de concórdia.

Manterá ele as promessas que faz? corresponderá à confiança que inspira? Ai triste! !a resposta é negativa: todas as palmas do dia da Circuncisão se converterão em vaias no dia de S. Silvestre. É a repetição do mesmo programa, o programa dos abissínios.
Mas tal é a singular disposição do espírito humano que, só quando se for embora êste ano em que se puseram tantas esperanças, é que se lembrará de que no ano então amaldiçoado houve para ele um momento de felicidade verdadeira - ou a satisfação de uma ambição política - ou a realização de uma ilusão literária - ou uma hora de amor, de solitário andar por entre a gente - ou o sucesso de uma boa operação econômica.

Temos saudade de todos os anos, mas é só quando eles se acham já mergulhados em um passado mais ou menos remoto - porque o homem corre a vida entre dois horizontes --o passado e o futuro - a saudade e a esperança - a esperança e a saudade, diz um poeta, têm um horizonte idêntico : l' éloignement.

Quando 1865 não corresponder às aspirações de cada um, e quando todos se lembrarem desse momento de felicidade de 1864, então cada qual repetirá as suas maldições contra 1865, e sentirá, mas de modo diferente, as suas decepções: o político e o financeiro correm o risco de procurar na boca da pistola a solução da dificuldade, e o esquecimento da derrota; o poeta e o amante espalharão algumas saudades sobre a campa dos seus amores e das suas ilusões. Pobre poeta! pobre amante! pobre político! pobre financeiro!

Folgo de crer que entre os meus leitores nenhum haverá que tenha ocasião de assistir a tais catástrofes; a todos desejo que o ano que começa seja mais feliz do que o ano que acaba, ou tão feliz, se ele foi feliz para alguns.
(...)
M.A.
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quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Natal: 2 contos e um soneto


Conto de Natal
Arthur Azevedo
I
Das janelas da sala de jantar dos barões de Santa Bárbara, nas Laranjeiras, vi-se o interior da miserável casinha onde morava o Alexandre, pobre –diabo desempregado e enfermo, vivendo de expedientes confessáveis,carregando a vida com um esforço quase sobre-humano.
Fosse ele sozinho e tudo iria pelo melhor ; mas era casado, e lhe nascera um filhinho nas proximidades daquele Natal de 1871. Vir ao mundo uma criança, pelo Natal numa casa sem pão nem conforto, é uma dessas ironias da sorte, que só se tolerara à força de filosofia. O Alexandre era filósofo.
Os barões de Santa Bárbara, que possuíam grandes cabedais,desejavam ter filhos e não os tinham. É sempre assim. A baronesa, das janelas da sala de jantar, olhava com inveja para a mulher do Alexandre. A mulher do Alexandre era pobre,paupérrima, quase indigente, mas tinha o prazer e o orgulho de amamentar um filho !
Na véspera daquele Natal de 1871, os barões de Santa Bárbara,enquanto esperavam o almoço, debruçaram-se à janela e viram no interior de um quarto, na casinha do Alexandre, o recém-nascido deitado numa caixa de batatas, envolvido em trapos.
O barão , que não era insensível às misérias do próximo, encheu-se de piedade,tanto mais que, pela coincidência do dia em que o acaso lhe deparava tão lastimoso espetáculo, parecia-lhe o próprio Menino Jesus que ali estava deitado naqueles trapos, mas um Menino Jesus desprezado pelos Reis Magos e pastores, um Menino Jesus com alfazema,talvez, mas sem incenso nem mirra.
Sabia o barão que a baronesa era muito egoísta : não gostava de praticar o bem nem mesmo por ostentação ; foi, por isso, com certo receio que lhe propôs enviarem algum socorro aos vizinhos pobres ; quanto mais não fosse, umas roupinhas para o bebê.
- Estás doido ! respondeu ela. Nunca mais nos largariam a porta !
- Mas não era preciso que soubessem de onde partia o benefício ; a nossa esmola seria anônima ...
- Qual ! deixa-te dessas idéias ! Eles precisam, é certo, mas há quem precise ainda mais e não seria justo socorrer somente a estes ,quando não podemos acudir aos outros ! Por que esse exclusivismo ? E depois, tu sabes lá que espécie de gente é essa ? Tu sabes se empregaríamos bem a nossa caridade ? Deixa-te dessas idéias, homem de Deus, e vamos almoçar, que a maionese está na mesa.
Comeram ambos o almoço triste dos esposos que pensam diversamente um do outro, sem filhos que atenuem o que possa ter de inconveniente e dolorosa a divergência de sentimentos e impressões.
Inteligente e sensato, o barão não contrariava a baronesa,embora no íntimo lhe detestasse o caráter, e não perdoasse tanto egoísmo numa criatura que lhe trouxera, quando se casou com ele, apenas a roupa do corpo e o próprio corpo. Fazia-lhe todas as vontades.
Foi assim que comprara aquele título ridículo de barão de Santa Bárbara, nome da fazenda onde ele nascera, e era propriedade sua, na Província do Rio.
Todos o tinham em conta de um marido dominado pela mulher, quando o que o dominava era apenas o desejo de viver com ela em aparente harmonia, sem dar aos criados nem aos vizinhos,nem a si mesmo o espetáculo mofino de um casal desunido.
O barão saiu logo depois do almoço e foi a carro para o seu escritório da rua de São Bento.
Como a lembrança do pobre pequenino ,deitado no caixão de batatas, o perseguisse com a insistência de um remorso, ele chamou em particular um empregado de confiança, incumbiu-o de comprar um berço, um enxoval completo de recém-nascido, peças de morim e de chita, latas de leite condensado, vidros de geléia, garrafas de vinho do Porto, etc, e mandar tudo, e mais algum dinheiro,à casa do Alexandre, sem que ninguém soubesse nem suspeitasse a proveniência desse presente.
O empregado cumpriu irrepreensivelmente as ordens do patrão, e foi com uma surpresa, manifestada por frases impertinentes, que a baronesa viu, à tardinha, o caixão de batatas substituído por um berço de vime e os andrajos por boa roupa.
- Vês ? disse ela ao barão. Faríamos asneira se lhes mandássemos alguma coisa: não lhes falta nada !
Pouco tempo depois, a família do Alexandre mudou de residência, e os barões de Santa Bárbara nunca mais tiveram notícia dela.
II

Passaram-se muitos anos ,que correram prósperos para o barão, grande plantador de café ; mas a lei de 13 de Maio surpreendeu-o, como a tantos outros agricultores imprevidentes, e a sua fortuna sofreu grandes reveses.
Depois de proclamada a República, ele atirou-se às especulações da Bolsa ; ficou milionário durante a nevrose do Encilhamento, e não adivinhou a catástrofe. Quando esta veio, encontrou os seus milhões representados em ações de bancos e companhias que não valiam mais nada, e cuja liquidação foi a ruína completa. Nada,absolutamente nada lhe deixaram !...
Nesse doloroso transe, o infeliz titular não ouviu da esposa uma única palavra de consolação ou de esperança que o animasse ; pelo contrário : a baronesa desfazia-se em exprobações e invetivas, e isto concorreu, naturalmente, para desesperá-lo.
O mísero tinha resolvido suicidar-se, quando uma congestão pulmonar o livrou de cometer esse pecado.
Morto o barão, a baronesa, sexagenária e enferma, ficou reduzida à miséria. Os amigos e parentes do marido tinham já se evaporado há muito tempo, e nenhum simpatizava com ela.
A desgraçada ia ser posta na rua por um senhorio implacável, e, para não morrer de fome, estava resolvida a pedir que a mandassem para um asilo, quando foi procurada por um belo rapaz de vinte e cinco anos,pouco mais ou menos, que lhe disse :
- Sra. baronesa, conheço v.ex., estou ao corrente de todas as desgraças que lhe sucederam, venho pedir-lhe que aceite um lugar em nossa casa.
- Mas quem é o senhor ?
- Sou aquela criança que, na véspera do Natal, em 1871, nas Laranjeiras, dormia num caixão de batatas, e a quem v. ex. socorreu,mandando-lhe um berço,roupinhas e leite. Bem vê v.ex. que não faço mais do que pagar uma dívida de gratidão.
- Mas não me lembro... não fui eu que...
- O empregado que se encarregou de fazer com que essa delicada esmola chegasse ao seu destino, não foi tão discreto como lhe recomendaram. Ele disse a meu pai,confidencialmente, que a esmola era do falecido sr.barão, mas minha mãe acudiu logo : - Não ! a lembrança é da baronesa ! Só as mulheres são capazes destes melindres do coração !
A baronesa não confirmou nem desmentiu.
- Há vinte e cinco anos, continuou o rapaz, o nome de v. ex. é repetido naquela casa como o de uma santa ! Venha, sra. baronesa ! Meu paí é morto, mas eu ganho o suficiente para sustentar duas mães...
Uma hora depois, a baronesa de Santa Bárbara estava muito bem alojada na casa dos seus protetores.
___________
Milagre do Natal
Lima Barreto

O bairro do Andaraí é muito triste e muito úmido. As montanhas que enfeitam a nossa cidade, aí tomam maior altura e ainda conservam a densa vegetação que as devia adornar com mais força em tempos idos. O tom p1úmbeo das árvores como que enegrece o horizonte e torna triste o arrabalde.
Nas vertentes dessas mesmas montanhas, quando dão para o mar, este quebra a monotonia
do quadro e o sol se espadana mais livremente, obtendo as cousas humanas, minúsculas e mesquinhas, uma garridice e uma alegria que não estão nelas, mas que sê percebem nelas. As tacanhas casas de Botafogo se nos afigura assim; as bombásticas "vilas" de Copacabana, também; mas, no Andaraí, tudo fica esmagado pela alta montanha e sua sombria vegetação.
Era numa rua desse bairro que morava Feliciano Campossolo Nunes, chefe de secção do Tesouro Nacional, ou antes e melhor: subdiretor. A casa era própria e tinha na cimalha este dístico pretensioso: "Vila Sebastiana". O gosto da fachada, as proporções da casa não precisam ser descritas: todos conhecem um e as outras. Na frente, havia um jardinzinho que se estendia para a esquerda, oitenta centímetros a um metro, além da fachada. Era o vão que correspondia à varanda lateral, quase a correr todo o prédio.
Campossolo era um homem grave, ventrudo, calvo, de mãos polpudas e dedos curtos. Não largava a pasta de marroquim em que trazia para a casa os papéis da repartição com o fito de não lê -los; e também o guarda-chuva de castão de ouro e forro de seda.Pesado e de pernas curtas, era com grande dificuldade que ele vencia os dois degraus dos "Minas Gerais" da Light, atrapalhado com semelhantes cangalhas: a pasta e o guarda chuva de " ouro".
Usava chapéu de coco e cavanhaque.
Morava ali com sua mulher mais a filha solteira e única, a Mariazinha.A mulher, Dona Sebastiana, que batizara a vila e com cujo dinheiro a fizeram, era mais alta do que ele e não tinha nenhum relevo de fisionomia, senão um artificial, um aposto. Consistia num pequeno pince-nez de aros de ouro, preso, por detrás da orelha, com trancelim de seda. Não nascera
com ele, mas era como se tivesse nascido, pois jamais alguém havia visto Dona Sebastiana sem aquele adendo, acavalado no nariz. fosse de dia, fosse de noite. Ela, quando queria olhar alguém ou alguma cousa com jeito e perfeição, erguia bem a cabeça e toda Dona Sebastiana tomava um entono de magistrado severo.
Era baiana, como o marido, e a Única queixa que tinha do Rio cifrava-se em não haver aqui
bons temperos para as moquecas, carurus e outras comidas da Bahia, que ela sabia preparar com perfeição, auxiliada pela preta Inácia, que, com eles. viera do Salvador, quando o marido foi transferido para São Sebastião. Se se oferecia portador, mandava-os buscar; e. quando, aqui chegavam e ela preparava uma boa moqueca, esquecia -se de tudo, até que estará muito longe da sua querida cidade de Tomé de Sousa.
Sua filha, a Mariazinha, não era assim e até se esquecera que por lá nascera: cariocara-se inteiramente. Era uma moça de vinte anos, fina de talhe, poucas carnes, mais alta que o pai,
entestando com a mãe, bonita e vulgar. O seu traço de beleza eram os seus olhos de topázio com estilhas negras. Nela, não havia nem invento, nem novidade como - as outras.
Eram estes os habitantes da "Vila Sebastiana" , além de um molecote que nunca era o mesmo. De dous em dous meses, por isso ou por aquilo, era substituído por outro, mais claro ou mais escuro, conforme a sorte calhava.
Em certos domingos, o Senhor Campossolo convidava alguns dos seus subordinados a irem almoçar ou jantar com eles. Não era um qualquer. Ele os escolhia com acerto e sabedoria. Tinha uma filha solteira e não podia pôr dentro de casa um qualquer, mesmo que fosse empregado de fazenda. Aos que mais constantemente convidava, eram os terceiros escriturários Fortunato Guaicuru e Simplício Fontes, os seus braços direitos na secção. Aquele era bacharel em Direito e espécie de seu secretário e consultor em assuntos difíceis; e o último chefe do protocolo da sua secção, cargo de extrema responsabilidade, para que não houvesse extravio de processos e se acoimasse a sua subdiretoria de relaxada e desidiosa. Eram eles dous os seus mais constantes comensais, nos seus bons domingos de efusões familiares. Demais, ele tinha uma filha a casar e era bom que...
Os senhores devem ter verificado que os pais sempre procuram casar as filhas na classe que
pertencem: os negociantes com negociantes ou caixeiros; os militares com outros militares; os médicos com outros médicos e assim por diante. Não é de estranhar, portanto, que o chefe Campossolo quisesse casar sua filha com um funcionário público que fosse da sua repartição e até da sua própria secção.
Guaicuru era de Mato Grosso. Tinha um tipo acentuadamente índio. Malares salientes, face
curta, mento largo e duro, bigodes de cerdas de javali, testa fugidia e as pernas um tanto arqueadas. Nomeado para a alfândega de Corumbá, transferira-se para a delegacia fiscal de Goiás. Aí, passou três ou quatro anos, formando-se, na respectiva faculdade de Direito, porque não há cidade do Brasil, capital ou não, em que não haja uma. Obtido o título, passou-se para a Casa da Moeda e,desta repartição, para o Tesouro. Nunca se esquecia de trazer o anel de rubi, à mostra. Era um rapaz forte, de ombros largos e direitos; ao contrário de Simplício que era franzino, peito pouco saliente, pálido, com uns doces e grandes olhos negros e de uma timidez de donzela.Era carioca e obtivera o seu lugar direitinho, quase sem pistolão e sem nenhuma intromissão de políticos na sua nomeação.
Mais ilustrado, não direi; mas muito mais instruído que Guaicuru, a audácia deste o superava, não no coração de Mariazinha, mas no interesse que tinha a mãe desta no casamento da filha. Na mesa, todas as atenções tinha Dona Sebastiana pelo hipotético bacharel:
- Porque não advoga? perguntou Dona Sebastiana, rindo, com seu quádruplo olhar altaneiro, da filha ao caboclo que, na sua frente e a seu mando, se sentavam juntos.
- Minha senhora, não tenho tempo...
- Como não tem tempo? O Felicianinho consentiria - não é Felicianinho? Campossolo fazia solenemente :
- Como não, estou sempre disposto a auxiliar a progressividade dos colegas.
Simplício, à esquerda de Dona Sebastiana, olhava distraído para a fruteira e nada dizia. Guaicuru, que não queria dizer que a verdadeira . razão estava em não ser a tal faculdade "reconhecida", negaceava:
- Os colegas podiam reclamar.
Dona Sebastiana acudia com vivacidade :
- Qual o que . O senhor reclamava, Senhor Simplício?
Ao ouvir o seu nome, o pobre rapaz tirava os olhos da fruteira e perguntava com espanto:
- O que, Dona Sebastiana ?
- O senhor reclamaria se Felicianinho consentisse que o Guaicuru saísse, para ir advogar?
- Não.
E voltava a olhar a fruteira, encontrando-se rapidamente com os olhos de topázio de Mariazinha. Campossolo continuava a comer e Dona Sebastiana insistia:
- Eu, se fosse o senhor ia advogar.
- Não posso. Não é só a repartição que me toma o tempo. Trabalho em um livro de grandes proporções.

