quarta-feira, 19 de novembro de 2008

O ‘Bruxo” e a “consciência negra"



Machado de Assis nunca deixou de exprimir seu mais absoluto horror à escravatura – fosse como funcionário da Diretoria da Agricultura do Ministério da Agricultura (órgão que tratava da política de terras e da aplicação da Lei do Ventre Livre, de 1871), na qual emitiu centenas de pareceres e réplicas no sentido de fazer cumprir a Lei e o preceito de liberdade para os filhos de escravos nascidos , fosse em muitos artigos e crônicas e,em especial, em romances e contos. Exatamente ao contrário da equivocada e distorcida interpretação --que ,como toda interpretação, é uma ‘leitura’,sujeita pois a melhor avaliação e até mesmo contestação --difundida ao longo dos anos,no sentido de não ter ele se integrado à causa abolicionista (sic) nem ter inserido o negro, ou a negritude,ou a condição do negro, em seus escritos, nem ter nenhum ‘herói negro’ entre os protagonistas de sua ficção, como se isso fornecesse convincente e taxativo certificado de consciência política , como se fosse elemento imprescindível na construção de romances e contos de qualidade. Os detratores teimam em julgar o homem com base nos raramente compreendidos e assimilados artifícios do ficcionista e do cronista – ainda mais quando este utiliza ad nauseam os recursos da sutileza, do subterfúgio, da dissimulação.
Machado fez da escravatura objeto crítico – por vezes desenhada pelas ‘entrelinhas’, por vezes direta, nada oblíqua ou dissimulada -- de crônicas, de poemas, de peças teatrais, de contos, além de torná-la pano de fundo de alguns romances, tanto os primeiros como aqueles pós-1880. Já é mais do que tempo de obrigatória releitura da equivocadissima omissão machadiana em relação à escravidão e às relações inter-raciais no Brasil do século XIX , de seu absurdamente propalado “aburguesamento” e de “denegação das origens” em sua obra.
A tese da ‘alienação’ machadiana desmorona ao se examinar o naipe de contos em que a “iníqua escravidão” é exibida criticamente, nas linhas e entrelinhas, com todos seus horrores ; é solapada ao se ler,por exemplo, as crônicas de 18.07.1864, de 04.04.1865,01.10.1876,15.06.1877,14.07.1878,07.11.1883,23.111885,30.08.1887,27.09.1887,11.05.1888,19.05.1888,20-21.05.1888,27.05.1888,01.06.1888,26.06.1888,14.05.1893,04.11.1897 ; perde vigor ao se deparar com os poemas “Sabina”(1875) e “13 de maio”(1888) , ou ao conhecer a crítica teatral à peça “Mãe”(1860), de José de Alencar, e o texto “O teatro de José de Alencar”(1866); além das referências,citações,comentários e verdadeiros libelos expostos na antológica novela Casa Velha(1885) e nos romances Ressureição (1872),Helena(176),Iaiá Garcia(1878),Memórias póstumas de Brás Cubas(1881), Quincas Borba(1891),Dom Casmurro(1899) – observando-se o quanto o processo histórico que resultou da lei de 1871, assim como suas conseqüências, encontra-se no cerne da concepção desses seis romances -- Esaú e Jacó(1904) e no derradeiro Memorial de Aires(1908) – cujo centenário de publicação deve constituir em imperdível oportunidade de ,primeiro, conhecer uma obra-prima, das maiores que a literatura brasileira já produziu , além de acompanhar a encenação da decadência e extinção da própria escravocracia, personalizada no Barão de Santa-Pia,sob uma narrativa revestida de contundente historicidade e , como o condizente grand finale da obra de um portentoso escritor, finalizada pela mensagem ressaltando o papel político da literatura como guardiã dos fatos passados e da memória coletiva de um país.
A crônica, até mesmo por sua própria natureza de dirigir-se diretamente ao público-leitor, na verdade foi a seara onde Machado melhor e mais clara e veementemente expressou sua implacável crítica ao escravagismo – mormente na série “Bons Dias!”, publicada na Gazeta de Notícias ininterruptamente de 05 abril de 1888 a 29 agosto de 1889 (per se como se sabe um período crucial da história brasileira, entre a concretização da Abolição e a emergência da República), de todos os conjuntos croniquescos de Machado aquele de mais contundente teor crítico,fosse à escravidão fosse ao novo regime , aquele que registra opiniões nunca expressadas por ele com tanta clareza e coerência, tanto que valeu-se ‘sensatamente’ do anonimato (somente descoberta autoria de Machado, por Galante de Souza, na década de 1950!),dada não só a explosiva complexidade do momento mas também ao risco,diante do delicado tema da república , que um funcionário público graduado da monarquia pudesse correr.
Em algumas delas, escritas com sua peculiar ironia ácida e cortante , evidencia-se a crítica machadiana à hipocrisia política, manifesta naqueles parlamentares que intitulavam-se abolicionistas mas votavam sempre a favor dos senhores – o que exibe,sob outro viés, a inquestionável atualidade de Machado [neste particular, aliás, convém saber – como ressalta o historiador José Murilo de Carvalho, in D. Pedro II,2007 – que os políticos de todos os partidos ,até mesmo os liberais e os republicanos, não se opunham à escravidão].
