____________________
domingo, 19 de maio de 2013
Lima, Machado : Diferentes,divergentes -- mas próximos, muito próximos
para encerrar a 'Semana LIMA BARRETO(13.05.1881)'
____________________
Em
Lima Barreto , a
tirania republicana-aristocrática-burguesa assoma nos ideais de modernização e
progresso, do mesmo modo que em Machado de Assis a violência escravocrata se
infiltra capilarmente na elegância e nos bons modos da sociedade oitocentista –
provocando em ambos a necessidade, obrigatoriedade de uma espécie de desagravo,
que um procura camuflar com o tom ameno e prosaico de sua escrita, o outro ao
contrário, denuncia incondicionalmente com vigor e acidez.
____________________
Diferentes,divergentes
-- mas próximos, muito próximos
Lima
Barreto e Machado de Assis, verdadeiros, natos, parentes literários. Po-los
‘frente a frente’, vis a vis, qual espelhos paralelos, .exibir seus elementos
em comum – que existem,e significativos -- mas também e em especial suas
diferenças – que são marcantes -- é o que se propõe neste estudo.
Mais
do que dois grandes escritores, dois epígonos da literatura brasileira,
essencialmente semelhantes em concepções
filosóficas, temas, influências, pontos de vista – ainda que sob formas,modos e
discursos distintos. De modo convergente, mas de forma e modo divergentes,
analisaram os cenários políticos, históricos, institucionais,sociais,culturais
de suas épocas e a existência do homem – importando menos o tipo diverso de
sociedade em que viveram do que a similitude de seus procedimentos e o modo de
observar as reações dos indivíduos entre si.: Machado, privilegiando as nuances,
dissecando-o em sua essência,revelando sutilezas, contradições e ambigüidades psicológicas;
Lima, sem linhas e focos enviezados, desnudando suas fraquezas, insuficiências,
submissões, condições sociais.
Ambos
muito próximos de várias maneiras – ainda que bastante diferentes. Resisto (mas
não de todo, até porque bastante sedutora...) à tentação de insinuar uma
especulação literária-filosófica-ideológica a partir de suas similares origens
– étnicas e sociais – face ao mundo em que viveram, almejaram e que Machado
conquistou, Lima não. Simetria e paralelismo social os criaram em ambientes que
não os dominantes, os colocaram em situação inicial desfavorável e os elevaram,
não sem esforços e afinco idealístico, ambiciosos, plena e lucidamente
conscientes de seus talentos e méritos, desejosos de superação e ascensão –
muito mais em Machado do que em Lima -- mas gradativamente tomados, ambos em
igual teor, pelo ceticismo, pelo desencanto,pela desilusão , progressivamente
se afastando das convivências, do ambiente social dominante , se isolando, a
observarem, cada um a seu tempo e modo, a dissolvência de mundos vinculados e
correlatos – Machado, com serenidade e conciliação; Lima, com a consciência
convulsiva da ‘automarginalização’.
Claro
que aproximar o criador de Policarpo
Quaresma do autor de Dom Casmurro
é tarefa audaciosa, a exigir cuidados especiais e um trabalho de profundidade.
A começar por tentar estabelecer paralelismos e confrontos entre um escritor do
século XIX e outro do século XX, como que o transplantar (ou ‘transcorrer’
temporalmente) -- mas com a certeza de que,em se tratando de Machado, seria\é
possível , tão lúcido,anunciador, antecipador como era, desconfiando e
denunciando ainda nos oitocentos a sociedade fragmentada, desequilibrada,
injusta, que existia e,pior, se projetava para o século seguinte – na qual Lima
viveria e se debateria, com sofrimento e agressividade, veemente e vigoroso no
discurso militante. Nessa linha e raciocínio, não temo errar: Machado de Assis
precursor de Lima Barreto – unidos historica e indissoluvelmente, escritores do
fim de um século e do começo de outro, da passagem do XIX ao XX. Ambos pouco,ou
quase nada, crédulos do progresso, da ciência, da razão, descrentes das
transformações e das reformas, anunciadas e nunca efetivamente realizadas;
ambos denunciando as formas vigentes e futuras de dominação e injustiça.