Todos se espantaram. Mariazinha olhou Guaicuru; Dona Sebastiana levantou mais a cabeça
com pince-nez e tudo; Simplício que, agora, contemplava esse quadro célebre nas salas burguesas,representando uma ave, dependurada pelas pernas e faz pendant com a ceia do Senhor - Simplício,dizia, cravou resolutamente o olhar sobre o colega, e Campossolo perguntou:
- Sobre o que trata?
- Direito administrativo brasileiro.
Campossolo observou:
- Deve ser uma obra de peso.
- Espero.
Simplício continuava espantado, quase estúpido a olhar Guaicuru. Percebendo isto, o matogrossense apressou-se:
- Você vai ver o plano. Quer ouvi-lo ?
Todos, menos Mariazinha, responderam, quase a um tempo só:
- Quero.
O bacharel de Goiás endireitou o busto curto na cadeira e começou:
- Vou entroncar o nosso Direito administrativo no antigo Direito administrativo português.
Há muita gente que pensa que no antigo regime não havia um Direito administrativo. Havia. Vou estudar o mecanismo do Estado nessa época, no que toca a Portugal. V ou ver as funções dos ministros e dos seus subordinados, por intermédio de letra-morta dos alvarás, portarias, cartas régias e mostrarei então como a engrenagem do Estado funcionava; depois, verei como esse curioso Direito público se transformou, ao influxo de concepções liberais; e, como ele transportado para aqui com Dom João VI, se adaptou ao nosso meio, modificando-se aqui ainda, sob o influxo das idéias da Revolução.
Simplício, ouvindo-o falar assim dizia com os seus botões: "Quem teria ensinado isto a ele?"
Guaicuru, porém, continuava:
- Não será uma seca enumeração de datas e de transcrição de alvarás, portarias, etc. Será uma cousa inédita. Será coisa viva.
Por aí, parou e Campossolo com toda a gravidade disse:
- V ai ser uma obra de peso.
- Já tenho editor!
- Quem é? perguntou o Simplício.
- É o Jacinto. Você sabe que vou lá todo o dia, procurar livros a respeito.
- Sei; é a livraria dos advogados, disse Simplício sem querer sorrir.
- Quando pretende publicar a sua obra, doutor? perguntou Dona Sebastiana.
- Queria publicar antes do Natal. porque as promoções serão feitas antes do Natal, mas...
- Então há mesmo promoções antes do Natal, Felicianinho ?
O marido respondeu:
- Creio que sim. O gabinete já pediu as propostas e eu já dei as minhas ao diretor.
- Devias ter-me dito, ralhou-lhe a mulher.
- Essas coisas não se dizem às nossas mulheres; são segredos de Estado, sentenciou Campossolo.
O jantar foi. acabando triste, com essa história de promoções para o Natal.
Dona Sebastiana quis ainda animar a conversa, dirigindo-se ao marido:
- Não queria que me dissesses os nomes, mas pode acontecer que seja o promovido o doutor Fortunato ou... O "Seu" Simplício, e eu estaria prevenida para a uma "festinha".Foi pior. A tristeza tornou-se mais densa e quase calados tomaram café.Levantaram-se todos com o semblante anuviado, exceto a boa Mariazinha, que procurava dar corda à conversa. Na sala de visitas, Simplício ainda pôde olhar mais duas vezes furtivamente os olhos topazinos de Mariazinha, que tinha um sossegado sorriso a banhar-lhe a face toda; e se foi.
O colega Fortunato ficou, mas tudo estava tão morno e triste que, em breve, se foi também
Guaicuru.
No bonde, Simplício pensava unicamente em duas coisas: no Natal próximo e no "Direito"
de Guaicuru. Quando pensava nesta .' perguntava de si para si: "Quem lhe ensinou aquilo tudo?
Guaicuru é absolutamente ignorante" Quando pensava naquilo, implorava: "Ah! Se Nosso Senhor Jesus Cristo quisesse..."
Vieram afinal as promoções. Simplício foi promovido porque era muito mais antigo na classe que Guaicuru. O Ministro não atendera a pistolões nem a títulos de Goiás. Ninguém foi preterido; mas Guaicuru que tinha em gestação a obra de um outro, ficou furioso sem nada dizer.
Dona Sebastiana deu uma consoada à moda do Norte. Na hora da ceia, Guaicuru, como de
hábito, ia sentar-se ao lado de Mariazinha, quando Dona Sebastiana, com pince-nez e cabeça, tudo muito bem erguido, chamou-o:
- Sente-se aqui a meu lado, doutor, aí vai sentar-se o "Seu" Simplício.
Casaram-se dentro de um ano; e, até hoje, depois de um lustro de casados ainda teimam.
Ele diz:
- Foi Nosso Senhor Jesus Cristo que nos casou.
Ela obtempera:
- Foi a promoção.
Fosse uma coisa ou outra, ou ambas, o certo é que se casaram. É um fato. A obra de
Guaicuru, porém, é que até hoje não saiu...
Careta, 24-12-1921.
[* o último Natal (e dezembro) de Lima : morreria em 1º. nov 1922]
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Soneto de Natal
Machado de Assis

Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto... A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca.
A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"


terça-feira, 23 de novembro de 2010

Lima Barreto em dose dupla – e imprescindível



Publiquei neste ano Lima Barreto e a política : os "contos argelinos" e outros textos recuperados (agosto, PUC-Rio\ Loyola), em que resgato esse importante conjunto de contos até então parcamente editados (só numa edição de 1951),pouco conhecidos,estudados e divulgados, e mais 33 contos de mesmo teor político (mas sem a mesma linguagem alegórica e de simulacros dos "argelinos"), também meio-'enterrados': para ambos, foco uma análise até então inédita na obra de Lima,qual seja seu antipatrimonialismo ; e Lima Barreto versus Coelho Neto:um fla-flu literário (outubro, Difel), que trata de futebol, sim, mas muito mais de literatura, e expões,analiticamente, o repúdio de Lima à República e às formas de pseudo,falsa modernização pregada por ela, à qual se renderam e subjugaram,com perda de substância, os literatos e intelectuais de então, objetos das polêmicas e repúdio de Lima.
Lima Barreto e a política: os "contos argelinos" e outros textos recuperados resgata não apenas os importantes 13 contos a que Lima deu essa rubrica("argelinos" ( no livro interpreto e explico,supostamente- como legítimo exercício intelectual\histórico - o porquê da titulagem ) mas 33 outros contos escritos na mesma época sob os mesmos teor,timbre e foco político, mas sem a linguagem, forma e estilo alegórico e de simulacro dos "argelinos". Insisto nesse ponto -- e isso meu estudo diferencia-se e contrapõe-se ao brilhante trabalho de Lilian Moritz [Contos completos de Lima Barreto; Companhia das Letras,2010], que coloca os 46 sob a mesma rubrica de "argelinos" ,quando não o são (Lilian inclui no rol um 47o. conto, "Na avenida", que é comprovadamente crônica e não conto : como de resto 25 dos 45 contos inéditos que Lilian apresenta,num incomparável e esplêndido,admirável, trabalho de resgate e recolha, não são contos e sim crônicas).
Outro elemento, no tocante aos "argelinos" e aos 33 contos políticos que me contrapõe a Lilian está nas notas de contextualização e breves introduções que aponho a cada um deles, a meu juízo imprescindíveis para entendimento(e admiração) do leitor de hoje.Meu livro, vale enfatizar, é temático, não de foco e escala abrangente, per se já um viés de diferenciação. E além de tudo mais (ou por essa conotação especificamente temática) formulo uma interpretação, ou análise, nunca realizada em estudo da obra de Lima : seu antipatrimonialismo, no que se opunha essencialmente a toda forma de poder (do qual a República era a expressão mais bem acabada -- e seu repúdio ao futebol, p.ex. era antes e acima de tudo manifestação de sua repulsa à República.

conscientemente marginal, periférico, autoexcluído

Lima era assumida e consciente um 'marginal', um periférico -- sem necessariamente viver na periferia urbana geograficamente falando. e nisso chego a um tópico que submeti á discussão e reflexão no recente simpósio em que atuei, na Fac.Letras da UFMG, promovido pelo Neia-Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Alteridade.: o tema era exatamente esse "alteridade e subalternidade", itens sobre os quais discutiu-se, discorreu-se,refletiu-se em diversos painéis, que intento colocar sempre sob estudos, qual seja a alteridade, ou a condição de periférico, pode advir essencialmente de uma postura ideológica-filosófica, de uma forma de escrita,linguagem,temática, de um estilo narrativo, etc, não necessariamente de uma condição ou estado social, habitacional, etc etc.
Nesse simpósio a que me referi, alguns sustentam que a (importante -- estejamos todos atentos a isso) produção cultural da periferia,ou das 'quebradas', seja dirigida e consumida internamente, no próprio âmbito geográfico e social da comunidade; ao passo que outros -- entre os quais me coloco -- sustentam que deva sair 'para o mundo', que a chamada 'voz da periferia' se faça ouvir fora dos limites e círculos geográficos,sociais e culturais da comunidade.
Não tenho dúvidas de que isso propicia estimulantes estudos e reflexões.

sábado, 7 de agosto de 2010

Lima Barreto e a política


estamos em temporada eleitoral - portanto, vale reportar a um dos mais políticos dos escritores brasileiros

Em essência, Lima Barreto sempre tratou mais de política do que qualquer outro tema. Ninguém como ele, em seu tempo, escreveu tanto sobre o tema e, por extensão, sobre questões sociais. Sua ‘literatura militante’, assim por ele definida, determina o caráter marginal de sua obra: sua visão crítica da sociedade o fez enveredar concreta e irreversivelmente no caminho da luta social; nos jornais e revistas investiu contra todos os signos do poder, nos textos ficcionais denunciou as profundas injustiças da sociedade brasileira.
Toda a obra barretiana desenvolve-se a partir e em torno de um tema nuclear: o poder e seus efeitos discricionários — o poder visto e descrito por ele como “o variado conjunto de elementos, vetores e procedimentos encadeados no interior da sociedade, compondo grandes e pequenas cadeias, visíveis e invisíveis, tendentes a restringir e constringir o pensamento dos homens, coibindo-lhes as possibilidades de afirmação, pessoal, cultural, profissional, social, e a justa inserção social”. Tinha a visão verticalizada, analisando desde as estruturas políticas como o governo e as ideologias, e as instituições culturais como a imprensa e a ciência, até os modelos determinantes do comportamento coletivo e do relacionamento cotidiano. Lima Barreto era, acima de tudo, um anti-patrimonialista. Crítico implacável da pretensa modernidade que se queria implementar com a República, avesso a todas as formas de assimilação de valores estrangeiros (no bojo ,p. ex. de sua resistência ao futebol, ao cinema e à cultura importada ), defensor ,por vezes intransigente, de uma brasilidade que sustentava devia permear a “autêntica língua nacional”, foi no entanto opositor ativo do nacionalismo ufanista surgido no final do séc. XIX e início do XX
[1],a começar por questionar as imagens errôneas que o Brasil fazia de si mesmo, levando ad absurdum os clichês e mitos nacionalistas e os desmascarando um a um.(no romance Triste fim de Policarpo Quaresma parodia implicitamente o opúsculo patrioteiro de Afonso Celso, filho de seu protetor, intitulado Por que me ufano do meu país (1901), livro muito popular no começo do século XX, que deu origem ao termo ufanismo e foi traduzido para diversas línguas na época, inclusive o alemão. Lima Barreto inclusive alertava para o que denominava “um dos mitos mais perigosos,o do patriotismo : no fundo, os patriotas grandiloqüentes de plantão não passam de traidores da pátria, pois a usam para a sua própria autopromoção e enriquecimento (...), a sociedade de classes e o Estado a instrumentalizarem o patriotismo e o nacionalismo em favor do interesse das elites.”.. Na contrapartida, procurou esboçar um patriotismo social, com consciência histórica e respeito pela cidadania, ancorado na cultura própria, resistente ao cosmopolitismo e de reconhecimento da mestiçagem – étnica,social e cultural --no Brasil.
Para ele, a nova sociedade ,caracterizada pelo binômio cosmopolitismo, inspirador das ações da elite do país , e bovarismo
[2], “atitude mistificatória de o homem se conceber outro que não é, entre o que é e o que acredita ser”, era um sistema que premiava o egoísmo, o banal, a decadência dos costumes, o preconceito, lastreada nos valores máximos da elite – a fruição do conforto material, os privilégios, a superioridade, gerando discriminação e sectarismo. “A nossa República se transformou no domínio de um feroz sindicato de argentários cúpidos, com os quais só se pode lutar com armas na mão. Deles saem todas as autoridades, deles são os grandes jornais, deles saem as graças e os privilégios; e sobre a Nação eles teceram uma rede de malhas estreitas, por onde não passa senão aquilo que lhes convém” [3]
Exemplares insofismáveis da veemente oposição de Lima Barreto à República, da ferrenha crítica aos governos republicanos ,notoriamente o ‘florianismo’ (referente a Floriano Peixoto) e o ‘hermismo’ ( a Hermes da Fonseca)[4] -- já objetos de críticas exacerbadas em inúmeros artigos e crônicas e também na novela Numa e a ninfa e no memorialístico Diário íntimo -- expressão do intransigente e obstinado repúdio para as coisas da política, aos políticos, aos conchavos partidários,às oligarquias , os “contos argelinos” têm em seu cerne paródico a ascensão dos militares, com sua crescente participação na política, e o militarismo — importando notar que, em outro viès de leitura e interpretação, trazem em si a emblematização ficcional do patrimonialismo, contra o qual Lima Barreto se colocava na própria essência de sua ideologia.
A criação, confecção e publicação dos “contos argelinos” deu-se em período histórico conturbado, durante os sucessivos governos de Hermes da Fonseca, Venceslau Brás e Epitácio Pessoa, em sete dos mais cruciais anos de plena sedimentação do regime republicano — de resto um processo de altíssima ebulição política, convulsionante e transformadora.
Por essa época , apenas Lima Barreto (Euclides da Cunha morrera em 1909) mantinha , entre os escritores, uma postura participativa – de natureza crítica -- nas coisas da política , uma vez que os demais literatos se afastaram do envolvimento e da militância a que se entregaram ainda durante as campanhas abolicionista e republicana, nas últimas décadas do século XIX e início do século XX : frustrados a expectativa e o entusiasmo iniciais despertados pela República , os intelectuais desistiram da participação política ativa, militante, que muitos tiveram no advento do novo regime e passaram a se concentrar na literatura e em parte no jornalismo ‘croniquesco’, dedicando-se a produzir uma literatura de linguagem empolada, o ‘clássico’ calcado em expressões cediças e de figuras de efeito, cheia de arabescos estilísticos — uma literatura impregnada de vocábulos garimpados do virtuosismo lingüístico e verborrágico,expressão da frivolidade dominante. Uma literatura como “o sorriso da sociedade” de que falava Afrânio Peixoto e contra a qual Lima Barreto lutava com denodo.
A República, os intelectuais , o jornalismo e a literatura militante de Lima Barreto