Na verdade, e sob o espectro mais geral, Machado foi um crítico contundente da sociedade e das instituições brasileiras, e escreveu muito sobre política , e até mesmo sobre economia.Tinha,sim senhor, opiniões políticas — era um monarquista liberal, não apoiava a República -- e é possível observar a política brasileira de sua época através de seu olhar literário. Raymundo Faoro (em A pirâmide e o trapézio) sentencia que pode -se vislumbrar toda a sociedade brasileira do século XIX na obra de Machado : tanto na ficção quanto na não-ficção, arrancou da História a própria substância de suas narrativas e textos , utilizando uma série de elementos políticos -- escravidão, liberdade, golpe de Estado, censura,aparelho policial, autocracia absolutista,totalitarismo, etc – na elaboração,em sua escritura literária, de uma crítica da ideologia brasileira e de uma teoria política avançada, a qual no campo dos estudos literários não foi adequadamente percebida pelos especialistas. Há de se enfatizar ainda que, a par de outros aspectos, uma das grandes preocupações de Machado, uma espécie de linha-mestra, fulcro e fio condutor de sua produção não-ficcional centrava-se na questão da identidade nacional — preocupação expressa claramente nos ensaios “O passado, o presente e o futuro da literatura” (ainda em 1858), “Instinto de nacionalidade”(de 1873) e “Nova geração”(1879) e na essência de seus artigos e crônicas.
Machado criou crônicas nos mais diversos veículos, séries, formatos e disfarces, desde 1858, em O Paraíba (de Petrópolis), seguindo-se colaborações para o Correio Mercantil (1859-1864), para O Espelho (1859-60); para o Diário do Rio de Janeiro (1860-63: “Comentários da Semana”; 1864-67: “Ao Acaso”), O Futuro (1862-63), A Semana Ilustrada (1865-75: “Crônicas do Dr. Semana”,”Correio da Semana”, “Novidades da Semana” , “Pontos e Vírgulas”, “ Badaladas”), Ilustração Brasileira (1876-78: “Histórias de 15 dias”, “Histórias de 30 dias”), O Cruzeiro (1878: “Notas Semanais”), Revista Brasileira (1879), Gazeta de Notícias (1881-1900: “Balas de Estalo”, “Gazeta de Holanda”,“Bons Dias!” e “A Semana”) e para a Imprensa Acadêmica (1888)—com uma produção de 628 artigos.A par da quantidade, a explícita e intrínseca qualidade textual fizeram da crônica machadiana um referencial para os praticantes do gênero nos anos finais do século XIX e início do século XX (modelo que somente encontraria um diferencial em Lima Barreto, na década de 1910, criador este de uma novíssima linguagem na não-ficção e na ficção, numa crucial e histórica inflexão a moldar a própria linguagem literária brasileira por todo o século XX até os dias de hoje).Machado fez da crônica mais do que simples jornalismo, superior ao comum do gênero – haja vista o que Artur Azevedo sentenciou em artigo em O Álbum,janeiro 1893 : "(...) Atualmente escreve Machado de Assis, todos os domingos, na Gazeta de Notícias, uns artigos intitulados A Semana que noutro país mais literário que o nosso teriam produzido grande sensação artística", a atestar o quanto dotou a crônica dos elementos de verdadeira literatura.
As crônicas machadianas possuem , em si, estrutura,forma e encadeamentos consistentes e complexos, além de plena interação com os contextos histórico, político,econômico, social,cultural,urbano sob os quais foram elaboradas : revelam cadeias de pensamento e reflexão em muitos aspectos, passagens e nuances intertextualizados, ou que viriam a se intertextualizar com elementos,ambiências e situações de romances e contos.
Em outro viés, justamente os recursos da ficção literária, sempre propícia a esse fim, foram os instrumentos que lhe permitiram expressar com nitidez seu total e visceral repúdio ao sistema escravocrata do Brasil do século XIX. Por meio de alguns de seus contos, é possível observar as relações inter-raciais de sua época através do olhar literário, abordando as tensas relações,inclusive as de ordem afetiva e sexual, entre os membros da família patriarcal típica do século XIX e seus criados negros e abrigando trama,ambiência, personagens e ‘ideologia’ inerentes à questão escravagista.
Importante notar que se o tema é pouco, ou apenas ‘tangencialmente’ e superficialmente tratado nas obras do período pré-Abolição, depois adquire tamanho vigor temático, tramático ,narrativo e de linguagem , que induzem a considerar uma espécie de ‘desforra’ de Machado quanto a uma questão que não pudera até então abordar como merecia, e como ele almejava. Com efeito, no período pós-1888,vale dizer já implementada a Abolição, as coisas podiam ser ditas mais clara e contundentemente, e a tal, Machado – com sua plena consciência histórica,política e ideológica -- não se furtou.
O primeiro dos contos desse naipe, “Frei Simão” - publicado originalmente no Jornal das Famílias em 1864 - se nas linhas narra uma história de amor,traçada em termos melodramáticos – um jovem de família rica que se apaixona pela criada,negra – traz as tinturas subjacentes do comentário machadiano ás relações entre indivíduos ,mais que de classes sociais, de etnias diferentes, e mais: a aparente simplicidade da narrativa embute um teor de modernidade (isso em 1864 !) expressa no expediente da fragmentação das memórias inéditas de Simão, a revelar uma história verdadeira, até então oculta nas linhas – como que significando a impossibilidade do autor ma em utilizar a linguagem adequada para exprimir o autoritarismo patriarcal do pai de Simão e a crueza\crueldade da condição do escravo(Helena).
“Virginius” – também publicado originalmente no Jornal das Famílias em 1864 - encarna com sutileza a dificuldade – quase impossibilidade – de expressão literária de tema tão delicado, mas exibe com todas as tintas a brutalidade e desumanidade do regime escravista, personificadas na violência e covardia de Carlos, ironicamente filho do pai de todos, um dono de escravos bondoso. Machado expõe com todas as letras e tintas a representação da crueldade inerente a relações inter-raciais de seu tempo—inclusive deixando implícito o entendimento do estupro como formas de escravidão.