Embora não tenha produzido correntes ideológicas próprias ou novas concepções estéticas, a geração de intelectuais solidamente arraigada nas teorias cientificistas de 1870 e no espírito progressista da época parecia estar com a República, apoiada pela maçonaria, pelo positivismo e pelas correntes que se julgavam “desassombradas de preconceitos”: as idéias circulavam então mais livremente, num ambiente que Evaristo de Moraes [Da Monarquia para a República ; s.ed., Rio de Janeiro, 1936 ] qualificou de “porre ideológico”, um verdadeiro mosaico no qual era predominante o liberalismo - manifestando-se especialmente entre os republicanos ‘históricos’ como Benjamin Constant, José do Patrocínio, Silva Jardim, Lopes Trovão, Alberto Sales, Joaquim Serra – mas que abrigava alguma voga de anarquismo em Elisio de Carvalho (até escrever o Five o’clock), Curvelo de Mendonça,Fabio Luz, Afonso Schmidt, simpatias explícitas ao socialismo em Martins Fontes, Olavo Bilac, e até anti-racismo declarado em Alberto Torres e Manuel Bonfim.
Sob os princípios genéricos do liberalismo, o grupo intelectual definira a tarefa que lhes cabia: contribuir e propugnar por uma ampla, profunda ação conjunta para construir a nação —no campo da produção intelectual intensificaram estudos da realidade brasileira (as obras de Euclides da Cunha, Alberto Torres, Manuel Bonfim,Oliveira Vianna são documentos exemplares) e se empenharam no ‘criar um saber próprio sobre o Brasil’( enfatizava José Veríssimo em “Um estudioso pernambucano”, artigo na revista Kosmos,n.1,Rio de Janeiro,1907) — e remodelar e fortalecer o Estado (o que obviamente punha em confrontação a ambigüidade de sua ideologia baseada no liberalismo....).
Já no dia 15 de novembro de 1889 os intelectuais registraram sua total adesão : numeroso grupo de republicanos,junto com gente da rua, tendo à frente José do Patrocínio,Aníbal Falcão, João Clapp,Campos da Paz, Olavo Bilac, Luis Murat e Pardal Mallet -- estes três pela primeira vez movidos à ação política concreta-- dirigiu-se à sede da Câmara, aos gritos de viva à República, e redigiram moção de apoio aos chefes da insurreição militar. O entusiasmo adesista dos intelectuais era generalizado,a ponto de emitirem outro manifesto, dirigido ao Governo Provisório instalado a 16 de novembro, assinado por alguns homens de letras em 22 de novembro.
No clamor pela ampliação da atuação do Estado sobre a sociedade aliavam-se a homens públicos, políticos, jornalistas, até mesmo cafeicultores e industriais,e a esse grupo juntar-se-ia os grupos militares defensores e sequiosos de maior participação na política— o que mais tarde não causaria surpresas quando do progressivo e acentuado fortalecimento dos governos republicanos a partir de Floriano Peixoto. As reformas que preconizavam, no entanto, perderam-se no processo político republicano. Na consolidação do novo regime ,que se deu por meio de um processo caótico e dramático, malograram-se seus esforços cientificistas,reformadores, inovadores na criação daquele ‘saber sobre o Brasil’. Cedo, muito cedo, já nos primeiros anos do século XX desiludiam-se : “Está tudo mudado: Abolição, República... Como isso mudou ! Então, de uns tempos para cá parece que essa gente está doida”, vaticina Isaias Caminha , sob a pena de Lima Barreto. José Veríssimo, no artigo“Vida literária” (revista Kosmos, n. 7,1904), descreve: “Todos se presumiam e diziam republicanos,na crença ingênua de que a República, para eles palavra mágica que bastava à solução de problemas de cuja dificuldade e complexidade não desconfiavam sequer, não fosse na prática perfeitamente compatível com todos os males da organização social, cuja injustiça os revoltava”. Ainda em outubro de 1890, antes do primeiro aniversário do15 de novembro, desencantava-se Silva Jardim, lamentando em carta a Rangel Pestana: “Comunico-lhe que parto para a Europa, a demorar-me o tempo preciso a que esta País atravesse o período revolucionário de ditadura tirânica e de anarquia...” . “Esta não é a República de meus sonhos”. lamentou-se Lopes Trovão, um dos próceres do movimento republicano. “Foi para isso então que fizeram a República ?”, protestou Farias Brito.
No campo político,os intelectuais até que mantiveram-se passivos diante da “ditadura tirânica” e aceitaram as coligações de Deodoro da Fonseca com as forças mais conservadoras do Brasil agrário, mas as esperanças esfacelaram-se diante da índole e prática repressoras do governo Floriano Peixoto , quando e alguns dos antigos entusiastas da República tiveram de fugir do Rio de Janeiro para evitar a prisão, como Olavo Bilac e Guimarães Passos.
Passado o momento inicial de esperança, desfeito o caminho almejado da democratização do País prometida em comícios, conferências públicas ,na imprensa radical, consolidada a vitória da ideologia reforçadora do poder oligárquico, derrotados ,desapontaram-se as elites, desapontaram-se os trabalhadores e o povo, desapontaram-se os intelectuais , que desistiram da política militante e se concentraram na literatura,aceitando postos ,mesmo decorativos, na burocracia especialmente no Itamaraty de Rio Branco, que atraíra em torno de si -- eficiente Rui Barbosa nesse trabalho de ‘cooptação’ -- o grupo de intelectuais, representantes da intelligentsia do novo regime , constituindo o que à época se auto-denominaram “República dos Conselheiros”.
Difícil de manter uma convivência pacífica entre a República política e a ‘Republica das letras’, agravado pela crescente insatisfação popular com o novo regime, exposta em agitações de rua,episódios violentos, revoltas e movimentos de protesto – e mais ainda com os novos costumes e práticas de desenfreada especulação financeira, a busca de enriquecimento a qualquer custo,o advento de um capitalismo predatório levando ao Encilhamento, a escandalizar Taunay que via “uma degradação da alma nacional”[ Visconde de Taunay, O Encilhamento ] e decepcionar republicanos ardorosos como Raul Pompéia ( “A república discute-se consubstanciada no Banco da República” ).A par do afastamento repressor promovido pelo poder, viram-se compelidos a submeter sua produção literária ao “valor do mercado” — (...) neste século de danação social, em que o Dinheiro logrou a tiara de pontífice ubíquo, para reinar discricionariamente sobre todas as coisas..”, registrava Augusto dos Anjos em palestra pública.
Mas paradoxalmente foi o processo de arrivismo bursátil e de especulação mercantil -- gerando incremento de vultosos recursos , provocando a modernização da cidade, urdindo o que se denominou Regeneração, construindo a imagem de “uma sociedade ilustre e elevada” -- que propiciou aos intelectuais malogrados uma espécie de atavio : passaram a ser vistos pela sociedade como ‘símbolos de ilustração’, ‘expoentes da cultura’, propiciando, entre outros aspectos, o desenvolvimento do ‘novo jornalismo’, ao qual os literatos se entregaram de corpo e alma . A adesão maciça dos escritores ao jornalismo, exercendo inevitavelmente efeitos negativos sobre a criação artística—falou-se em “vazio de idéias”—obrigou-os a uma redefinição de suas posições intelectuais e uma clivagem em seu universo social. Deflagrava-se com todas as letras e tintas a belle époque cultural, com o conseqüente processo de banalização e neutralização da força cultural da literatura, o intelectual descaracterizado e ‘dissolvido’ em meio a sociedade, as facilidades da nova vida social tendentes a extinguir o engajamento dos intelectuais que haviam feito a República. O novo espírito “agitado e trêfego” que tomou conta da cidade produziu “o recolhimento dos autores em estéticas e poéticas evasivas”, no entender de José Veríssimo, os intelectuais irreversivelmente assimilados pela nova sociedade construída pela República abrindo espaços para a mercantilização e banalização da própria literatura – vista agora como “o sorriso da sociedade” de que falava Afrânio Peixoto ... [“A literatura é o sorriso da sociedade. Quando ela é feliz, a sociedade, o espírito se lhe compraz nas artes e, na arte literária, com ficção e com poesias, as mais graciosas expressões da imaginação(...)”,in. Panorama da literatura brasileira ; Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1940].
Entrou-se de cheio no espírito mundano da belle époque, atingindo seu auge na primeira década do século, cuja literatura típica ,porém, era estéril em termos nacionais, ainda que seu modelo cosmopolita europeu se coadunasse com a própria fachada da época: era uma literatura articulada com o modo de vida das elites urbanas europeizadas,fomentador do consumo, do excesso,da sensualidade,do aristocratismo; de extrema superficialidade e caráter preciosístico , uma coligação de alta sociedade e alta cultura.(nesse aspecto,Lima Barreto tinha a chave para entender e interpretar o Rio de 1900 : o bovarismo , que apontava para as fantasias centrais que compunham o significado dessa época).
O certo é que a decepção com a República e o ‘espírito’ inerente ao novo século, “o século da modernização e do progresso”, trouxeram novas formas e modos de o escritor se relacionar com a literatura, sob um processo algo ‘compulsório’ de aburguesamento e ‘mundanismo’, acarretando, por uma razão ou outra , a necessidade de adesão quase maciça dos literatos ao jornalismo — que se constituiu no fenômeno cultural mais marcante dos primeiros tempos do século XX. O significativo desenvolvimento dos meios técnicos da imprensa, iniciado na verdade em meados do século XIX, permitiu o crescimento e melhoria qualitativa dos jornais e o nascimento de muitas revistas ilustradas , ambos incluindo matérias literárias.
Por essa época, tanto os jornais como as revistas buscaram mais intensa e concretamente atingir a classe média urbana que então ia se formando e consolidando com o advento da República. Jornais e revistas, além do compromisso de informar e divertir, estavam engajadas num movimento de ‘democratização’ cultural: periódicos como Gazeta de Notícias, Diário do Rio de Janeiro,O Paiz, Diário Mercantil ,Correio da Manhã, Jornal do Commercio,Jornal do Brasil, Rio-Jornal, A.B.C. e as revistas O Malho , Revista da Semana, Kosmos, A Renascença , FonFon! ,Revista Contemporânea (essas duas caracterizadas como “simbolistas”), Careta , Ilustração Brasileira, A Cigarra, Revista do Brasil, Dom Quixote, Paratodos, O Cruzeiro, incluíam muita matéria cultural, como reportagens sobre exposições de artes plásticas, crítica literária, música, contos, crônicas, poesia, teatro e cinema . Quase todas as revistas não conseguiram sobreviver por muito tempo e ter vida longa — exceção apenas a FonFon! e a Careta, que chegaram, não ininterruptamente, até à década de 1950.A maioria dos jornais e revistas (tanto do Rio de Janeiro quanto de São Paulo) acolhia , e pagava , colaboração literária , o que propiciou a escritores e literatos terem publicados seus trabalhos e ter uma fonte de recursos — para muitos, a única — e um chamado “second métier” condigno . Vale registrar que a imprensa propiciou a mudança para a metrópole de muitos intelectuais que não logravam realizar-se literariamente em suas cidades e regiões de origem.
A rigor, quer no âmbito do jornalismo quer mormente da literatura, os escritores, sob pena de caírem em ostracismo cultural e profissional e financeiro tiveram de em maior ou menor grau se submeter à preferência ou gosto dos leitores da época : a necessidade de se expressaram no mesmo diapasão da cidade contagiada pelos anseios de modernização e marcada pela ânsia do enriquecimento rápido fizeram-no adotar estilo, linguagem , forma e conteúdo mais superficiais e mesmo descartáveis, “adequados ao gosto do consumidor pequeno-burguês formado pela República”.
No lado oposto, além da ferrenha oposição à escrita aristocrática predominante , destoando e substancialmente contrário aos estilos vigentes, estava Lima Barreto – por essa época já respeitado como articulista e cronista e reconhecido como excepcional escritor mercê dos elogiados romances publicados Recordações do escrivão Isaias Caminha(1909) e Triste fim de Policarpo Quaresma (1915)—que rejeitava terminantemente fazer de tanto de seu trabalho jornalístico como de sua obra literária, fosse ficcional ou não-ficcional, “instrumento de propaganda do sonho republicano de falso progresso e falsa civilização”. Sustentavaele que fazia “uma literatura militante, de obras que se ocupam com o debate das questões da época (...), por oposição às letras que, limitando-se às preocupações da forma, dos casos sentimentais e amorosos e da idealização da natureza” [Impressões de leitura ; ed. Mérito ,Rio de Janeiro, 1953].
Lima Barreto impôs — com sua escrita simples, direta e objetiva , que feria o convencionalismo literário da época, impregnado de falsas concepções estéticas, floreios , etc — os prenúncios do Modernismo logo depois rompante na cultura brasileira[curioso notar que Lima Barreto morreu no mesmo ano de 1922, em que eclodiu o movimento], cujos primeiros elementos e formas apareceram justamente pela linguagem típica da escrita barretiana. Não à toa despertou interesse e respeito por parte de Mario de Andrade, do alto de sua ‘autoridade’ de contista e teórico da construção ficcional, e levou p. ex. Sergio Milliet a escrever “(...) Lembro-me da grande admiração que tinha por Lima Barreto o grupo paulista de 22. Alguns entre nós, como Alcântara Machado, andavam obcecados .O que mais nos espantava então era o estilo direto, a precisão descritiva da frase, a atitude antiliterária, a limpeza de sua prosa, objetivos que os modernistas também visavam. Mas admirávamos por outro lado sua irreverência fria, a quase crueldade científica com que analisava uma personagem, a ironia mordaz, a agudeza que revelava na marcação dos caracteres”[artigo “Noticiário’, in O Estado de São Paulo, São Paulo, 11.11.1948] : nas páginas da então incipiente revista Klaxon (1921), os modernistas paulistas se propunham também a ‘descoelhonetizar’[ref. a Coelho Neto,então epígono da escrita rebuscada e cheia de floreios retóricos] a literatura brasileira, rompendo com os cânones acadêmicos., objetivos bastante semelhantes da revista Floreal, que Lima criara em 1907 e só durou quatro números.
Assim, na contrapartida ao aristocratismo da escrita de então , aos nefelibatas da linguagem, tinha-se em Lima Barreto um registro da língua ‘brasileira’ do início do século XX e um ritmo genuinamente nacional que prenunciava a linguagem modernista. Segundo o historiador e ensaísta Nicolau Sevcenko [Literatura como missão:tensões sociais e criação cultural na Primeira República;(ed. Brasiliense, São Paulo, 1983], “chama muito à atenção quando se lê a obra do Lima Barreto, a atualidade dessa obra não só em termos de linguagem — uma linguagem bastante acessível, bastante próxima até da oralidade — pela qual foi muito criticado pelos seus pares e intelectuais da época. Mas não só por essa linguagem mas também pelos temas de que ele trata e pelo modo como os trata Pode-se ir além porque muitos problemas de Brasil que ele pensa naquela época, que ele critica, e que ele, enfim, desenvolve como reflexão, permanecem absolutamente atuais” .
Contrariamente à maioria de seus contemporâneos, praticantes da escrita floreada e vazia, aristocrática e fútil, verdadeiros instrumentos literários do “sorriso da sociedade” apregoado por Afrânio Peixoto, Lima Barreto conferia à sua obra ficcional o sentido militante de uma “missão social, de contribuir para a felicidade de um povo ,de uma nação, da humanidade” Em sua concepção, a literatura tinha de ser “militante”, com objetivo concreto e definido, como sentencia em entrevista a A Época,18.02.1916 : “(...)não desejamos mais uma literatura contemplativa, cheia de ênfase e arrebiques ,falsa e sem finalidade, o que raramente ela foi; não é mais uma literatura plástica que queremos, a encontrar beleza em deuses para sempre mortos, manequins atualmente, pois a alma que os animava já se evolou com a morte dos que os adoravam; digamos não a uma literatura puramente contemplativa, estilizante sem cogitações outras que não as da arte poética, consagrada no círculo dos grandes burgueses embotados pelo dinheiro, de amplo emprego por pretensos intelectuais,bacharéis e políticos” (...) “a obra de arte tem por fim dizer o que os simples fatos não dizem. Este é meu escopo. Vim para a literatura com todo o desinteresse e toda coragem. As letras são o fim da minha vida. Eu não peço delas senão aquilo que elas me podem dar: glória!”
Dono de obra ficcional e não-ficcional com vigoroso fulcro ideológico , Lima Barreto buscava na politização da literatura um sentido sobretudo ético.Na única conferência literária que faria, mas não o fez — “O destino da Literatura” [publicada na Revista Souza Cruz,Rio de Janeiro, 1921 , em cujo número também apareceu trecho do romance O cemitério dos vivos ], em Rio Preto, São Paulo, em fevereiro de 1921 — foi explícito :“A Beleza não está na forma, no encanto plástico, na proporção e harmonia das partes, como querem os helenizantes de última hora . A importância da obra literária que se quer bela sem desprezar os atributos externos de perfeição de forma, de estilo, deve residir na exteriorização de um certo e determinado pensamento de interesse humano(...) E o destino da literatura é tornar sensível, assimilável, vulgar esse grande ideal de fraternidade e de justiça entre os homens para que ela cumpra ainda uma vez sua missão quase divina. Mais do que qualquer outra atividade espiritual da nossa espécie, a Arte, especialmente a Literatura, a que me dediquei e com quem me casei; mais do que ela, nenhum outro qualquer meio de comunicação entre os homens, em virtude mesmo do seu poder de contágio, teve, tem e terá um grande destino em nossa triste humanidade.”
Marginalizado por suas origens e condição social, execrado por ser ‘passadista e contrário à modernização’, Lima Barreto enfrentou as marcas de seu tempo e da sociedade brasileira que lhe foi contemporânea . Seu projeto era um projeto para uma vida inteira de militância literária contra o preconceito, mas também “contra os falsos intelectuais, contra um academismo espelhado no modelo europeu, contra uma literatura só de deleite, como ornamento”. Para ele, a literatura era uma verdadeira missão. A pretensa beleza estilística, os atributos externos formais de perfeição, de forma, de estilo, de vocabulário, não poderiam prescindir da “exteriorização de um certo e determinado pensamento de interesse humano, que fale do problema angustioso do nosso destino em face do Infinito e do Mistério que nos cerca, e aluda às questões de nossa conduta na vida” [Bagatelas ; Empresa de Romances Populares, Rio de Janeiro,1923].
Esse ideal, entendia ser impossível cumprir sob a égide acadêmica , como expõe taxativamente naquela entrevista à A Época, em fevereiro de 1916 : “Vim para a literatura com todo o interesse e com toda coragem... Não quero ser deputado, não quero ser senador, não quero ser mais nada senão literato. Não peço às letras conquistas fáceis, não lhes peço glórias, peço-lhes coisa sólida e duradoura... Eu abandonei tudo por elas; e a minha esperança é que elas vão me dar muita coisa...”
Tanto nos romances e contos como nas crônicas e artigos, Lima Barreto exerceu sempre uma crítica à cultura da modernidade contra a opressão social e a hipocrisia política — tal como se revelaram na implementação da República . A opção por uma literatura militante determinou o caráter marginal (e ‘revolucionário’, para muitos estudiosos) de sua obra : sua visão crítica da sociedade, da política e da cultura, renderam-lhe frutos amargos — desprezo do público, penúria econômica, alcoolismo e doença, internação em manicômio — mas nada o fez submeter-se aos ditames da moda e dos valores culturais da República. A “esperança” mencionada por Lima Barreto na entrevista de 1916 alimentava-se na verdade da recusa impassível em transigir com o que demandava popularidade — o aburguesamento do escritor, por via da adesão aos temas da moda, que fortaleciam os interesses políticos, econômicos, sociais e culturais da República. Nada porém o fez submeter-se a esses valores.
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[1] vivia-se uma época – regida pelo refrão "amor febril pelo Brasil”,presente em muitos hinos,durante a Campanha Nacionalista dos anos da I Guerra Mundial, quando intelectuais como Olavo Bilac,autor da letra do “Hino à Bandeira”, liderou a campanha pelo serviço militar obrigatório -- impregnada do pensamento positivista, em que patriotismo e nacionalismo se integravam,com o elevado tom de xenofobia que costuma acompanhá-los e exarcebados por um sentimento anti-português como reação dos tempos republicanos a tudo que vinha do Império. Exacerbação patrioteira transposta num ‘nacionalismo ornamental’ que inflamou,p. ex., Elísio de Carvalho no livro Esplendor e decadência da sociedade brasileira(1910), expondo uma visão aristocrática, nativista e desenvolvendo um nacionalismo triunfalista, que via na grandeza do país o fruto dos esforços das elites arianas e fidalgas ; essência temática que inspiraria também Oliveira Viana em 1920, com Populações meridionais do Brasil, inclusive fomentando um nacionalismo autoritário e conservador, caldo de cultura do militarismo , que iria predominar nas décadas de 1920 e 1930 – embora em contraponto os anos de 1920 trouxessem , no movimento modernista eclodido na Semana de Arte Moderna, idéias,conceitos e atitudes mais fecundas e construtivas no campo da literatura, das artes e do pensamento [Candido,2004,pp.215-17).
[2] bovarismo, conceito cunhado pelo filósofo francês Jules de Gaultier em sua obra Le Bovarysme, em 1892, advindo de Gustave Flaubert e sua Madame Bovary, seja em relação à figura do artista ‘sonhador irresponsável’ seja a um comportamento artificial simbolizando um falseamento da vida,um desejo irreal de fuga – o abismo que se abre entre as duas escalas, a da realidade e a do imaginário, conferindo-lhe uma dimensão ao mesmo tempo trágica e irônica ; o termo é especialmente empregado também com o sentido da alienação intelectual que precede a construção de uma identidade cultural própria. Lima Barreto -- para quem o bovarismo era uma atitude mistificatória típica da nova elite, extremamente prejudicial para o país, “o poder partilhado no homem de se conceber outro que não é, o afastamento entre o indivíduo real e o imaginário,entre o que é e o que acredita ser” -- aplicou esse conceito tanto literariamente – no romance Triste fim de Policarpo Quaresma e nos contos “A biblioteca”, “Lívia” e “Na janela” aparece como a própria essência dos textos – quanto socialmente : segundo ele, a República estava toda imersa em atitudes bovaristas e ,pior, os próprios intelectuais, teoricamente dotados de maior capacidade e lucidez críticas, mergulharam desde o início numa militância ufanista,destemperada, de otimismo ingênuo ; e esse ufanismo bovarista era uma forma terrível de se alienarem dos graves problemas do país.
[3] “Sobre a carestia”, in O Debate, 15.09.1917.
[4] em dezembro de 1909,Lima Barreto editara com Antônio Noronha Santos (o maior de seus amigos) um panfleto contra a candidatura Hermes da Fonseca à presidência da República, intitulado “O Papão – semanário dos bastidores da política,das artes e... das candidaturas”.

.[excerto de Lima Barreto e a política: os "contos argelinos" e outros textos recuperados,2010]

quarta-feira, 14 de julho de 2010

CENÁCULOS DE ENSAIO,FICÇÃO E DESEJO


-- Fleming. Paula Fleming.
-- Que nome bonito, minha linda ! nome e pessoa, aliás...em que posso serví-la,moça ?
Pronto, sabia, lá vem esse idiota, mais um. Claro é homem e acha que esse é seu papel, com essa baboseira meio-troglodita.
-- Deixe de gracinha, e faça sua função com respeito e seriedade. Preciso deste documento, que tudo indica, só se encontra aqui nesta repartição, já passei por praticamente todas as outras. Pode ver para mim? é urgente.
--É a tal coisa, todos pedem urgência,repetem que é importante,tudo igual. Urgente e importante é resolverem aqui nossa situação, há 4 anos não temos aumento, salário de fome ,condições de trabalho precárias, e tendo de atender todo mundo bem. Coloque-se no meu lugar...Preencha o formulário de requisição, por favor.
Falava,falava, mas não desviava os olhos docorpo de Paula, bem formado, as pernas, ah!que pernas bem torneadas, e de quebra que rosto... corpo de Paula , bem formado, as pernas, e que pernas ! bem torneadas, e de quebra que rosto...
Sim, Paula era uma bela mulher, atraente e sedutora, ainda mais com aqueles olhos verdes e os negros cabelos encaracolados. A Paula poderia se aplicar - ela sempre se lembrava do comentário do amigo Sergio Augusto ( preciso voltar a visitá-lo,lembrou-se) com relação a Natassa Kinski:"com aquele corpo, não precisava daquele rosto, e com aquele rosto pra que tanto talento?".
Bela, sensual, e mais: talentosa,competente, obstinada estudiosa, eficientíssima em tudo que fazia – e não se diga que contrariasse o estereotipado perfil de uma intelectual, uma ‘nerd’(muito por ser afinal uma ‘cdf’, talvez por causa dos óculos de alto grau que por vezes tinha de usar); escritora, pesquisadora,verdadeira arqueóloga literária sempre à busca de raridades bibliográficas. .
Anos de convivência com Mauro, até mais –digamos- íntima, a fizera garimpeira de preciosidades textuais. Como agora, sob os olhares voluptosos daquele funcionário público, quase que despindo-a,sem disfarçar de alto a baixo. É certo que ela gostava – qual mulher não gosta de sentir-se desejada? – e fomentava isso, com sua sensual picardia e um jeitinho todo especial de seduzir para obter o que queria.
-- Mas no caso esse documento tem importância que o senhor nem imagina e ter acesso a ele é urgente. O senhor, que tanto me elogia, e acho que já me admira, não vai querer que eu saia daqui de mãos abanando e decepcionada com o senhor,que é tão simpático e dedicado a fazer o melhor para quem precisa, não é mesmo?
Embevecido, era a sensação, o estado daquele voraz devorador ocular, e de outros sentidos fisiológicos. (que mulher, meu Deus! gataça,e cheia de manha. que faço ?)
Esse cara todo embasbacado podia ser bom para facilitar e agilizar a recolha do documento ,mas não sei:de repente,excitado, vai entrar numa de fazer uma troca,o documento pelo meu,digamos,afeto, já conheço o lance. (bem feito,culpa sua, com essa mania de charme ,não se emenda mesmo, né Paula? não basta valer-se dos meios protocolares,normais? não, tem que fazer joguinho, seduzir,estimular tentações- não sabe como são os homens, oh idiota?. vê se contorna e resolve isso, logo logo).
Absorta nos pensamentos, mas sem perder de vista os olhares e gestos do homem, Paula percebeu que ele acionava o computador e acessava alguma coisa, um arquivo talvez, um link, uma entrada. Fingiu-se distraída, consultou o celular – ah!um SMS, é de Vera, grande amiga, ainda ontem à noite jantamos juntas e falei dessa minha incursão aqui, e agora ela me envia _ “Vamos ajudar a procurar o documento. Deve ter coisas muito importantes nele”. Querida,.só você mesmo, sim tem coisas muuuuito importantes , será uma revelação, ou confirmação bombástica em torno do nosso Machado na política,’quem viver verá’...
Desde que o burocrata em estado de transe sexual e mental aí na minha frente, atrás desse balcão, consultando essa máquina resolva ser o atendente cioso de seus deveres e desista de ser o donjuan dos cenáculos documentais.Claro que é lugar comum, imagem recorrente, nada de novo nesse enredo – até Kafka, ora ora o aludiu.
-- Estou consultando aqui, mas não está fácil localizar. Talvez você tenha de voltar outro dia, preciso de tempo para conseguir isso, vou me empenhar ao máximo, principalmente pelo prazer de servi-la, minha... (cacete, isso é hora de chegar gente aqui, logo agora?). Pois não, um momentinho, por favor.
Esse rapaz que acaba de chegar é bom alvitre, talvez faça o cara aí se tocar. Aliás, rapaz bem simpático, bonito mesmo, corpo meio sarado, e até que tem um ar inteligente. Entabulo conversa? quem sabe...?(você não tem jeito mesmo, Messalina, Mata-Hari de meia-tigela).
-- Bem, como ia dizendo,você me dê seu telefone que aviso quando tiver o documento.
Pronto, é o que ele queria. E você também, sua burra, quando vai aprender com essa mania de sedução?(fácil e cômodo dizer que é ‘técnica,estratégia de pesquisa’,que aprendi com o Mauro,também um metido a sedutor, a jogar charme,a fazer gracinhas e gracejos no caso com as mulheres,claro. É essa a sina do pesquisador,como a do jornalista,onde comecei : utilizar esses expedientes,não de todo reprováveis, para ‘dobrar’ as fontes?
Falando no bruxo, ei-lo que me procura ao celular – “mensagem urgente: Mauro” -- mas não atendo: sei que está ansioso, doido pra saber se consegui o documento, compete comigo,bem sei - e eu com ele, claro. Primeiro resolver de vez a situação aqui com esse burocrata – e, óbvio, saber quem é e qual é desse moço recém-chegado... : professor, pesquisador, que tipo de profissional,quem é ele?...
-- Não, não posso esperar,tem de ser hoje e só hoje. Agora ou nunca, tenho de trabalhar nesse documento e enviar logo logo relatório para Paris, a uma universidade. Se não for hoje, desisto e perco o trabalho, inclusive a possibilidade de ter de vir aqui à cata de outro documento decorrente deste, conforme o parecer da universidade de lá(é a de Rennes,do Massa: nem pensar em detalhar pro brucutu aí).
Espero tê-lo convencido, o conquistador de araque vai se tocar que nunca mais verá, se me der o documento agora haverá uma segunda chance... E enquanto isso, exercito um pouco de charme pra cima do cara aí parado estático, ou será extático, com minha pessoa ? as mãos nos bolsos, cara de pastel à espera de o funcionário-excitado atendê-lo, ou de poder falar comigo,já adivinho(e almejo,óbvio)...
Entre o ar perplexo atrás do balcão, certamente impactado por minha resposta, e o ar paspalho aqui a meu lado, fatalmente traído pelo sensorial corpóreo, tiro da sacola o batom discreto e passo-o pelos lábios em suaves e lentos movimentos (e olhando de soslaio para um e para outro, dois patetas à frente da ‘femme fatale’). Ah, no celular tem SMS do Mauro, só podia ser_ “PF, como está o lance aí?vai conseguir? saudades... MR”
-- Bem,já que é tão importante e urgente assim, moça, vou ver o que dá pra fazer,me aguarde,por favor(droga,será que vou ter de desistir e esperar a outra vez, de preferência sem um chato por perto? paciência, perde-se uma batalha mas não se perde a guerra, já dizia o Manezinho de Madureira, saudades daquele cara lá do “meu amado subúrbio”,li isso no Lima Barreto). O senhor, aí, o que deseja ?
-- Ah, eu ? (o cara tá mesmo embabacado, afinal ninguém me resiste, eheh... eta mulher danada! idiota,isso é que sou...). Recolher documentos da Fazenda sobre a economia brasileira na década de 1850, tenho a relação deles comigo. Não preciso de todos, mas pelo menos desses aqui marcados, principalmente as portarias do ministro.(ih,a gata parece ter se interessado: por mim ou pelo pedido?)
-- Gozado, a bela moça me pede documento que é da década de 1860, o senhor me vem com 1850: estão combinados ? Um se junta ao outro, são do mesmo projeto?vocês trabalham juntos ? (se deu bem hein cara!). ...Preencha o formulário de requisição, por favor,senhor. Bem, vou lá dentro verificar para um e para outro, veremos o que consigo (queria mesmo é reter mais a gata por aqui,... ou fazê-la voltar).Sabem perfeitamente que vão levar a reprodução, né? E que reproduzir demora, ainda mais se os documentos forem velhos,que são pela data, e exigirem cuidados especiais.
Ei, o que é isso ? mas esse período, e a grande expansão econômica de então ,que o Sergio Buarque descreveu tão bem ,no Raizes do Brasil e o Caio Prado reafirmou no História econômica do Brasil, é justamente um dos atuais estudos do Mauro prum livro (como trabalha o bruxo!),que até me chamou para participar... quem é esse moço, afinal? hum, vou apurar(como jornalista que fui).....
-- Pelo visto, companheiro, parecem ser dados importantes, não? Desculpe perguntar,não me leve a mal (a voz singela ajuda a quebrar resistências),qual seu ramo de pesquisa ?
-- Bem, nem tanto mas um pouco,sim,importantes : apenas preciso saber certos elementos de política fiscal da época, que faz parte de um projeto de finanças públicas para a Ebape,da FGV.(creio ter me saído bem, não posso abrir o jogo, mesmo pra essa beleza de mulher,que agora me sorri com um pouco de malícia,acho). Sou economista e professor. Raphael Lambertti.
-- Fleming, Paula Flemming.
No aperto de mãos sinto a mão firme dele, embora delicada : me vem até certo frenesi,que é isso, Paula? te cuida,caraca.
Que sensação gostosa ao tocar a mão dela, quase não resisto, me excito, para com isso rapaz....
Entre suspiros, pelo pensamento nela lá fora, e a frustração do plano fracassado, o funcionário espantava-se na consulta que lhe revelava quem era Paula .
-- Esse Google mostra muita coisa, ou tudo mesmo, maravilha. Mas essa moça, tão gataça, tão gostosa, é uma verdadeira sumidade, caramba! olha só o que está aqui, tem formação lá no estrangeiro e trabalhos feitos em várias universidades do exterior,além de projetos em entidades de Portugal,da França e da Alemanha! isso só aumenta meu desejo, ao mesmo tempo em que me .dá um certo medo,é muita areia pro meu caminhão.
Tenho de extrair o máximo desse moço, será verdade o que ele diz? aliás, como me preocupo com o Mauro,e ele às vezes ,quase sempre, não reconhece;acha que me formou,moldou e aprimorou e por isso me dá uma esnobada. mas eu tô ali, oh, tenho paixão por ele, paixão intelectual fique claro (mas rola também de outro tipo,todo mundo sabe, tantas foram nossas vivências, tempos de estudos,trabalho e... amor).
Mas agora,sem deleites de passado, o presente me instiga com esse cara aí e sua pesquisa,além de ter de continuar a administrar o burocrata, que,imagino, antes dos documentos, aposto que foi fuçar pra saber quem sou eu, e se viu alguma coisa deve no mínimo estar tonto e meio deslumbrado, e deve também querer ver se descobre email,telefone,endereço – ih, estaria eu perdida!.
-- O interesse maior na verdade é pela dívida pública federal de então, que já se formava e pautaria, e pauta ,historicamente a existência econômica do Brasil (acho que continuo me saindo bem,com esse discursinho que tem certo fundamento e consistência, sem revelar a essência da verdade de tudo. a qualquer hora ele vai me ligar, ou mandar um SMS, vou ter de informar – mas sem essa belezoca aí perceber...).E tenho também de saber dela que documentos de 1860 é esse,o problema é que não tô conseguindo controlar minha excitação, e fico descentrado e meio bocó.
-- O que você procura trata de quê? deve ser muito importante,por sua ansiedade, e pela seriedade profissional que você mostra ter,de pessoa inteligente e preparada (e com esse visual de ‘miss-sexy das pesquisas inglórias’...nossa, que pernas,que cruzada e descruzada genial!)
A gata é fera,olha só essa boazuda,uma intelectual de primeira ; tô naquela de que uma mulher bonita,e gostosa, não pode ser tão cabeça assim, já me disseram que isso é preconceito, e preconceito burro, completamente fora de lógica. Mas o que fazer, é minha cabeça,não sou inteligente mesmo, não tive lá muita instrução, só o sufici.ente para entrar no serviço público,graças a Deus, e isso é que me segura e leva minha vida.(emprego público! bah,grrr!com esse salário de merda ,aumento só de vez em quando, e neste lugar respirando poeira, e tendo de atender cada um,cada chato, cada feiúra - diferente dessa belezoca aí - e cada pastelzinho como o moço que tá lá fora,,no mínimo na paquera da gracinha. por falar nisso, tenho de saber também quem é,rapidinho, pra destrinchar logo esses documentos que eles querem, primeiro o dela,óbvio...)
Não posso também abrir o jogo, não sou burra, fica aí jogando essa conversa mole pra cima de mim,e pensa que caio nessa? tô meio interessada em você, não só por sua pesquisa, mas por ter um jeito bem atraente, meio sensual.e quem garante que tá me dizendo a verdade?(aprendi a desconfiar e depurar de certos depoimentos,mesmo os dados nos documentos e fontes de nossas pesquisas.o carinha aí é simpático, pode ser sincero,mas não me convenceu de todo,e agora quer extrair de mim algo mais...)
-- É sobre a culinária no Brasil imperial, justo nessa década de 1860 intensificou-senesse campo também, a influência da França e da cultura francesa, incluída a culinária, na sociedade por aqui.
(ih, lembro agora que o Mauro ainda tem de lapidar o estudo de “Machado e os franceses”, e tocar as outras obrinhas,o pessoal lá da Universidade do Porto tá esperando,minha prezada prof. Malato outro dia me indagou sobre. aliás, quando vou voltar a Portugal, terrinha de meus amores?...saudades de meus 4 anos lá, naqueles dois projetos fascinantes; saudades carinhosas também do Gonçalo Ferreira, aquela gracinha do Alenrejo,e sua mansarda aconchegante,seu jeito machão...).
-- Estou agora dedicada a examinar esse ‘francesismo’ no Brasil do século XIX (consegui convencê-lo ? acho que sim.pra distrair sua atenção e concentração, vou fazer outro exercício -invencível,ah, ‘a dor e a delícia de ser mulher’- agora de olhar, com aquele famoso olhar 38,malicioso e paralisante...)
Vejo aqui no formulário que ele preencheu, que o moço também é fera, eta doutorzinho gabaritado,e como ela também de 42 anos, não é que também esteve lá fora, pósgraduação,PhD, estágio?- epa, que estagião esse nos States; é historiador elogiado, professor ,autor de 3 livros,um em inglês.... isso é que é. péra aí, se a gata souber disso vai ficar na dele, não dá pra competir.(também pára pra pensar, oh Geraldo, tu pensa que é o quê ? o máximo que conseguirá é ficar sonhando com ela...por falar na beldade, tenho de ver logo esse bendito documento que ela quer,deixe ver no formulário pra não errar. não posso errar senão me dano...)
Ela quer me enlouquecer,agora com esses olhos e esse olhar ‘oblíquo e devastador’, não bastam as pernas,querida? num tô aguentando muito não e não consigo me concentrar o suficiente,como resistir,meu Deus! é duro ser homem,valham-me os deuses. Estranho, ou coincidência, em que não acredito: esse lance de influência da França e dos franceses é tema de estudo do Mauro,que tá tocando muito devagar, atolado em tantos outros projetos,o cara é doido mesmo.(epa epa será que ela tá junto com ele nesse projeto? mas ele nunca falou de mulher nenhuma em projeto nenhum – a não ser que... não.não,deixa de paranóia Rapha, mantenha sua mente arejada,não começa com formulações conspiratórias, justo uma das matérias-primas de teu metier, a História -e eu dizendo a ela ser economista, argh-.mas do jeito que o Mauro é,sensível à Beleza,rrssss)...
Tenho certeza de que tá meio desarticulado de pensamento,sem saber bem se acredita e leva a sério isso que lhe disse, se é válido esse tipo de pesquisa,mesmo que o tema mereça - claro que merece, não sei se ele como economista que diz ser (e se não for? se for por exemplo de história,ou de literatura ? ei, aí a coisa fica meio complexa, aí mesmo que aumentaria minha desconfiança com relação à verdade de sua pesquisa).
Com ela - ah, musa indelével deste cenáculo - eu também tenho de manter a desconfiança e o cuidado de todo pesquisador com depoimentos e declarações alheias, é a regra básica pro nosso meio, se não acaba-se revelando segredos, e lá se vai o ineditismo, o pioneirismo, a descoberta, o resgate de coisas preciosas.
Não se descompense, Raphael, mantenha-se íntegro...(mas sensível a essa mulher e seus movimentos, suas palavras, seu odor,sua...)
-- Seu celular deu um toque aí, deve ser mensagem, Raphael.
-- Obrigado Paula. Sim, é mensagem (é o Mauro, já esperava _ “RL, como estão as coisas,difícil ou fácil? e tá escondendo o lance? MR”
-- Muito bem, senhores ,ou melhor, senhora e senhor!(vou ser bem formal e protocolar; se não espanta a gata e pode me dar problema se o moço achar que não cumpro meu dever de ofício e apresentar queixa à direção: estaria lascado). Verifiquei suas solicitações, a demanda de cada um, recolhi o que me era possível, a mim e à repartição, o que está nos acervos.Prezada jovem, o documento que procura(que coisa, Machado de Assis na política, esse partido aí, ele candidato...hum) aqui está devidamente reproduzido. Caro senhor, entrego-lhe seus documentos,reproduzidos.(dezenas,centenas de dados e números,e relatórios,e pareceres, sobre a economia aqui de 1849 a 1861- quase se junta com o da moça, pela época).Desculpem a demora mas a reprodução é lenta,bem sabem. Espero tê-los atendido bem e cumprido meu dever, estou aqui para isso, e esta repartição espera ter cumprido sua função; se desejarem e precisarem, estaremos às ordens para vos servir inclusive (principalmente você, gostosinha) a senhorita que pode ser que precise voltar depois do parecer da universidade lá de Paris, como me falou.
Hum, ótimo aqui estão os documentos, vai acabar de vez com esse lance do distanciamento político de Machado, a turma não se convence nem pelo que escreveu nas crônicas e nos contos, ah o Mauro tem de publicar logo isso, não basta os artigos que já lançou por aí. aliás, tô aqui fazendo isso só pra quebrar um galho – isso não é linguagem acadêmica, Paulinha, de estudioso, pô...- estou em outro projeto, aquele sobre “Queda que as mulheres têm para os tolos” : meu lance com Paris, que citei pro burocrata aí, é sobre isso, pro Massa, e não pra este. vamos ver se o Mauro reconhece, desviei-me de meu projeto para atendê-lo, e sei que ele não espera que consiga o que consegui aqui. tenho de ligar pra ele e cantar vitória, quero ver a reação...antes tenho de resolver a parada com o moço aí.
Muito bom, muito bom, cá está o que preciso, aliás de que precisamos eu e o Mauro, vamos tocar- – quer dizer, acho que eu vou tocar sozinho, vai sobrar pra mim -- o projeto do grande surto econômico da década de 1850,que tem elementos importantes para aquele estudo do liberalismo social de que o Mauro tá afim de fazermos juntos também.vou dar um jeito de ligar pra ele, e não posso deixar de entabular logo um lance com a gata aí..
-- Vamos, Raphael? Ao senhor, atencioso e dedicado funcionário , como é seu nome, prezado?
-- É Geraldo, Geraldo Neves, às suas ordens, volte logo (tomara...).
-- Muito obrigada por tudo, voltarei sim,pra ser bem atendida e bem tratada pelo senhor (e lá vai aquele olhar,o boboca ,deve até estar a tremer)
-- Vamos, Paula. De minha parte todos os agradecimentos, sr. Geraldo. Fui muito bem atendido, até à próxima.
No elevador,descendo para o térreo, Paula pensa e avalia se deve sair com Raphael – claro, ela antevê,que ele vai propor ir a algum lugar, um café, um lanche, vai vir até com idéia de jantar mais tarde , etc,faz parte do script (certo que o carinha me despertou a curiosidade, ele em si e o projeto dele, tenho de procurar saber tudo, usar de meus ‘métodos femininos’ pra arrancar o possível, ‘eu gosto de ser mulher”, lalarililá)
Olhando de soslaio para ela e algo desconfortável no elevador, que tem mais duas pessoas, Raphael planeja o que lhe parece o corolário da empreitada : obtidos os documentos, obter a gata (pena que essa gente toda aqui no elevador, mas lá embaixo lanço o “vamos tomar um café”, quem sabe lanchar, ou thantchantchan mais tarde jantar , tô afim dela, vai firme cara...)
Mas todo cuidado é pouco pra não abrir o jogo e revelar a verdade de meu projeto e desta pesquisa,por isso tenho de pensar muito, usa de toda tua intuição e razão, Paula, não dá bobeira .....(mas tenho mesmo é de ligar pro Mauro,e quem sabe ir lá falar com ele e entregar os documentos; ou não ? valorizo um pouco, deixo passar o tempo, levo amanhã, só pra sentir o clima, e a sensação dele – jogar é comigo mesmo...)
Mas pensando bem, preciso tomar cuidado,caso se dê a continuação deste convívio,de não revelar nada do verdadeiro propósito do projeto e desta pesquisa,ela é sedutora demais, pode me envolver,aliás já faz, acabo abrindo o jogo.(antes, tenho de avisar ao Mauro que acho está ansioso, na verdade nunca se sabe porque ele disfarça e fica às vezes meio blasé....)
Poderia até envolvê-lo facilmente em minha teia, levando com ele um papo meio acadêmico, falando de pesquisa, interessada em saber de seu trabalho, suas atividades, projetos, emendaria com considerações sobre a economia brasileira, deixaria ele falar e falar, poderia aí escapar algum indício ou informação, reforçaria os olhares, tocaria em sua mão meio sem querer , e coisa e tal (por falar em envolver, onde estará Ricardo? preciso reencontra-lo, “alô amor, saudades? , ele tem elementos importantes, para mim, sobre Alencar...). Mas não,não,te segura malandra, pode ser um risco e pôr em risco o plano,com conseqüências sérias,acho (tô certa, Mauro?).é isso, fica pra próxima,dou a ele meu email,e pronto.
Seria elementar, dear Raphael, entabularia um papo meio acadêmico, falando de pesquisa, interessado em saber de seu trabalho, suas atividades, projetos, emendaria com considerações sobre a cultura brasileira, ela gostaria, não falha. E iria envolvendo, e coisa e tal (por falar em envolver, onde estará Bianca? também não a procurei mais, ela até que tinha informações importantes para mim sobre Nabuco ...).Pensa bem, Raphael, usa da racionalidade que tanto elogiam em você, pode ser até que ela esteja afim, me seduziu lá em cima o tempo todo , e com mulher assim vai ser quase impossível resistir.Não,não,não,por maior que seja meu desejo, paro por aqui, dou meu telefone e até à próxima(não sou tolo, como aqueles a quem as mulheres do século passado,até hoje em parte, preferiam, já revelava mestre Machado.o Mauro aliás me disse vai trabalhar nisso, falta-lhe tempo e gente pra auxiliar, vou ver se lhe indico alguém,de preferência uma mulher...)
-- Já sei que você ia me propor um café, acertei Raphael? ou um lanche,um papo mais,digamos,profundo,né ?(tolos,tolos,são os homens, nós sacamos tudo, e antes não sei como é que as mulheres no século XIX os preferia, relatava e ironizava Machado. preciso tocar e muito esse projeto, vou ter de ir a Paris, Montmartre aqui me tens de volta (vou conversar mais com a Vera, esteve lá há pouco, vai me atualizar).