“Mariana” abriga , de modo mais incisivo, o assunto escravidão – e de forma tão mais realista que veio a ser publicado em duas versões – a primeira, em 1871- no Jornal das Famílias - na qual Machado utiliza muito mais contundência no tratamento do tema “perigoso” que nas obras anteriores ( afinal, o ano é o da publicação da Lei do Ventre Livre, a permitir talvez que algo mais pudesse ser dito...), mas aliado,esse tom mais contundente, à contumaz estratégia da dissimulação,aqui temperada de sarcasmo: o homem branco tem a palavra para ele mesmo expor sua insensibilidade e descaso com relação aos negros, o autor (Machado) denunciando explicitamente a má consciência dos senhores no momento de uma crise “histórica” que mobilizava toda a nação – inclusive a protagonista,assim como a personagem Elisa, personificando a submissão tanto feminina quanto étnica ; a segunda versão, em 1891 – na Gazeta de Notícias - com o texto totalmente reelaborado , expressando a maior liberdade então concedida a se escrever sobre o assunto (além do fato de ser publicado no jornal que ,por todos os motivos e aspectos, permitia maior ‘autonomia’ a Machado).
“O caso da vara”, publicado originalmente na Gazeta de Notícias , 1891, não fosse por seus próprios atributos temáticos e narrativos , constitui uma das obras mais notáveis , porque emerge com toda sua contundência em um período digamos pouco fecundo de produção contística de Machado. O conto pode ser lido não só como uma história irônica, cuidadosamente estruturada, de conflitos internos versus ações reais – que são vencidas pela torrente dos seus pensamentos, medos, crueldades e dramas, conduzindo a narrativa até um desfecho enigmático-- mas sobretudo como uma perturbadora peça dramática com todas as características da tragédia clássica. Tal como esta, evidencia-se a predileção de Machado de Assis por situações universais que revelam a feição trágico-cômica do comportamento humano, numa narrativa carregada de implicações morais.
“Pai contra mãe”, não publicado em periódico mas sim na coletânea Relíquias de casa velha,1906, abre-se com palavras extremamente frias e objetivas, raríssimas vezes empregadas por Machado em sua ficção. É um dos contos mais perturbadores, um grito contra a escravatura, ainda que – e nisso reside sua profunda dramaticidade – seja um grito abafado, amordaçado, mas carregado de emoção : um tipo de emoção estritamente pessoal,diga-se, porquanto parece Machado intentar nele exprimir sua própria condição original de mestiço , uma dramática ambiguidade que se o perseguiu,segundo algumas interpretações, durante toda a vida , quase nunca transpareceu na obra literária.
É um texto arrepiante na sua violência controlada, na sua perfeita construção da estrutura literária ; quer ensinar-nos o que é o horror da escravatura, mas para chegar a isso utiliza o que há de mais chocante para o leitor: a apresentação do horror como ‘normalidade’.Machado avisa desde o primeiro parágrafo, quando interrompe a fria descrição dos instrumentos de tortura, para se dirigir diretamente ao leitor e lembrar que “era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco e alguma vez o cruel.”
Ficção e realidade, ficção e história, ficção e sociedade brasileira constituem fulcros sempre presentes na obra machadiana.Em boa parte de sua ficção e da não-ficção Machado oferece ao leitor uma interpretação satírica, por vezes alegórica, desnudando mitos e certezas, aparências e disfarces, dilemas e mentiras -- sob o mesmo clamor crítico-satírico de seu olhar ,por vezes direto e transparente,por vezes machadianamente oblíquo e dissimulado, feito testemunho incomparável sobre a vida política e institucional brasileira do século XIX.

domingo, 16 de novembro de 2008

Os literatos e a República


a propósito deste 15 novembro 2008

O declínio do Império coincidiu com a penetração dos estilos pós-românticos no Brasil — simultâneos à ascensão das classes médias urbanas por força do processo da gradativa metamorfose de uma sociedade rural para urbana. Em sua luta pela aquisição de status, segmentos da classe média passaram a prestigiar valores essencialmente burgueses, como o saber e agilidade intelectual — até porque já era uma tradição do próprio Ocidente, como um todo,a valorização de virtudes intelectuais e o escritor objeto de grande consideração social e posição cobiçada por muitos filhos da classe média. Um exame da origem social de nossos escritores no período pós-romântico revela que a porcentagem de autores saídos da classe média, até mesmo da baixa classe média, aumentou consideravelmente com relação à era romântica — caso de José de Alencar, Gonçalves Dias, Álvares Azevedo, Fagundes Varela, Castro Alves. Em contrapartida, Machado de Assis, Aluisio de Azevedo, Cruz e Souza, Olavo Bilac, Silvio Romero e Lima Barreto vinham todos de lares remediados : para estes, uma vitória nas letras equivalia a uma promoção social.
A valorização da inteligência ,a par de possibilitar uma “profissionalização da literatura” , resultou na inevitável elevação do ‘nível mental da literatura’: a cultura geral dos pós-românticos é bem mais ampla que a de seus predecessores. Munidos de informação filosófica (e científica) bem maior, os autores desse período deram um sentido universalista à literatura brasileira, ‘desprovincianizando’ o nacionalismo romântico de antes. Esse universalismo, que atingiu o auge exatamente no Pré-modernismo, 1900-22, se de um lado contribuiu para assegurar à literatura brasileira um certo “tom lúcido e adulto” — para muitos,lastreado em influências estrangeiras e carregado de estrangeirismos temáticos e estilísticos — de outro tornou-se impermeável à captação autêntica da realidade nacional : e nisso,Lima Barreto foi um dos dois escritores (o outro, Augusto dos Anjos) a conseguir escapar a esse processo de desnacionalização da literatura brasileira.Isso explica, em parte, sua postura ‘marginal’, crítica, opositora, rebelde, e sua literatura de ‘contestação’.