-- Sabe, até que pensei nisso, sei de um ótimo lugar,nele poderíamos até falar de culinária, bem a propósito desse seu projeto, não ? Mas tenho de levar os documentos para o diretor do departamento de economia da PUC (embuste : vou lá no Mauro, deve estar no ap. do Leblon,à espera dos documentos, ansioso...),ele quer logo começar a examiná-los e até trabalhar noite adentro.
-- Até que eu gostaria, mas também não posso, tenho um compromisso lá no Grajaú (engodo: acho que vou ao Mauro, quer dizer, se eu decidir levar agora o documento, ou fazer suspense...), e quero logo cedo amanhã debruçar-me nesse documento pro meu projeto.
-- Podia até de dar uma carona, Paula, estou de carro,você está ? mas vamos para lugares opostos na cidade. Meu email e telefone, me contata, OK ? Foi um prazer que você nem imagina conhecê-la, e desejo todo sucesso,e continue assim, simpática com os outros e dedicada às pesquisas.
-- Merci, estou no meu carro. Toma meu email e o endereço de um bloguinho em que me distraio lançando abobrinhas (como quase todos aliás,neste mundo...). Gostei muito de conhecer você,ótimo te encontrar nesta mesma seara de pesquisas,tomara a gente se reencontre pela aí, que você seja muito bem-sucedido, parece-me um profissional muito competente.
Ah, Geraldo Geraldo, que mulher ! e pode ser até que me engane,ou delire, mas ela jogou um olhar muito especial pra você, será que agradei mesmo a gata? Como vou conseguir esperar e sonhar que ela volte? Não vou agüentar,não não vou escavar,fuçar, e descobrir onde ela trabalha, se dá aulas, deve estar ligada a uma faculdade, deve sim. Paula Fleming, dra. Paula Fleming, professora,pesquisadora, escritora – vou descobrir !...
-- Até mais,Raphael (beijinhos só na face, cheri, mas toco de leve nos cantos de sua boca...eheh). Vou ao banheiro (lá dentro ligo pro Mauro...),e depois pegar a sacola ali na recepção.Au revoir.
-- Espero lhe rever, Paula (epa, tentei não deu, ficamos só na beirinha, mas o suficiente pra me excitar, ai ai...). Também vou ao toilete (e falar com o Mauro,lá...) e depois pegar a mochila no balcão.S’il you later....
É assim mesmo,na vida e na ficção, comenta Mauro com seus neurônios, diante do laptop, já deduzindo e induzindo o que ocorria lá fora com os dois. Enredos se formam,tramas se esboçam, roteiros se engendram, clímaxes e enlaces se anunciam, mas no fim nada sucede,tudo se imobiliza no mesmo.(leitores mais dedicados estão familiarizados com isso, não só nessa contemporaneidade pósmodernista,hum,argh,brrrr!,mas desde Balzac,Proust,Tolstoi,Henri James,Machado, Garret, de Maistre, ih tantos,até Borges e Cortazar...).
Uma obra – ficcional ,vale frisar - “existe em três planos : como o autor o imagina antes de escrevê-lo; depois, quando está escrito, e, por fim, quando o leitor abre o livro; ao acabar de ler , o leitor termina também de reescrevê-lo à sua maneira porque, afinal, imagina coisas que não conhece nem nunca poderá conhecê-las porque perdidas no tempo” -- significativo que me venha à mente agora o que o prof. Adelto Gonçalves,reportando ao escritor catalão Eduardo Mendoza, registrou na resenha que escreveu sobre o livro Leitor real e teoria da recepção: travessias contemporâneas, de Robson Coelho Tinoco, e que,gentilmente como sempre, me enviou, para meu deleite de sempre.
Paula e Raphael ainda vão se encontrar, e muito : oportunidades, iniciativas, planos e desejos muito se apresentarão.
Paula, oh Paulinha, como és linda,maliciosa, oblíqua e dissimulada , te homenageio com esta imagem de minha musa literária; e inteligente,beirando a genialidade, intelectual obstinada, a workaholic nata. filha de d. Camila, que conheci muito bem, bela e charmosa sempre,mesmo aos 68 anos quando a vi pela última vez, ela sempre me reportando àquela profecia da lagartixa de Heine, subindo os Apeninos,a que Machado se referia: “dia virá em que as pedras serão plantas, as plantas animais, os animais homens e os homens deuses.”,assim permaneceu incólume ao tempo a mãe de Paula..
Raphael, querido,de nome de anjo, mas nada angélico ou espiritualizado, muito menos bíblico ou cristão,mas obcecado em refletir sobre a nada utópica,assim também penso, possibilidade de conexão filosófica do ‘fides et ratio’, da conciliação plena de fé e ciência, de razão e emoção, do ‘sense and sensibility’’(preciso voltar a ler a Austen); intelectualidade pura e suprema, uma das pessoas mais racionais que já conheci, desde quando apresentado em 1992 pela Anita Novinski, lá na USP, logo nos entrosamos e me auxiliou tanto no São Paulo a cidade literária,como no estudo sobre Pedro II e o Brasil imperial e hoje neste estudo sobre a economia de 1850, que vai abastecer três projetos, e também está naquele maravilhoso projeto que acalento sobre a linguagem literária brasileira.
- Droga, o celular do Mauro ocupado,justo agora ! não faz mal, ligo lá fora, depois de o moço sumir de vista...Vou decidir se levo o documento a ele, ou faço aquele joguinho : acho melhor isso ; devo ir pra casa, na Barra, ou sair pela night do Rio pra espairecer e dar um bordejo?...
- Fala, Mauro, é Raphael, o quê? sim, estou sozinho agora, falando com segurança total. Tudo em cima, recolhi o que tinha de recolher, vitória completa, com méritos, não ? O projeto avançará a todo vapor, congratulemo-nos, e parabenize-me, amigo, atendi a seus anseios... Ah, já foi pra casa em Petrópolis,não está no Leblon? e como lhe entrego os documentos? Ei, nada de emoção nem saudação? claro, você sempre meio distanciado, sempre que pode vem com esse jeito lacônico....
-- Ah, celular livre. Oi, amor, sou eu. Hein? Tô, tô sozinha, segurança plena pra falar. Consegui tudo,vitória ! não acreditava né, não vai me cumprimentar? Vamos festejar?... O quê? está em casa,em Petrópolis? mas não ia me esperar no Leblon?...mas que descaso, tá fazendo jogo, lá vem você com isso.... não quer ver logo os documentos?...E como e quando lhe mostro? só depois de amanhã, no Leblon ? Porra, pensei que estivesse ansioso, e doido pra me ver ...
...E deixei de sair com a gata da Paula, dava até um jeito, com meu talento, pra convencê-la, mesmo com o compromisso que dizia ter: tudo pra preservar o segredo da pesquisa. É... nesses momentos que sinto nitidamente que Mauro não me tem como amigo verdadeiro, como parceiro e companheiro de estudos,projetos, pesquisa – tudo é ficção, me faz, isso sim, de mero personagem!!!
Estou pra matar esse cara... E eu, idiota, não saí com o Raphael, pra resguardar o segredo desta pesquisa, que raiva ! Agora mesmo é que vou pra noite carioca, me aguarde baixo Gávea! Sabe de uma coisa: nessas horas vejo claramente que o Mauro, cretinão, não me tem como amiga, até mesmo companheira, como parceira de estudos,pesquisas,projetos – é tudo ficção, me tem como simples personagem!!!