Ao mesmo tempo, a conjunção dessa impermeabilidade à realidade com o universalismo ante-modernista fizeram comprometer, na imensa maioria dos autores , a vitalidade do estilo, em troca do emprego de linguagem, digamos, ‘ornamental’. No contexto republicano, recém-vigorante, a ascensão da classe média pela literatura, por via do domínio das técnicas e formas de expressão, fez com que o escritor absorvesse valores aristocráticos, desprovidos de visão crítica do real — exceção (outra vez ) a Lima Barreto, Augusto dos Anjos, Cruz e Souza, Aluisio de Azevedo: daí a torrente do parnasianismo, com seu jogo de estilo e excessos formais — de que Coelho Neto, por excelência, é “epígono prolífico e corifeu de uma literatura comportada , conservadora, acadêmica” [e contra o que o modernismo reagiu, vitoriosamente...], como sentenciou o crítico literário e ensaísta José Guilherme Merquior .
O certo é que o advento da República e a chegada do século XX , “o século da modernização e do progresso”, como se propalou à época, trouxeram novas formas e modos de o escritor se relacionar com a literatura, sob um processo algo ‘compulsório’ de aburguesamento e ‘mundanismo’ — de resto, condizentes com o ‘espírito geral’ que regia o sistema republicano que se pretendia implementar — decorrentes do esvaziamento do filão combatente contra a escravidão e a monarquia. E foi, paradoxalmente, o processo de arrivismo bursátil e de especulação mercantil -- gerando incremento de vultosos recursos , provocando a modernização da cidade, urdindo o que se denominou Regeneração, construindo a imagem de “uma sociedade ilustre e elevada” -- que propiciou aos intelectuais malogrados uma espécie de atavio : passaram a ser vistos pela sociedade como ‘símbolos de ilustração’, ‘expoentes da cultura’, propiciando, entre outros aspectos, o desenvolvimento do ‘novo jornalismo’, ao qual os literatos se entregaram de corpo e alma .
A adesão maciça dos escritores ao jornalismo, exercendo inevitavelmente efeitos negativos sobre a criação artística — falou-se em “vazio de idéias”-- obrigou os escritores a uma redefinição de suas posições intelectuais e uma clivagem em seu universo social. Deflagrava-se com todas as letras e tintas a belle époque cultural, com o conseqüente processo de banalização e neutralização da força cultural da literatura, o intelectual descaracterizado e ‘dissolvido’ em meio a sociedade, as facilidades da nova vida social tendentes a extinguir o engajamento dos intelectuais que fizeram a República. O novo espírito “agitado e trêfego” que tomou conta da cidade produziu “o recolhimento dos autores em estéticas e poéticas evasivas”, no entender de José Veríssimo, os intelectuais irreversivelmente assimilados pela nova sociedade construída pela República abrindo espaços para a mercantilização e banalização da própria literatura – vista agora como “o sorriso da sociedade”... Entrou-se de cheio no espírito mundano da belle époque, atingindo seu auge na primeira década do século.
A literatura típica da belle époque,porém, era estéril em termos nacionais,ainda que seu modelo cosmopolita europeu se coadunasse com a própria fachada da época: era uma literatura articulada com o modo de vida das elites urbanas europeizadas,fomentador do consumo, do excesso,da sensualidade,do aristocratismo; de extrema superficialidade e caráter preciosístico , uma coligação de alta sociedade e alta cultura. Nesse aspecto, Lima Barreto tinha a chave para entender e interpretar o Rio de 1900 : o bovarismo , que apontava para as fantasias centrais que compunham o significado dessa época.[Lima Barreto -- para quem o bovarismo era uma atitude mistificatória típica da nova elite, extremamente prejudicial para o país, “o poder partilhado no homem de se conceber outro que não é, o afastamento entre o indivíduo real e o imaginário,entre o que é e o que acredita ser” -- aplicou esse conceito tanto literariamente – no romance Triste fim de Policarpo Quaresma e nos contos “A biblioteca”, “Lívia” e “Na janela” aparece como a própria essência dos textos – quanto socialmente : segundo ele, a República estava toda imersa em atitudes bovaristas e ,pior, os próprios intelectuais, teoricamente dotados de maior capacidade e descortínuo crítico, mergulharam desde o início numa militância ufanista,destemperada, de otimismo ingênuo ; e esse ufanismo bovarista era uma forma terrível de se alienar dos graves problemas do país.]
Todo esse processo, por uma razão ou outra , trouxe a necessidade de adesão quase maciça dos literatos, a par das novas formas e modos de praticar a literatura, ao jornalismo — que se constituiu no fenômeno cultural mais marcante da virada do século XIX para XX. O significativo desenvolvimento dos meios técnicos da imprensa, iniciado na verdade em meados do século XIX, permitiria o crescimento e melhoria qualitativa dos jornais e o nascimento de muitas revistas ilustradas — ambos incluindo matérias literárias.
Por essa época, tanto os jornais como as revistas buscaram mais intensa e concretamente atingir a classe média urbana que então ia se formando e consolidando com o advento da República. Jornais e revistas, além do compromisso de informar e divertir, estavam engajadas num movimento de ‘democratização’ cultural : periódicos como Gazeta de Notícias, Diário do Rio de Janeiro,O Paiz, Diário Mercantil ,Correio da Manhã, Jornal do Commercio,Jornal do Brasil, Rio-Jornal, A.B.C. e as revistas O Malho , Revista da Semana, Kosmos, A Renascença , FonFon! ,Revista Contemporânea (essas duas caracterizadas como “simbolistas”), Careta , Ilustração Brasileira, A Cigarra , Revista do Brasil, Dom Quixote, Paratodos, O Cruzeiro, incluíam muita matéria cultural, como reportagens sobre exposições de artes plásticas, crítica literária, música, contos, crônicas, poesia, teatro e cinema . Quase todas as revistas não conseguiram sobreviver por muito tempo e terem vida longa — exceção apenas a FonFon! e a Careta, que chegaram , não ininterruptamente, até à década de 1970.