FIM

quinta-feira, 10 de junho de 2010

O futebol ,paixões e ódios , os literatos , duas cidades


no Rio de Janeiro...
O futebol, todos sabemos, surgiu no limiar do século XX no Rio de Janeiro como “uma grande novidade”, mas por ser esporte de origem inglesa logo cairia no gosto das rodas elegantes da cidade ( que na época cultivavam quase que exclusivamente o remo ) — e de imediato, por suas próprias características , despertaria paixões acirradas, não apenas entre torcedores e admiradores dos clubes então formados ( Payssandu Cricket Club, Fluminense Foot-Ball Club, The Bangu Athletic Club, etc ).
O futebol, mais genericamente o esporte, na verdade constituiu um elemento dos modismos aos quais a sociedade da cidade do Rio de Janeiro, inclusive os literatos e intelectuais,aderiu, no afã de se integrar a um processo de modernização advindo e preconizado pela República, implantada em 1889 e que tinha entre seus projetos de afirmação ideológica e política revelar-se como meio e suporte de transformar um país “atrasado não só institucionalmente,porquanto monarquia até então, como também econômica, socialmente e até urbanisticamente” e mostrar ao concerto das nações mundiais ser o regime mais adequado a superar e sustentar as exigências de um processo capitalista de transformação e evolução.
Por essa época, nas principais cidades do Brasil começou a fervilhar entre seus jovens -- explicitamente por influência dos ingleses que aqui viviam -- as práticas esportivas mais variadas: o rowing (remo), o tênis, a luta greco-romana, o turfe, a pelota, o box, o ciclismo, a esgrima, o golfe, a patinação, o hipismo, além do tiro ao alvo, automobilismo, e notadamente do cricket:, modalidades que rapidamente espraiaram-se por setores da sociedade local.
Ainda que desde os tempos de Colônia persistisse no Brasil uma espécie de postura/ideologia ‘anti-esportiva’ por força da cultura escravocrata, que sedimentara entre brasileiros e portugueses o valor do ócio e a convicção de que o esforço físico “não era digno” (o que viria a ser revertido na década de 1910 pelo culto ao esporte e à educação física), e também por causa do medo da febre amarela que mantinha as pessoas afastadas de aglomerações (a epidemia de febre amarela assolou o País até 1906, quando foi debelada pelo médico sanitarista Oswaldo Cruz). .Não se praticava esportes também porque não havia, entre os brasileiros e portugueses, o hábito de freqüentar clubes -- somente por volta de 1860 começaram a surgir os primeiros embriões de agremiações esportivo-sociais, sempre graças à iniciativa de ingleses para efeito da prática do cricket: pois foi justamente um clube dessa modalidade que em 1901 deu origem ao primeiríssimo clube de futebol do Rio de Janeiro.
Pelos registros ‘oficiais’, o futebol teria surgido no Brasil -- mais precisamente no estado de São Paulo -- com Charles Miller, que retornando da Inglaterra em 1894, trouxe com ele as bolas e o sonho de ver o futebol crescer no país. Na capital paulista surgiram os clubes São Paulo Athletic (que só praticava o cricket), o Sport Club Internacional e o Club Atlético Paulistano. No Rio de Janeiro os pioneiros clubes especificamente de futebol, com tal denominação, foram o Fluminense Football Club , fundado em 1902, e o Botafogo de Foot-ball e Regatas, em 1904.
Mas informações de igual credibilidade histórica induzem a se admitir que as origens da prática do futebol no Brasil remontam a épocas, formas e locais outros que os ‘fields’ e os clubes elitistas do início do século XX : estariam também nas ruas e em colégios. Ainda no século anterior a esse, escravos e jovens pobres já procuravam imitar os marinheiros ingleses que corriam com uma bola no porto do Rio de Janeiro e , segundo fontes insuspeitas, seminaristas eram incentivados pelos jesuítas a praticar futebol como parte da educação física .
Justamente por ter vindo da “Old Albion” (assim era chamada a Inglaterra, ‘ na intimidade’, pelas elites) , em seus primeiros anos na cidade o futebol teve um caráter restrito, praticado preponderantemente por jovens ricos e bem-nascidos — mas já no final da década de 1910 alcançava uma popularidade nunca vista, logo fascinando um significativo contingente de jovens, primeiro atraídos pela praticidade — jogar futebol era tão possível quanto assisti-lo, ao contrário do remo, do turfe, do pólo — depois maravilhados com a dinamicidade e plasticidade que aliava ritmo e vibração, movimento e velocidade de maneira bastante peculiar — e ,tanto quanto os demais esportes trazidos por migrantes de boa estirpe do Velho Mundo , enquadrou-se naqueles anseios elitistas de transformar as cidades brasileiras segundo modelos das metrópoles européias.Nesse sentido, jogar futebol simbolizava estar sintonizado com um novo modelo de sociedade e inserção num padrão ‘civilizado’. Até porque as autoridades e dirigentes do País impuseram-se a tarefa de “organizar a sociedade” — a começar pela capital da República, modificando o traçado urbano, e atuando também no âmbito da saúde, do trabalho, da educação e do lazer. Uma atuação ‘pedagógica’ que contou com um forte aliado : o esporte.
Só que a incontrolável difusão veio a extrapolar esses primeiros limites sociais. Na segunda metade da década de 1910, por exemplo, já era o esporte “de maior número de praticantes e adeptos”, segundo a revista Época Sportiva ; a popularidade ímpar do futebol, além de obrigar a criação de seções especiais nos jornais de então — como O Paiz, Gazeta de Notícias, A Noite,Correio da Manhã — mas mantidos os tradicionais espaços para o remo e o turfe, fez nascer publicações especializadas, como a citada Época Sportiva, Sport Ilustrado, Sportmen (esta, de São Paulo ).O crescimento e o interesse desperto pelo jogo de bola não tardariam em ocupar maiores espaços nas páginas dos jornais.
Se em 1901 o público presente na primeira partida disputada no Rio de Janeiro era menor que o número de atletas em campo, em 1904 o futebol já atraía tanta gente que foi preciso a Federação Carioca das Sociedades de Remo oficiar aos clubes um apelo para que não fossem realizados jogos nos dias de regatas.E em 1906, no campo do Fluminense, cerca de mil e quinhentas pessoas aglutinaram-se para ver um “match” entre brasileiros e ingleses(estes, na verdade, ingleses residentes no Rio de Janeiro).
A extraordinária e avassaladora difusão do futebol nos primeiros anos do século XX, não apenas no seio das chamadas rodas elegantes da sociedade brasileira, encontrou também generosa guarida entre intelectuais e escritores — contingente social e profissional que passou a adquirir notável significância e papel de proa no contexto histórico de então : afinal, conferia-se uma nítida feição de elegância e distinção para o futebol — e o elitismo originário se manifestava tanto no fato de ser praticado pelas camadas ‘endinheiradas’ como notoriamente pela exclusiva utilização dos termos ingleses que faziam parte do vocabulário do chamado “jogo bretão”. Bastante apropriado para aquele tipo de ‘cultura belle èpoque’ então vigente...
João do Rio foi o primeiro cronista a detectar a importância do jogo para a cidade , assinando com o pseudônimo de José Antonio José (um de seus ‘disfarces’ jornalísticos : com esse nome, escreveu por exemplo Memórias de um rato de hotel) uma crônica intitulada “Pall Mall Rio – Foot-ball” em O Paiz de 4 de setembro de 1916, onde vaticinava :“Tenho assistido a meetings colossais em diversos países, mergulhei no povo de diversos países, nessas grandes festas da saúde, da força e do ar. Mas absolutamente nunca eu vi o fogo , o entusiasmo, a ebriez da multidão assim .”
Na esteira de João do Rio, impressionados com a avassaladora popularidade do futebol, os intelectuais, e notadamente os escritores, se entregaram à tentação e ao desafio de interpretá-lo,o futebol vindo a sensibilizar, em maior ou menor grau, a quase todos, como Olavo Bilac, Luis Edmundo, Afrânio Peixoto – a quem atribui-se participação decisiva nesse despertar de interesse pelo futebol entre os literatos : médico que também era, foi o primeiro a legitimar, sob argumentação científica,o futebol como atividade ‘respeitável’, ligando-o ao intelecto e à educação. Peixoto chegou a declarar ,em 1918 ,que “esse jogo de foot-ball, esses desportos que dão saúde e força, ensinam a disciplina e a ordem, fazem a cooperação e a solidariedade, me enternecem, porque são grandes escolas onde está se refazendo o caráter do Brasil (...) o futebol estará reformando, senão refazendo o caráter do Brasil ” (em “A educação nacional”, no livro Poeira de estrada, 1918)”.
Sob outro prisma, pode-se da mesma forma entender a notável receptividade que o futebol encontrou, de pronto, junto aos literatos por força do culto então vigente no seio da sociedade carioca a ‘traços e coisas da modernidade, à européia’.. Logo, escritores como Coelho Neto e Olavo Bilac, por exemplo — até mesmo por sua ‘índole estilística’ — não hesitaram em ‘literatizar’ o esporte, pincelando-o com tons e matizes da Grécia e da mitologia,dedicando-se integral e incondicionalmente à louvação — e, de certa forma, mitificação — do novo esporte, e apregoando as vantagens ‘filosóficas’ de sua prática e disseminação : o futebol enquanto prática de aprimoramento físico e instrumento de otimização social.A função do novo esporte seria “(...) criar no país uma “nova raça que deixasse definitivamente para trás a sua malfadada herança cultural(...)”. O modo pelo qual isso poderia ser conseguido era bastante claro: abrindo mão dos interesses pessoais, todos deveriam trabalhar por uma mesma causa, por um mesmo ideal — não por acaso uma das preocupações básicas dos defensores da melhoria da raça brasileira, que faziam da propaganda cívica uma das estratégias básicas de sua atuação. Era o ‘discurso eugênico’ que então permeava e prevalecia no meio científico brasileiro — e mundial — divulgando e enfatizando os ‘sentimentos nobres’ atribuídos as “raças superiores”, como o senso de disciplina, a harmonia social e o amor à Pátria.
De resto, a prática e aceitação do futebol se expandia entre todas as camadas da população, inclusive e notadamente entre trabalhadores e operários : os esportes seriam em geral uma lídima expressão de educação física, “saudável ao corpo e à mente”. Por considerá-los verdadeiras fontes de energia, cada vez mais intensificava-se uma campanha a favor dos esportes: assim, o futebol iria contribuir para a criação de uma sociedade “saudável, forte, altaneira, os de homens adestrados pelo exercício físico e preparados, em corpo e mente a fazer o progresso da Pátria”-- e justamente aí reside um elemento capital das excepcionais aceitação e admiração por parte de muitos intelectuais e literatos: viam no futebol, mercê de sua notável popularização e dotado de ‘sentido tão nobre’, “uma força de transformação sociológica”,adequado a alguns dos projetos de cunho político e social que sustentavam e se propunham a promover.
A par de ‘instrumento de regeneração social’, o esporte abrigava os princípios do ‘helenismo’ e do ‘espírito olímpico’ inerente a Atenas : o futebol derivava-se em linha reta dos jogos atléticos da Hélade (e por outro lado,como hoje interpretado, resgataria e expressaria a katarsis,individual e coletiva, almejada e idealizada originalmente pela filosofia grega — e se retirava dele o caráter ‘bretão’. Os praticantes do futebol e os jogadores dos clubes oficialmente constituídos seriam uma espécie de missionários de ‘uma causa nobre’, que dariam ao País exemplo de disciplina, solidariedade, energia, força... e civismo . Esporte e Nação, patriotismo e futebol ,eram conceitos e elementos inseparáveis.
Entre todos, um logo se notabilizou como o maior dos adeptos, o mais vibrante entusiasta do novo esporte, tornando-se em pouco tempo grande ideólogo do jogo, mergulhando obstinadamente na defesa apaixonada das vantagens de sua disseminação : Coelho Neto. A atração que o futebol logo exerceu sobre ele manifestou-se já em seu romance Esfinge, publicado em 1908 , em que o personagem James Marian, um inglês hóspede da pensão de miss Barkley, tinha o hábito de “aos domingos, sair cedo com seu material de tênis e com roupa para o foot-ball”. E o futebol passaria a ser, a partir daí, tema onipresente não só nas crônicas e discursos mas também -- e principalmente -- na vida pessoal de Coelho Neto.
Sócio do Fluminense, entregou-se cada vez mais à paixão -- pelo esporte e pelo clube. Tanto que chegava a assistir, no mesmo dia, quatro jogos diferentes do Fluminense, pois tinha filhos jogando em cada uma das categorias que o clube disputava ; tamanha paixão, que o levou a liderar a primeira invasão de campo do futebol carioca, inconformado com o juiz que marcara um pênalti a favor do Flamengo num movimentado Fla-Flu no campo da rua Paissandu, e que acabou provocando a anulação do jogo.Tamanha paixão que em 1915 escreveu a letra do primeiro hino do Fluminense ( “O Fluminense é um crisol / onde apuramos a energia / ao pleno ar, ao claro sol / lutando em justas de alegria / o nosso esforço se congraça / em torno do ideal viril / de avigorar a nossa raça / do nosso Brasil ...) ,onde fica evidente e bem mais nítida a campanha que ele começava a mover a favor do futebol.
Coelho Neto via o futebol “ajudando a criar uma sociedade na qual os homens , qual os esportistas, fossem adestrados pelo exercício físico, criando um tempo de paz e de harmonia e abrindo o peito para valores nobres de confraternização e integração social”. E os jogadores, para ele, assumiam a feição de verdadeiros missionários de uma causa nobre : propagando os princípios da disciplina e da solidariedade, os atletas dariam ao país grande exemplo, ajudando a consolidar o potencial transformador do futebol.Gerando harmonia e solidariedade entre os homens, controlando seus impulsos e moldando seus corpos e suas mentes na construção de um ideal de Pátria, o futebol seria a força propulsora de uma nação forte e vigorosa e os jogadores representantes dessa nova nação que se erguia dos campos.
Contudo, numa efetiva contramão desse contexto, emerge e insere-se Lima Barreto e seu inquebrantável repúdio ao futebol – que,de resto, integrava-se à ojeriza visceral e irredutível ao estrangeirismo, a tudo que fosse alienígeno à nacionalidade, vistas também como ‘estrangeiras’ as elites republicanas. Via a sociedade brasileira como o fruto da combinação de distintas etnias, mestiçagem essa que atingira grau elevado de intimidade e adaptabilidade á natureza tropical; abominava por isso a preocupação obsessiva das elites em fomentar e transmitir a imagem de uma ‘nação branca e civilizada’, fato que as tornava tão estrangeiros quanto os europeus e americanos “invasores, as mais das vezes sem nenhuma cultura e sempre rapinantes.”.
Na crítica à violência gerada pelo futebol dentro e fora dos campos, inseria-se também em sua crença e pregão dos ideais de fraternidade, harmonia e paz entre os homens; na crítica aos elitismo, sectarismo e exclusão social promovidos pelo futebol, a manifestação de sua ideologia anarquista-maximalista. E mais : na essência mesmo do futebol, encontrava-se a figura de Coelho Neto, epígono e personificação da escrita/linguagem ‘empolada, de expressões cediças e figuras de efeito, cheias de arabescos estilísticos’, expressão da frivolidade e mundanismo então prevalecentes. Sobretudo o futebol como exemplo da pretensa, falsa e “obtusa” modernização preconizada e pretendida pela, segundo ele, “nefanda República
Lima Barreto alinhava-se entre “os tantos inimigos que pela imprensa o combatem” e que logo passou a fazer do futebol um de seus temas prediletos nas páginas da imprensa carioca. Com espaço e reconhecimento já assegurados nos círculos literários , com três romances e uma infinidade de crônicas, Lima inaugurou seus ataques em 15 de agosto de 1918 no artigo “Sobre o Foot-ball” no jornal Brás Cubas :
“ Diabo ! A coisa é assim tão séria ? Pois um divertimento é capaz de inspirar um período tão gravemente apaixonado a um escritor ?
(...) Reatei a leitura, dizendo cá com os meus botões : isto é exceção, pois não acredito que um jogo de bola e sobretudo jogado com os pés, seja capaz de inspirar paixões e ódios. Mas , não senhor ! A cousa era a sério e o narrador da partida, mais adiante, já falava em armas...
Não conheço os antecedentes da questão; não quero mesmo conhecê-los; mas não vá acontecer que simples disputas de um inocente divertimento causem tamanhas desinteligências entre as partes que venham a envolver os neutros ou mesmo os indiferentes, como eu, que sou carioca, mas não entendo nada de foot-ball . “
Lima atentava, desde o princípio, para a força social do jogo: longe de ser um mero passatempo sem sentido, era capaz de inspirar paixões e ódios — e o futebol adquiria para ele uma seriedade ímpar, que o obrigaria como ‘crítico de costumes’ a dedicar-se profundamente ao novo fenômeno. Transformando-se no paladino do combate ao jogo de bola, Lima elegeria justamente Coelho Neto como o principal adversário. Iniciava-se então um acirrado confronto pelas páginas da imprensa carioca , logo depois de mais um empolgante discurso de Neto, por ocasião da inauguração da piscina do Fluminense em 1919 — discurso que para Lima parecia um verdadeiro pecado, manifestado na crônica “Histrião ou literato” , na Revista Contemporânea, de 15 de fevereiro de 1919 :
Lima Barreto acusava Coelho Neto de fazer “somente brindes de sobremesa para satisfação dos ricaços”, e sustentava que a simpatia de Neto pelo futebol seria mero oportunismo, um meio de agradar às ricas famílias , vindo de “um homem que não entende sequer a alma de uma criada negra”. A partir daí, Lima aumentaria a quantidade e virulência dos ataques, em crônicas quer em tom agressivo quer irônico, nas quais surge a imagem de um jogo brutal e sem sentido, totalmente diferente do elemento de regeneração social preconizado por Coelho Neto, para desespero da imprensa carioca, quase toda ela empenhada em prestigiar o futebol — com raríssimas exceções como, por exemplo, a do jornalista e escritor Carlos Sussekind de Mendonça, que incorporou-se à luta de Lima Barreto contra o futebol, que ele considerava entre outros aspectos “micróbio de corrupção e imbecilidade”, “estrangeirismo estéril e inútil”. Propunha sobretudo combater , de todas as formas, a “nefasta defesa do futebol” feita por intelectuais e escritores — rejeitando, inclusive, qualquer teoria de que “o esporte possa manter alguma relação com a razão e o intelecto” — e denunciar as “verdadeiras atrocidades,até dentro dos próprios clubs” promovidas pelo futebol : como Lima Barreto, enfatizava o “blefe de regeneração social” contido no futebol e “os malefícios físicos, sanitários,sociais e culturais” de sua disseminação “que só pode ser bocado de feitiçaria” em campos “onde se apinham centenas de ociosos assistindo inertes, a transpirar, os vinte e dois heróis de maxambona ou caixa pregos” .Em 1921, então editor do jornal A Época, do Rio de Janeiro, Sussekind de Mendonça teve seu livro O sport está deseducando a mocidade brasileira - hoje obra raríssima - publicado com o subtítulo “dedicado a Lima Barreto”.
Ainda em 1919, crescente sua oposição ao futebol, Lima Barreto passa a contar com a solidariedade de outros adversários do jogo: junto com ele, o dr. Mário de Lima Valverde — quem, cerca de dois meses antes ,discorrera para Lima sobre os malefícios à saúde provocados pela prática de futebol — o jornalista Antonio Noronha Santos e o “homem de letras” Coelho Cavalcanti resolvem criar, em março de 1919, uma “Liga Contra o Futebol”, cuja constituição é anunciada em pequena nota na edição do Rio-Jornal de 12 de março.
As aludidas “verdadeiras atrocidades promovidas pelo futebol”, eram denunciadas por Lima Barreto — como na crônica intitulada “Divertimento?”, publicada na revista Careta em 04 de dezembro de 1920, em que destacava os inúmeros conflitos e constantes brigas ocorridos nos campos, com tumultos e batalhas entre torcidas diferentes, registradas nos jornais diários a cada segunda-feira, culminando com o tiroteio num jogo entre o Metropolitano e o São Paulo e Rio em 18 de dezembro de 1920 — como atestados de que, mais do que casos isolados, seriam “o fim próprio e natural do jogo”, como sustenta no artigo “Uma conferência esportiva”, na revista Careta de 1 de janeiro de 1921.
Por trás da oposição crítica barretiana estava muito mais do que uma questão literária ou mera contestação do papel de redenção social que Coelho Neto atribuía ao futebol: Lima via nele um fator de degeneração da cultura e da política nacional, pois patrocinava uma injusta e gritante diferenciação social e regional, como declarou em entrevista ao Rio-Jornal em 13 de março de 1919 :“ – Está aí, uma grande desvantagem social do nosso foot-ball. Nos dias em que, para maior felicidade dos homens, todos os pensadores procuram apagar essas diferenças acidentais entre eles, no intuito de obter um mútuo e profundo entendimento entre as várias partes da humanidade, o jogo do ponta-pé propaga sua separação e o governo o subvenciona “
Lima criticava os “favores e favorezinhos” que os clubes de futebol recebiam do governo para “criar distinções idiotas e anti-sociais entre os brasileiros , e longe de tal jogo contribuir para o congraçamento, para uma mais forte coesão moral entre as divisões políticas da União, separa-as” : segundo ele, os clubes de futebol seriam “portadores de uma pretensão absurda, de classe, de raça, etc” – haja vista que os defensores do futebol sustentavam ser “um sport que só pode ser praticado por pessoas da mesma educação e cultivo”(jornal Sports, de 6 de agosto de 1915 ) e reclamavam “que alguns jogadores não tinham o nível social de há uns anos atrás” (Jornal do Brasil, de 3 de maio de 1920).
Não eram apenas econômicas e sociais as distinções combatidas por Lima Barreto, mas também raciais, vedando aos negros participação nos grandes clubes de futebol: em 1921 quando o próprio presidente Epitácio Pessoa proíbe jogadores negros de fazerem parte do selecionado que ia à Argentina disputar um campeonato, Lima foi duro nas críticas, publicando no mesmo dia 1 de outubro de 1921 dois artigos — “O meu conselho” e “Bendito foot-ball” — no jornal A B. C., onde afirma que “quando não havia foot-ball, a gente de cor podia ir representar o Brasil em qualquer parte” e aponta o caráter nocivo do futebol para o país.“ É o fardo do homem branco : surrar os negros, a fim de trabalharem para ele. O foot-ball não é assim : não surra, mas humilha, não explora, mas injuria e come as dízimas que os negros pagam .”
Vendo nos sócios dos grandes clubes os herdeiros dos antigos senhores de escravos, Lima enxerga no futebol “uma das formas de continuação da dominação exercida durante décadas pelo regime escravista, onde se troca a violência pela humilhação de quem paga impostos para sustentar, com subvenções oficiais, um jogo ao qual não tem acesso”, o futebol aparece em seus textos como “ um poderoso instrumento de domínio utilizado por uma raça que se julga eleita por Deus graças às suas habilidades nos pés ; como a escravidão, sua única finalidade é criar uma separação idiota entre os brasileiros, perpetuando as desigualdades e continuando um passado de diferenciação e segregação” (artigo “O nosso esporte”, publicado no jornal A . B. C., de 26 de agosto de 1922 ).
Direta ou indiretamente, não há dúvida de que os literatos como Coelho Neto e Lima Barreto e suas polêmicas alimentavam um processo que anos depois faria do futebol, como o é hoje, uma verdadeira instituição nacional. A dinâmica da transformação do jogo em fenômeno nacional — com suas implicações sociológicas, políticas e culturais — no entanto, foi muito menos compreendida por Coelho Neto do que por Lima Barreto, que indignado com o fato de “indivíduos que não davam para nada “ serem transformados em verdadeiros “heróis nacionais”, refutava no último artigo escrito antes de morrer ( “O herói”, para a revista Careta de 18 de novembro de 1922 ) a lógica que fazia desses “pobres esforçados, que nada fazem para o benefício comum, injustas ‘glórias do Brasil’”.
realidade incontestável é que o futebol continuou – e continua -- ao longo do tempo, sua meteórica ascensão e disseminação entre todas as camadas e estratos, como ‘força esportiva’, ‘força social’, ‘força cultural’. Seguiu sua trajetória eletrizando todas as camadas sociais e sensibilizando escritores, artistas e intelectuais — de Graciliano Ramos, que o repudiava ("Futebol não pega, tenho certeza; estrangeirices não entram facilmente na terra do espinho", em 1916), a Orígenes Lessa,Fernando Sabino, que o inseriram em contos ; de Gilberto Freyre,um entusiasta de primeira linha, que incluiu o futebol em muitos de seus escritos, a Mario Filho – autor do memorável O negro no futebol brasileiro – e chegando ao auge da paixão futebolística ‘a serviço’ da literatura, nela integralmente enfronhada e estigmatizada, em José Lins do Rego e Nelson Rodrigues

... e em São Paulo
Por sua vez, na esteira e na órbita do pioneirismo que sempre caracterizou a cidade, São Paulo foi ‘o berço do futebol no Brasil”[o introdutor do futebol no Brasil,Charles Miller, descendente de ingleses e escoceses, era um paulistano nascido no Brás, aos 9 anos seguiu para a Inglaterra com a finalidade de estudar, e lá aprendeu - e bem - a jogar futebol. No ano de 1894, retornando de seus estudos na Inglaterra, trouxe na bagagem uma bola de futebol e começou então a catequizar seus companheiros de trabalho e de críquete - altos funcionários da Companhia de Gás, do Banco de Londres e Ferrovia São Paulo Railway, fundando em 1888 o primeiro clube de futebol do Brasil, o São Paulo Athletic, clube que congregava os britânicos residentes em São Paulo], a primeira cidade a organizá-lo e disseminá-lo em campos oficiais, pelas ruas e pelos terrenos baldios. Principalmente por causa dos imigrantes europeus,sobretudo ingleses,que — a exemplo do Rio de Janeiro — contribuíram para a disseminação dos esportes em geral e para fundação de clubes esportivos, a princípio de cricket e depois, de futebol.
Na verdade, nenhuma cidade brasileira como São Paulo apresenta tamanha precocidade na introdução do futebol: já no final do século XIX era praticado em clubes, empresas(de capital inglês) e escolas; em 1896, por exemplo, o velódromo da família Prado, na Consolação, foi reformado para abrigar partidas de futebol ; em 1902 a cidade organiza o primeiro campeonato de futebol do país — a primeira partida de futebol realizada no Brasil, dentro das regras oficialmente estabelecidas na Inglaterra em 1863, aconteceu na Várzea do Carmo, entre as equipes inglesas São Paulo Railway e The São Paulo Gaz, em 14 de abril de 1895 (jogo ganho pela primeira por 4 x 2); e o primeiro clube de futebol formado essencialmente por brasileiros foi o Mackenzie College, criado em 1898.
Em 1899 são fundados primeiro o S.C. Internacional, e quinze dias depois o S.C. Germânia. Em 1900, pode-se dizer, nasceu a verdadeira organização do futebol paulistano quando chegou, de volta de seus estudos na Suíça, o jovem Antonio Casimiro da Costa, que começou a lutar para a constituição de uma Liga dos clubes já existentes, e pela organização de um campeonato . Neste mesmo ano deu-se a fundação do Clube Atlético Paulistano; e em 1904 apareceu a Associação Atlética das Palmeiras — que até 1915 foi constituída por doutorandos, engenheiros e futuros advogados. Isso porque o futebol era o coqueluche da mocidade estudiosa de São Paulo, no início do século: quase que se limitava aos estudantes naquele tempo, quase todos filhos de famílias abastadas ; a verdadeira diversão domingueira da alta sociedade paulistana, não se compreendia então um acadêmico de direito sem ser integrante de um dos clubes já existentes. A classe dominava abertamente no Paulistano, Palmeiras, Mackenzie e Internacional: muitos rapazes, grandes craques do início do século, foram e são homens públicos, cientistas, diplomatas, jurisconsultos e engenheiros famosos: tornaram-se os ídolos máximos dessa geração Rubens Sales e Arthur Friedenreich, este considerado o primeiro craque do futebol brasileiro (e autor do primeiro gol da seleção nacional, em 1914).Em 1920 o futebol já dominava a cidade inteira -- memorável entre os fatos esportivos, foi a excursão do Paulistano à Europa em 1925(que inclusive propiciou o poema “E a Europa curvou-se ante o Brasil”, de Oswald de Andrade).
Estudiosos sugerem duas hipóteses para tentar explicar a razão pela qual São Paulo — que já contava desde o início com um espaço específico, o velódromo da Consolação — antecede o Rio de Janeiro na adoção do futebol: primeiro, o Rio já possuía um esporte de relativa popularidade, o remo, que o futebol somente conseguiu destronar por volta de 1910; segundo, por causa da índole de modernidade paulistana embrião da metrópole frenética que naquele momento melhores condições possuía para assimilar inovações, e dentre elas o futebol. E São Paulo foi a primeira cidade a atrair grandes multidões aos campos: de um lado, o futebol, como prática popular de entretenimento, insere - se na própria formação da classe operária paulistana, como elemento de sua cultura; de outro, certamente o grande número de imigrantes e operários contribuiu para a rápida popularização do futebol na cidade.
Mas um dos proeminentes vetores da popularização do jogo de futebol teria sido resultado direto da intervenção dos patrões, das autoridades, do Poder Público: no Rio, como contraposição à capoeira, já prática proibida; em São Paulo, a emergência e fortalecimento do movimento operário por volta de 1917 ‘revelou’ ao governo e aos empresários que a cidade precisava de “um esporte de massas”(sic) como antídoto contra as greves -- os operários seriam então ‘mandados a jogar futebol’, para o que os patrões “deveriam construir grounds”. O futebol seria assim um eficiente instrumento ‘disciplinador’ utilizado e patrocinado pelos industriais “para ordenar os trabalhadores e dinamizar a produção”, “um ensinamento de disciplina e de harmonia” — o esporte sendo muito mais uma imposição ou uma ‘dádiva’, muito menos prazer e desejo e iniciativa de quem o praticava. Ao mesmo tempo, em São Paulo os campos de futebol se constituíram em importante elemento na caracterização das vilas operárias, que eram “espaços de ordenação”: o futebol ajudava a manter o operário em ‘ordem e disciplina, livre do caos e da desordem’ e proporcionava aos trabalhadores ‘o relaxamento necessário para depois produzirem mais e melhor...’.
Em São Paulo, o Poder Público isentava os campos de impostos, os industriais construíam grounds, e a polícia deixava de reprimir os “rachas” em terrenos baldios, já era bastante difundida e rotineira a prática do jogo nas várzeas.Naquele ano de 1902 em que os paulistas organizam o primeiro campeonato de futebol no Brasil surgiram os primeiros campos de várzea, que logo se espalham pelos bairros operário; já em 1908/1910 a várzea paulistana congregava vários e concorridos campeonatos, de forma que São Paulo não é apenas pioneira nacional no futebol ‘oficial’, mas também (e sobretudo) no ‘futebol popular’. Não por acaso, surge em 1910 aquele que, dentre os grandes clubes do futebol brasileiro, foi o primeiro a se formar a partir de uma base popular: o Sport Clube Corinthians Paulista.
Um mais abrangente pano de fundo histórico registra que, pela necessidade de um reordenamento geral de todo o contexto social, o futebol passou a ser considerado como parte do processo modernizador e o desenvolvimento de práticas esportivas considerado uma forma de atenuar as tensões políticas. .Caracterizado já nas décadas de 1930/40 como um fenômeno popular e de massa, o futebol,assim como as atividades esportivas em geral, já era visto pelas elites governantes como um componente fundamental a ser atingido numa “cruzada disciplinadora”, correspondendo a um movimento cultural e político mais amplo, envolvendo tanto os interesses de disciplina social do Estado quanto a produção de uma identidade nacional (expressa e reforçada, por exemplo, pela participação da seleção brasileira de futebol na Copa do Mundo de 1938 ).
Nacionalismo e autoritarismo constituíam-se em eixos fundamentais na prática política e uma tarefa urgente se impunha: construir a nação brasileira. Para tal, o futebol, com sua extraordinária adesão popular, foi sem dúvida um excepcional instrumento. A relação dos esportes com a identidade da nação tornara-se decisiva , acionando a idéia de uma unidade nacional que tinha a seleção brasileira como uma das instâncias principais de representação simbólica, coincidindo com um projeto de configuração do Estado-nação de Getulio Vargas nas décadas de 1930 e 1940.
Nesse particular, por exemplo, a construção de estádios de futebol passou a constituir prioridade para sua disseminação e arregimentação de massas populares: em abril de 1940 foi aberto ao público, em São Paulo, o Estádio Municipal do Pacaembu, “de linhas tão imponentes quanto harmoniosas, maravilhosa obra coletiva que encarna plenamente a modernidade paulistana”, com o qual nasceu uma das principais tradições políticas do futebol brasileiro: a construção generalizada de estádios com recursos públicos .
Embora por volta de 1905 o futebol ainda fosse desconhecido para a ampla maioria dos brasileiros, em São Paulo já atraía grande interesse popular — tanto que até Monteiro Lobato, então acadêmico de direito, que numa carta a Godofredo Rangel, em 11.07.1904, escrevia: "(...) E cá estou de novo em São Paulo, mas ainda atribulado. Mudei-me para um quarto de frente na rua Araújo 26, com um lampião de rua bem junto à minha janela. Tenho luz de graça. E defronte há uma vizinha janeleira que já piscou. Em vez de namorá-la, meti-me no futebol –‘Palmeiras !’ Joguei vários dias seguidos e fiquei mais derreado que com as léguas do sertão. Estou cheio de pisaduras e dodóis. Isto deve ser o que na Vida intensa o Th. Roosevelt quer. O futebol empolgou-me de alma e corpo; escrevo crônicas de futebol e jogo. Diz o Tito que é mania - e diz-lhe o Raul:’Jacques, tu es un âne’. Seja como for, asseguro-te que o futebol apaixona e contunde".O mesmo Lobato de um discurso fervoroso em 1905 após assistir a jogos entre paulistanos e ingleses: "(...) Essa luta tinha para a população de São Paulo um significado moral dez vezes maior do que a eleição para um presidente do Estado (...) O último goal do Paulistano provocou a maior tempestade de aplausos jamais conhecida em São Paulo (...) É desta espécie de homens que precisamos. Menos doutores, menos parasitas, menos bajuladores, e mais struggle-for-life. Mais homens, mais nervos, mais corpúsculos vermelhos, para que um Camilo Castelo Branco não possa repetir que ele tem sangue corrompido nas veias e farinha de mandioca nos ossos".
Apesar disso, não conseguia suscitar grandes paixões que extrapolassem o âmbito esportivo. Intelectuais e escritores -- caso de Amadeu Amaral, Sylvio Floreal, Hilário Tácito -- apenas esparsa e timidamente o registravam em seus escritos: quando muito admitiam e exaltavam a plasticidade do jogo, a elasticidade das jogadas, a empolgação dos que praticam e assistem as partidas . Mais tarde, já pelo final da década de 1910 e início de 1920 em São Paulo dava-se a dedicação documental-historiográfica de Antonio Figueiredo e Leopoldo Santana , um relativo envolvimento de Menotti Del Picchia -- registrando-o em poemas, nos roteiros dos dois primeiros filmes do cinema brasileiro sobre futebol, “Alvorada de glória” e “Campeão de futebol”,ambos em 1931, e na frase “o Corinthians é um fenômeno sociológico a ser estudado em profundidade” -- referências de Cassiano Ricardo, a simpatia de Raul Bopp -- em artigo sobre o “élan magnético” que o atraía para o futebol -- e sobretudo o ‘fervor’ de Alcântara Machado --não só pelo famoso conto “Corinthians (2) vs. Palestra(1)”, e pela crônica “Notas sobre a visita do Bologna F.C” , mas por uma relação direta com a difusão dos esportes no Brasil, fundador da primeira Liga Atlética Acadêmica do Brasil, entidade poliesportiva -- o completo envolvimento de Francisco Rebolo -- artista plástico e jogador de futebol, autor de “Jogadores de futebol” (1936), e um dos pioneiros na luta pela incorporação do negro no futebol brasileiro -- a motivação de Candido Portinari -- em duas séries de trabalhos “Futebol em Brodósqui” (1933) -- dos artistas Rodolfo Chambelland (“Menino com bola”, 1914), Ismael Nery (“Em caminho do goal”,1917), André Lhote (“Football”, 1933) , Djanira (“Futebol”, 1948), Antônio Gomide (“Futebol no morro”, 1959).
O futebol posteriormente encontraria acolhida em muitos contos de João Antonio, Ignácio de Loyolla Brandão; ‘receptividade’ em escritos de Sergio Milliet, de Sergio Buarque de Holanda, Paulo Emilio Salles Gomes. – e especialmente em dois grandes intelectuais, Anatol Rosenfeld e Vilém Flusser. O alemão Rosenfeld em fins da década de 1930 auto-exilou-se no Brasil devido às perseguições sofridas na Alemanha hitlerista e aqui deu continuidade a sua vasta produção intelectual, escrevendo contos, poesias e crônicas, além de opinar sobre arte, sobre o pensamento europeu, sobre teatro, imprensa, rádio, filosofia, política ,antropologia — e sobre o futebol: no texto “O futebol no Brasil”, publicado originalmente em alemão no Anuário do Instituto Hans Staden em 1956, comenta sua introdução no país, preocupou-se em analisar os elementos sócio-econômicos do futebol, da ascensão das massas aos componentes típicos dos jogos de bola - o torcedor, o ídolo, o clube, explicando ao público germânico que “em terras brasileiras (...) entre os negros, mulatos e brancos pobres, havia um grande número de jogadores de primeira classe, seja porque os ajudava o talento natural, seja porque a ´sucção de subida´ e o remoinho das chances do futebol os envolvia e canalizava, seja porque eles não eram estudantes de medicina ou direito e freqüentemente não tinham uma profissão, podiam lançar toda a sua paixão no jogo; em suma, porque levavam o jogo a sério e ´não tinham nada a perder´. (...) Dar pontapés numa bola era um ato de emancipação(...)”. Flusser, filósofo tcheco, radicado em São Paulo na década de 1940, debruçou-se sobre o futebol por via do tema da alienação, que inclusive intitulou brilhante ensaio no qual contrapõe-se ao conceito de que o futebol exerceria somente uma função evasiva da realidade, ao contrário, vindo a constituir-se num elemento, isso sim, de engajamento por ter o futebol extravasado de sua seara original, como esporte e prática esportiva, para praticamente todas escalas -- sociais, culturais, antropológicas,sociológicas, políticas, econômicas ; chegou a formular o conceito de “um novo homem brasileiro, um homo ludens”.
Intelectuais paulistanos, paulistas e migrantes/radicados — como Décio de Almeida Prado, Nicolau Sevcenko, Waldenir Caldas, José Sérgio Leite Lopes, Francisco Costa, Luiz Henrique de Toledo, Fátima Martin Rodrigues Ferreira Antunes — que se dispuseram a buscar uma compreensão do futebol construíram uma percepção do esporte como uma ágil e poderosa forma de expressão do caráter nacional; uma codificação positivista da estrutura social brasileira: o indivíduo, valendo-se de características muito peculiares, sobressairia-se a quaisquer empecilhos à sua sobrevivência e/ou ao relacionamento social, e assim alcançaria o sucesso e aceitação coletiva.
O futebol interpretado sob a ótica da representatividade nacional, uma forma de se chegar a concepções sobre a brasilidade, colocando- o também no terreno da cultura popular, sob o projeto de construção de símbolos nacionais, que a música popular e o folclore já haviam tornado possíveis e que, naquele momento, por meio de uma ‘brasilidade esportiva’, o futebol também facultava. Refletiam e retratavam emblematicamente as tradução e decodificação sofridas pelo futebol ao longo das décadas de 1920, 1930 e 1940, metamorfoseando-se de esporte elitista estrangeiro em esporte nacional-popular.
Relevante observar especificamente o relacionamento dos intelectuais modernistas com o futebol, recebido de modo diametralmente oposto na primeira, na segunda e na terceira fase (assim Afrânio Coutinho caracterizava o ciclo modernista). O fenômeno futebolístico no Brasil dos anos de 1920 passou muito ao largo das preocupações missionárias dos primeiros, o esporte visto como “subproduto de importação, a adoção de mais um artigo de luxo, com sua linguagem integralmente inglesa e seu vestuário britânico desconhecido, provindo de uma matriz européia transplantada por uma elite anglófila e francófila, ávida por novidades e exotismos, típico da dependência cultural brasileira”; depois, já na década de 1930, o futebol interpretado sob a questão da representatividade nacional, uma forma de se chegar às suas concepções sobre a brasilidade; e no decênio seguinte, ao entrar em cena os regionalistas oriundos do Nordeste, a interpretação modernista colocando o futebol também no terreno da cultura popular, retomando o projeto modernista de construção de símbolos nacionais, que a música popular e o folclore já haviam tornado possíveis e que, naquele momento, por meio de uma ‘brasilidade esportiva’, o futebol também facultava. Gilberto Freyre, por exemplo, em consonância com a noção de antropofagia desenvolvida por Oswald de Andrade em seu manifesto de 1928, identificou no futebol um exemplo indubitável da capacidade do brasileiro de transplantar, de assimilar e de reinterpretar os inúmeros produtos que historicamente vinham importados e impingidos da Europa.
O modernismo pareceu à primeira vista lidar com certa cautela e muitas reservas, quando não, com explícita antipatia, diante do crescente e contagiante processo de popularização de um esporte de origem e teor eminentemente europeus. Mas a tradução e a decodificação sofrida pelo futebol ao longo das décadas de 1920, 1930 e 1940, metamorfoseando-se de esporte elitista estrangeiro em esporte nacional-popular, possibilitou aos escritores modernistas da segunda fase uma paulatina alteração no enfoque do fenômeno, ainda que não de uma maneira unânime e consensual.
De Mário de Andrade e Oswald de Andrade o futebol recebeu imediatamente crítica e repúdio – mas em ambos amenizando-se ao longo do tempo, muito mais em Oswald , sem nunca alcançar porém o engajamento empolgado . Mario de Andrade o via como “uma moda fútil entre tantas que aportam da Europa” em Paulicéia desvairada, “uma praga” em Macunaíma, não deixa de realçar em algumas crônicas a violência e o teor elitista do futebol permeado de expressões estrangeiras (a la Lima Barreto), embora na crônica “Brasil-Argentina”, em 1939, acentue a transformação verificada em torno do futebol, o processo de apropriação pela identidade da nação, chegando a adquirir – em uníssono com a tese de Oswald – um caráter antropofágico onde se afirmava a capacidade brasileira de deglutição, bem como de assimilação das influências estrangeiras e de sua transformação em expressões genuinamente nacionais.
Oswald de Andrade, por sua vez, referiu-se com uma certa simpatia – carregada de ironia – nos versos do poema “E a Europa curvou-se ante o Brasil”(em que refere-se à excursão do Paulistano à Europa em 1925), e em “Bungalow das rosas e dos pontapés”, sarcástico sobre a violência do futebol; a rigor, sempre combateu o futebol, como “veículo de alienação”, “ópio do povo”, inclusive elegendo para este confronto de idéias (reprisando o espírito de polêmica de Lima Barreto x Coelho Neto) José Lins do Rego– embora mais tarde fosse ligar-se a Mario Filho e a Candido Portinari justamente por causa do futebol...
Impõe-se, de resto, a especulação reflexiva sobre duas instâncias do mesmo núcleo de questão: primeira, por que o futebol em São Paulo, a cidade natal do introdutor do futebol no Brasil, a cidade onde fundou-se o primeiro clube de futebol do País, onde realizou-se o primeiro campeonato organizado de futebol, a cidade berço do ‘futebol de rua, de terreno baldio’, a cidade que produziu o primeiro craque do futebol brasileiro, não teve já em seus primórdios,por parte de seus intelectuais, a mesma acolhida entusiástica como, por exemplo, no Rio de Janeiro? E depois, como avaliar o comportamento dos modernistas — da “primeira, segunda e terceira fases” — com relação ao futebol ? Entende-se que os modernistas da primeira fase tenham visto no futebol, em seu início de implantação no Brasil, um elemento elitista, “burguês e estrangeirista, alheado dos aspectos considerados essenciais e originais da cultura brasileira”—mas por que, depois da avassaladora popularização do futebol, transformado a partir da década de 1930 (o ano de 1938 como claro ponto de inflexão) em ‘símbolo de identidade nacional’, não se engajaram em sua aceitação, com o entusiasmo esperado, como elemento essencialmente ligado a seus ideais de nacionalidade, ou pelo menos não o encararam devidamente como um instrumento para chegar às suas concepções sobre a brasilidade, a exemplo do que tinham feito ao acolher, por exemplo, o folclore e a música popular ? O futebol tinha tudo para cair nas graças também dos modernistas da primeira fase (muito além dos registros de Alcântara, Menotti, Bopp, Cassiano) lado a lado com os da segunda fase (os do Nordeste) e da terceira fase , e mesmo dos ‘pós-modernistas’ — mas deu-se apenas na efêmera simpatia de ordem plástico-estética de Mario de Andrade e na contestação de cunho ideológico de Oswald de Andrade.