A maioria dos jornais e revistas (tanto do Rio de Janeiro quanto de São Paulo) acolhia ,e pagava , colaboração literária , o que propiciou a escritores e literatos terem publicados seus trabalhos e ter uma fonte de recursos — para muitos, a única — e um chamado “second métier” condigno. Vale registrar que a imprensa propiciou a mudança para a metrópole de muitos intelectuais que não logravam realizar-se literariamente em suas cidades e regiões de origem : este, aliás, foi o caso de Coelho Neto, oriundo do Maranhão.
A rigor, quer no âmbito do jornalismo quer (mormente) da literatura, os escritores, sob pena de caírem em ostracismo cultural e profissional e financeiro,tiveram de em maior ou menor grau se submeter à preferência ou gosto dos leitores da época : a necessidade de se expressaram no mesmo diapasão da cidade contagiada pelos anseios de modernização e marcada pela ânsia do enriquecimento rápido fizeram-no adotar estilo, linguagem , forma e conteúdo mais superficiais e mesmo descartáveis, “adequados ao gosto do consumidor pequeno-burguês formado pela República”. E nisso, Coelho Neto parecia “talhado como ninguém”, comenta Alfredo Bosi,”para polarizar as características do gosto que se atribui ao leitor médio da Primeira República, um leitor que julga amar a realidade quando em verdade não procura senão as suas aparências menos triviais ou menos trivialmente apresentadas; um leitor que se compraz na superfície e no virtuosismo, um leitor em suma fundamentalmente hedonista. As qualidades de Coelho Neto ajustavam-lhe como a mão e a luva”.
Com o tempo, gradativamente,os jornais foram adquirindo um caráter cada vez menos doutrinário — que privilegiava a publicação de artigos e editoriais de opinião — e mais ‘informativo’, a favor do noticiário e da reportagem: incrementavam-se as notícias de polícia (que antes não mereciam mais do que algumas linhas) : surgia o noticiário esportivo, até então inexistente, exatamente para servir e atender o gosto do público que então começava a ser ‘conquistado’ pelos esportes em geral e pelo futebol em particular — tanto que propiciou a criação de semanários especializados : Sport Ilustrado, Época Sportiva, Sportmen.Com isso, determinou-se uma redução da colaboração estritamente literária dos escritores, em termos de contos, novelas, poesia — embora continuasse intensa a explícita colaboração em crônicas e artigos ,que ajudou a promoção e prestígio de Machado de Assis, Olavo Bilac, José de Alencar, Artur Azevedo,Gonzaga Duque, Coelho Neto.
A exemplo de quase todos literatos,mas por outros vieses, foi também no jornalismo que Lima Barreto encontrou o meio, forma,veículo e habitat para exercer sua crítica. Mas sua atuação nos jornais ,no entanto, difere inteiramente da de seus contemporâneos da boemia dourada. Depois de esporádicas colaborações no jornal humorístico Tagarela e no semanário O Diabo, iniciara profissionalmente a vida jornalística no grande Correio da Manhã, em abril de 1905, aos 24 anos de idade, com uma série de reportagens sobre o desmonte do Morro do Castelo, que viria a dar origem à brilhante criação ficcional na novela Os subterrâneos do Morro do Castelo, somente publicado em livro no ano de 1999 (editora Dantes, Rio de Janeiro), porém seu amor pela liberdade e o horror em transigir com o poder já o tinham levado a organizar em 1907 – quando também era redator da Fon-Fon -- com o jornalista Alcides Maia, a revista Floreal, que circulou até 1912 ; ainda assim,é colaborador de Gazeta da Tarde em 1911, passa a cronista do Correio da Noite em 1914 - interrompendo no final de 1915 para passar à Careta , e a partir de 1916 também no semanário político A. B.C.; em 1917, intentou repetir o ideal de 10 anos antes , na Floreal, criando a revista Marginália, cujo objetivo seria “resguardar para os escritores, normalmente presos aos interesses e susceptibilidades das grandes empresas dos nossos quotidianos, revistas e magazines, independência e autonomia intelectual” . Além disso, em 1917 tornou-se persona non grata à grande imprensa, provocado pelas críticas contundentes que no recém-publicado Recordações do escrivão Isaias Caminha formula ao jornalismo como um todo, a certos jornalistas e principalmente ao então poderoso Edmundo Bittencourt, dono do Correio da Manhã — assumindo a partir daí integralmente sua preferência irrevogável pela imprensa dita ‘alternativa’, libertária, fora do alcance do poder exercido pelos donos dos grandes jornais.
Depois, mesmo doente, continuou a escrever na imprensa libertária : nos jornais A .B.C., Brás Cubas, Rio-Jornal, Hoje, O Debate ; nas revistas Careta ,Revista Contemporânea (uma revista simbolista), A Renovação .Colaborou também para jornais revolucionários do Rio de Janeiro – como a Voz do Trabalhador, órgão da Confederação Operária Brasileira, onde escrevia sob o pseudônimo de Isaias Caminha (foi nessa publicação, a propósito do 1 de maio de 1913, que Lima explicitou e fez pública sua adesão ao anarquismo) — de São Paulo e até do Rio Grande do Sul, como O Parafuso, A Lanterna (que se autodenominava “anarquista”) , O Cosmopolita, A Patuléia, A Luta. Todos esses formavam o conjunto de maior teor explícito de crítica política e social aos problemas do País e à República.