e por que o futebol empolga e ‘joga’ tanto com paixões e ódios ?

São muitas as razões ,sob várias órbitas, porque o futebol, no Brasil, empolga e apaixona tanto, a todas as camadas sociais, todas as raças, todas as escalas culturais – de trabalhadores a intelectuais, de operários a literatos, etc – a todas as esferas :
• por ser extremamente lúdico(até criando um “homo ludens”- sic), por sua plasticidade , que permitem e estimulam o drible,a ginga,a finta,, o ‘jogo de cintura’, o malabarismo, a malícia,a dança – elementos bem incorporados a ‘brasilidade’.
• pelo contato físico direto, combate corporal, choque – a excitar o desejo de conquista,poder, dominação, inclusive com conotações sexuais [sic]: a violência que acompanha o futebol, quase que a ele inerente – claro, uma distorção do espírito que deve primar a prática de esportes – está ligada a esses conceitos e elementos
• por resgatar e expressar a katarsis ,individual e coletiva—almejada e idealizada pela Filosofia grega e outras; ou mesmo de ‘anestesiamento’(como preconizado pelos patrões e empresários em São Paulo no início do século XX) e torpor
• por permitir, como nenhum outro esporte , a ocorrência de resultados imprevistos(em que o time mais fraco em tese vence o mais forte, onde a chamada 'zebra' se faz presente): incerteza,imprevisibilidade, 'mistério', suspense, que guardam nítida - e psicologicamente explicável -- relaçãoilação com, p. ex. o gênero (romance,filme,etc)policial, de suspense(hitchcookniano- sic),de terror, etc.: quem matou,quem é o assassino? que time vai vencer? ; quem se salvará,quem matará o monstro?que time sairá classificado,qual será campeão?-etc.
• por emblematizar,no caso da seleção brasileira, elementos de identidade nacional, pátria, etc (como,p.ex., se deu e foi incentivado ,como política pública, na década de 1930 – o Estado Novo- e depois na de 1970 – a ditadura militar 64-85)
• pela necessidade de identificação e aceitação social – eou ‘familiar’ - por meio de um clube ou time (um processo familiar, de pertinência : “preciso pertencer a tal clube para ser aceito”).

Direta e indiretamente, não há dúvida de que enaltecimentos, louvações, críticas, polêmicas e dissidências, ao longo do tempo, alimentaram um processo que faria do futebol, como o é hoje, uma verdadeira instituição nacional.
A realidade incontestável é que o futebol continuou – e continua – ao longo do tempo, sua meteórica ascensão e disseminação entre todas as camadas e estratos, como ‘força esportiva’, ‘força social’, ‘força cultural’. Esporte mais popular, no Brasil e no mundo, seguiu sua trajetória eletrizando todas as camadas sociais e sensibilizando escritores, artistas e intelectuais.
Persiste o futebol, e assim será ad eternum, sempre provocando prazer e dor, polêmicas e alegrias, brigas, tumultos, conflitos, prazer, tristeza, paixões e ódios — nos campos, nos estádios, nos gramados, nas arquibancadas,nos terrenos baldios, nas várzeas, nos corações e mentes de todo o País.