De um modo geral, frustrados a expectativa e o entusiasmo iniciais despertados pela República , os intelectuais desistiram da participação política ativa, militante, que muitos tiveram no advento do novo regime (vide capítulo “Lima Barreto e a política”) e passaram a se concentrar na literatura e em parte no jornalismo ‘croniquesco’,dedicando-se — com as raríssimas exceções de Lima Barreto e Euclides da Cunha — a produzir uma literatura de linguagem empolada, o ‘clássico’ calcado em expressões cediças e de figuras de efeito, cheia de arabescos estilísticos — uma literatura impregnada de vocábulos garimpados, do virtuosismo lingüístico e verborrágico,expressão da frivolidade dominante. Uma literatura como “o sorriso da sociedade” de que fala Afrânio Peixoto : “A literatura é o sorriso da sociedade. Quando ela é feliz, a sociedade, o espírito se lhe compraz nas artes e, na arte literária, com ficção e com poesias, as mais graciosas expressões da imaginação(...)”.
Exemplo ilustrativo da frivolidade dominante ,proliferavam então as conferências literárias — no que, aliás, Coelho Neto teve atuação marcante : um dos mais famosos salões,em 1905, tinha lugar em sua casa, reunindo escritores, músicos, pintores, cantores, escultores; e eram dele,de Olavo Bilac, Medeiros e Albuquerque, as mais concorridas conferências , predominante a presença de senhoras e mocinhas para ouvirem palestras sobre “a água”, “o fogo”, “a noite”, “a tentação”, “o dia”, “a rua”, “a mão e o pé”
Coelho Neto era quem sobressaía como “a grande presença literária entre o crepúsculo do Romantismo e a Semana de 22. De um modo geral, os estudiosos da literatura brasileira concordam em que ninguém como Coelho Neto encarnou “mais dramaticamente” o problema da forma. Romântico por inclinação e formação natural, realista em algumas obras, simbolista em outras, sobretudo parnasiano na essência da maioria de seus escritos, a Coelho Neto na verdade nunca faltou capacidade criadora, mas ele próprio a relegou a segundo plano em sua obsessão da escrita de efeito, obsessão que o levou a procurar seguir todas as correntes literárias das épocas em que viveu: somente no fim da vida rebelou-se contra a moda e os modismos — quando estes, com o Modernismo, significou precisamente a reação contra ‘a idolatria pela forma’. Com tais ‘deficiências’ Coelho Neto morreu — sustenta José Veríssimo — “sem descobrir que querendo ser primitivo e heleno, colher motivos em lendas nórdicas e orientais, exprimir a natureza de sua terra e a gente contemporânea, fazendo isso tudo menos por curiosidade intelectual do que pelo prazer de ouvir soarem vocábulos exóticos ou onamotopaicos, só conseguia imprimir à sua obra um cunho falso de artificialismo”.
No lado oposto, além da ferrenha oposição à escrita aristocrática predominante , destoando e substancialmente contrário aos estilos vigentes, , Lima Barreto rejeitava terminantemente fazer de tanto de seu trabalho jornalístico como de sua obra literária, fosse ficcional ou não-ficcional, “instrumento de propaganda do sonho republicano de falso progresso e falsa civilização”. Sustentava ele que fazia “uma literatura militante, de obras que se ocupam com o debate das questões da época(...), por oposição às letras que, limitando-se às preocupações da forma, dos casos sentimentais e amorosos e da idealização da natureza”
Na contra-mão do estilo predominante, Lima Barreto impôs — com sua escrita simples, direta e objetiva , que feria o convencionalismo literário da época, impregnado de falsas concepções estéticas, floreios , etc — os prenúncios do Modernismo logo a seguir irrompante na cultura brasileira, cujos primeiros elementos e formas apareceram justamente pela linguagem típica da escrita barretiana. Não à toa despertou interesse e respeito por parte de Mario de Andrade, do alto de sua ‘autoridade’ de contista e teórico da construção ficcional, e levou p. ex. Sergio Milliet a escrever “(...) Lembro-me da grande admiração que tinha por Lima Barreto o grupo paulista de 22. Alguns entre nós, como Alcântara Machado, andavam obcecados .O que mais nos espantava então era o estilo direto, a precisão descritiva da frase, a atitude antiliterária, a limpeza de sua prosa, objetivos que os modernistas também visavam. Mas admirávamos por outro lado sua irreverência fria, a quase crueldade científica com que analisava uma personagem, a ironia mordaz, a agudeza que revelava na marcação dos caracteres” [a escrita barretiana, baseada na oralidade, contrária ao rebuscamento estéril que caracterizava a época, teve apenas uma única exceção : no conto “Como o ‘homem’ chegou”,incluído no apêndice da 1a. edição de Triste fim de Policarpo Quaresma ( Typ. Revista dos Tribunais, Rio de Janeiro, 1915), utiliza propositadamente uma linguagem ‘empolada’, por vezes cansativa, repetitiva — só que sob evidente intuito de ironia e sátira, com “uma função anti-retórica,ou seja, complicada de propósito parece indicar ela mesma que o melhor caminho é a simplicidade”, observa o crítico Antonio Arnoni Prado.
Assim, no pólo oposto ao aristocratismo da escrita de então , aos nefelibatas da linguagem, tinha-se em Lima Barreto “um registro da língua ‘brasileira’ do início do século XX e um ritmo genuinamente nacional que prenunciava a linguagem modernista”, observa o historiador e ensaísta Nicolau Sevcenko. Segundo ele, “chama muito à atenção quando se lê a obra do Lima Barreto, a atualidade dessa obra não só em termos de linguagem — uma linguagem bastante acessível, bastante próxima até da oralidade — pela qual foi muito criticado pelos seus pares e intelectuais da época. Mas não só por essa linguagem mas também pelos temas de que ele trata e pelo modo como os trata . Pode-se ir além porque muitos problemas de Brasil que ele pensa naquela época, que ele critica, e que ele, enfim, desenvolve como reflexão, permanecem absolutamente atuais”
Convictamente decidido a romper com o figurino estilístico e literário vigente, sua escrita simples, direta e objetiva nada tinha a ver com a pompa, o floreio da retórica de então. É ele o anti-acadêmico por excelência, por isso criticado – mesmo entre os críticos admiradores de sua figura e de sua obra — pelas imperfeições de estilo, até pelos erros de gramática, o tom caricatural dos personagens. Mas que não impediu de ser, já conhecido e reconhecido por Triste fim de Policarpo Quaresma (publicado em 1915 em livro, Typ. Revista dos Tribunais, Rio de Janeiro : em 1911 aparecera em folhetins no Jornal do Commercio ) — e mais ainda pela a publicação das 2a. edição e 3a. edição (as primeiras feitas no Brasil) de Recordações do escrivão Isaias Caminha , digno de admiração e respeito, como um dos grandes autores da época, a par de ostentar de certa forma a imagem e o conceito de ‘escritor maldito’. Exemplos claros da literatura diferenciada e de alta qualidade que fazia, Lima Barreto foi agraciado com extremas consideração e atenção por parte de ninguém menos que Monteiro Lobato, solicitando a Lima primeiramente sua colaboração na Revista do Brasil
Marginalizado por suas origens e condição social, execrado por ser ‘passadista e contrário à modernização’, Lima Barreto enfrentou as marcas de seu tempo e da sociedade brasileira que lhe foi contemporânea .Seu projeto era um projeto para uma vida inteira de militância literária contra o preconceito, mas também “contra os falsos intelectuais, contra um academismo espelhado no modelo europeu, contra uma literatura só de deleite, como ornamento”. Para ele, a literatura era uma verdadeira missão. A pretensa beleza estilística, os atributos externos formais de perfeição, de forma, de estilo, de vocabulário, não poderiam prescindir da “exteriorização de um certo e determinado pensamento de interesse humano, que fale do problema angustioso do nosso destino em face do Infinito e do Mistério que nos cerca, e aluda às questões de nossa conduta na vida”9
Esse ideal, entendia “ser impossível cumprir sob a égide acadêmica coelhonetista” [de Coelho Neto], como expõe taxativamente na entrevista à A Época, em fevereiro de 1916 : “Vim para a literatura com todo o interesse e com toda coragem... Não quero ser deputado, não quero ser senador, não quero ser mais nada senão literato. Não peço às letras conquistas fáceis, não lhes peço gloríolas, peço-lhes coisa sólida e duradoura... Eu abandonei tudo por elas; e a minha esperança é que elas vão me dar muita coisa...”
Justo sua visão crítica da literatura é que levou-o, entre outros fatores de ordem mais ‘filosófico-ideológica’, por assim dizer, a atacar intransigentemente os literatos da belle èpoque, inclusive procurando ridicularizá-los. Tanto nos romances e contos como nas crônicas e artigos, Lima Barreto exerceu sempre uma crítica à cultura da modernidade contra a opressão social e a hipocrisia política — tal como se revelaram na implementação da República . A opção por uma literatura militante determinou o caráter marginal (e ‘revolucionário’ ,para muitos estudiosos) de sua obra : sua visão crítica da sociedade, da política e da cultura, renderam-lhe frutos amargos — desprezo do público, penúria econômica, alcoolismo e doença, internação em manicômio — mas nada o fez submeter-se aos ditames da moda e dos valores culturais da República.
A esperança mencionada por Lima Barreto, expresso naquela entrevista de fevereiro de 1916 , alimentava-se na verdade da recusa impassível em transigir com o que demandava popularidade — o aburguesamento do escritor, por via da adesão aos temas da moda, que fortaleciam os interesses políticos, econômicos, sociais e culturais da República. E um desses temas era o esporte, emblematizante das aspirações elitistas e ‘antenadas com a modernidade’ das incipientes e crescentes camadas médias urbanas das primeiras décadas do século XX.Ainda mais o esporte ‘literatizado’ e ‘pincelada com ares da Grécia e imagens helenísticas’ por Olavo Bilac e Coelho Neto, e suas ‘ênfases higienistas dos corpos’.

Os literatos e a Repúbica

Embora não tenha produzido correntes ideológicas próprias ou novas concepções estéticas, a geração de intelectuais, solidamente arraigados nas teorias cientificistas de 1870, e todo o espírito progressista da época pareciam estar com a República, apoiada pela maçonaria, pelo positivismo e pelas correntes que se julgavam “desassombradas de preconceitos”, as idéias circulando mais livremente num ambiente que Evaristo de Moraes qualificou de “porre ideológico” , um verdadeiro mosaico no qual era predominante o liberalismo- manifestando-se especialmente como abolicionismo e republicanismo,entre os republicanos ‘históricos’ como Benjamin Constant, José do Patrocínio, Silva Jardim, Lopes Trovão, Alberto Sales, Joaquim Serra – mas que abrigava alguma voga de anarquismo em Elisio de Carvalho (até escrever o Five o’clock), Curvelo de Mendonça,Fabio Luz, Afonso Schmidt, simpatias explícitas ao socialismo em Martins Fontes, Olavo Bilac, anti-racismo declarado em Alberto Torres e Manuel Bonfim.
Sob os princípios genéricos do liberalismo, o grupo intelectual definira a tarefa que lhes cabia ; contribuir e propugnar por uma ampla, profunda ação conjunta para construir a nação — no campo da produção intelectual intensificaram estudos da realidade brasileira (as obras de Euclides da Cunha, Alberto Torres, Manuel Bonfim,Oliveira Vianna são documentos exemplares) e se empenharam no ‘criar um saber próprio sobre o Brasil’( enfatizava José Veríssimo em “Um estudioso pernambucano”, artigo na revista Kosmos,n.1,Rio de Janeiro,1907 ) — e remodelar e fortalecer o Estado (o que obviamente punha em confrontação a ambigüidade de sua ideologia baseada no liberalismo....)
Já no 15 de novembro de 1889 registraram sua total adesão : numeroso grupo de republicanos,junto com gente da rua, tendo à frente José do Patrocínio,Aníbal Falcão, João Clapp,Campos da Paz, Olavo Bilac, Luis Murat e Pardal Mallet - estes três pela primeira vez movidos à ação política concreta-- dirigiu-se à sede da Câmara, aos gritos de viva à República, e redigiram moção de apoio aos chefes da insurreição militar [vide manifesto 1]

O entusiasmo adesista dos intelectuais era generalizado; em outro manifesto, dirigido ao Governo Provisório instalado a 16 de novembro, assinado por alguns homens de letras em 22 de novembro [manifesto 2]:
No clamor pela ampliação da atuação do Estado sobre a sociedade aliavam-se a homens públicos, políticos, jornalistas, até mesmo cafeicultores e industriais ,e a esse grupo juntar-se-ia os grupos militares defensores e sequiosos de maior participação dos militares na política— o que mais tarde não causaria surpresas quando do progressivo e acentuado fortalecimento dos governos republicanos a partir de Floriano Peixoto.
As reformas que preconizavam, no entanto, perderam-se no processo político republicano. Na consolidação do novo regime ,dando-se por meio de um processo caótico e dramático, malograram-se seus esforços cientificistas ,reformadores, inovadores na criação daquele ‘saber sobre o brasil’. Cedo, muito cedo, já nos primeiros anos do século XX desiludiam-se : “Está tudo mudado: Abolição, República... Como isso mudou ! Então, de uns tempos para cá parece que essa gente está doida”, vaticina Isaias Caminha , sob a pena de Lima Barreto. José Veríssimo, em “Vida literária” (revista Kosmos, n. 7,1904) , descreve : “Todos
se presumiam e diziam republicanos,na crença ingênua de que a República, para eles palavra mágica que bastava à solução de problemas de cuja dificuldade e complexidade não desconfiavam sequer, não fosse na prática perfeitamente compatível com todos os males da organização social, cuja injustiça os revoltava”. Ainda em outubro de 1890, antes do primeiro aniversário do 15 de novembro, desencantava-se Silva Jardim, lamentando em carta a Rangel Pestana : “Comunico-lhe que parto para a Europa, a demorar-me o tempo preciso a que esta País atravesse o período revolucionário de ditadura tirânica e de anarquia...” . “Esta não é a República de meus sonhos”. lamentou-se Lopes Trovão, um dos próceres do movimento republicano. “Foi para isso então que fizeram a República ?”, protestou Farias Brito.
No campo político, até que mantiveram-se passivos diante da “ditadura tirânica” e aceitaram as coligações de Deodoro da Fonseca com as forças mais conservadoras do Brasil agrário, mas as esperanças esfacelaram-se diante da índole e prática repressoras do governo Floriano Peixoto , quando se deu um cisma profundo entre os literatos e alguns dos antigos entusiastas da República tiveram de fugir do Rio de Janeiro para evitar a prisão, como Olavo Bilac e Guimarães Passos. Passado o momento inicial de esperança, desfeito o caminho almejado da democratização do País prometida em comícios, conferências públicas,na imprensa radical, consolidada a vitória da ideologia reforçadora do poder oligárquico, derrotados,desapontaram-se as elites, desapontaram-se os trabalhadores e o povo, desapontaram-se os intelectuais , que desistiram da política militante e se concentraram na literatura,aceitando postos ,mesmo decorativos, na burocracia especialmente no Itamaraty de Rio Branco, que atraíra em torno de si, eficiente Rui Barbosa no trabalho de ‘cooptação’, o grupo de intelectuais, representantes da intelligentsia do novo regime , constituindo o que à época se auto- denominaram “República dos Conselheiros”.
Difícil de manter uma convivência pacífica entre a República política e a ‘Republica das letras’, agravado pela crescente insatisfação popular com o novo regime, exposta em agitações de rua, episódios violentos, revoltas e movimentos de protesto – e mais ainda com os novos costumes e práticas de desenfreada especulação financeira, a busca de enriquecimento a qualquer custo,o advento de um capitalismo predatório levando ao encilhamento, a escandalizar Taunay que via “uma degradação da alma nacional” 22 e a decepcionar republicanos ardorosos como Raul Pompéia ( “A república discute-se consubstanciada no Banco da República” ).A par do afastamento repressor promovido pelo poder, viram-se compelidos a submeter sua produção literária ao “valor do mercado” — (...) neste século de danação social, em que o Dinheiro logrou a tiara de pontífice ubíquo, para reinar discricionariamente sobre todas as coisas..”, registrava Augusto dos Anjos em palestra pública.
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texto extraído das obras “Os contos políticos de Lima Barreto : os ‘argelinos’ e outros textos” e “Lima Barreto e o futebol : um fla-flu literário com Coelho Neto”,ambas a publicar (s.ed.)