Tidos
como viventes de dois mundos quase que distintos, distantes, opostos – mas não
é tão verdade assim. Sob muitos aspectos não há tanta distância entre as
sociedades imperial e republicana do Rio de Janeiro, por extensão do Brasil,
entre o boêmio de Todos os Santos e o recluso do Cosme Velho.
Praticamente
nada contemporâneos: Machado nascido em 1839, Lima em 1881, só viveram ‘em
comum’ por cerca 27 anos; Machado morre em 1908, Lima em 1922 – a considerável
diferença no nascimento já não é tanta na morte. Não coincidem os respectivos
períodos de vida literária , mas o projeto literário, muito -- tantos os temas
em comum: o indivíduo, a vida, a morte, o amor, a mulher, a sociedade, o poder,
a injustiça. Porque, assim como Lima, Machado, embora em outras forma, formato, estilo,
linguagem e foco, também fez, a seu modo, da literatura “missão”.
Por
trás das aparências distintas encontram-se afinidades significativas.
Socialmente, o ambiente refinado a que Machado se esforçou para ascender espelha-se
e é revertido no ambiente rude em
que Lima cresceu e optou conscientemente por viver. Cultural,
filosófica e ideologicamente, Machado ‘infiltrado’ no estamento social e
político dominante para dissecá-lo, denunciá-lo, miná-lo pela ironia menipéica,
pela sátira sarcástica, retrata os poderosos, os esnobes, os inúteis,os
ociosos, os tolos; Lima, ‘automarginalizado’ do sistema social e econômico para
criticá-lo,rejeitá-lo,repudiá-lo pelo discurso militante, pelo grito
panfletário, mas da mesma forma pela ironia satírica, pela alegoria sarcástica,
desenha os dominadores,os títeres, os opressores, os oprimidos,os ridículos.
Machado,
testemunha do crepúsculo do Império e o estertor da escravidão, bem como o
alvorecer da República – conservado,imune, o patriarcalismo; Lima, vivente do
ascenso de um novo regime, a sedimentação do patrimonialismo, o fortalecimento
do poder – mantido,intocável,o patriarcalismo. Em Machado, a dissolução de um
mundo já esvaziado das formas de prestígio tradicionais, receptáculo de forças
novas e estranhas, uma dinâmica desconhecida e inquietante; em Lima, a formação
de um mundo carregado de novas relações e padrões, pleno de forças
avassaladoras, a eclosão de uma opressiva dinâmica.
Machado,
retratista dos proprietários, dos que vivem de renda, dos senhores e patrões,
dos elegantes e aristocratas, dos fúteis e fugazes poetas, literatos e
artistas,também dos serviçais, dos agregados, dos inquilinos; Lima, desenhista
dos bovaristas, dos arrivistas, dos despossuídos, dos espoliados, dos
destituídos, dos doutores, dos falsos sábios, dos nefelibatas. Ambos, acima de
tudo,dois grandes comentaristas da espécie e da condição humanas : não tanto o
indíviduo isolado, mas sua conduta social e sobretudo a sociedade que os
abrigava.
Como
a literatura capta muito – ou tudo -- da realidade social, tanto em Lima como
em Machado é possível encontrar manifestações de um mesmo processo com efeitos
diversos e característicos - um denominador comum, uma linha de continuidade,
nos contos e nos romances, nas crônicas e nos artigos. Em contato, ou em
confronto, as respectivas obras exibem processos similares e relacionados, cada
um se revelando e desdobrando no outro, como espelhos que se refletissem. Os elementos,
vetores e forças que atuam nas obras de Lima e de Machado exprimem e expõem um
mesmo movimento recorrente, um ritmo cíclico, o percurso da realidade à
fantasia, e vice-versa, da ilusão à desilusão, por via da política e da
história, do amor e do sentimento, da memória e da reflexão, com os recursos do
humor e da ironia (crítica).
Ambos
perceberam nitidamente que os efeitos nunca se desvinculam das causas, e isso
presente e atuante em suas obras, coerente com suas respectivas origens,
vivência e estratificação social. No universo autoral de Lima e Machado,
política, história e sociedade estão intensamente presentes – intimamente entranhadas em muitas situações ficcionais e
em praticamente todas nãoficcionais, a impulsionarem enredos, monitorarem a
escrita, situarem-nos em seus respectivos contextos históricos.
Três
esferas que se integram, se intertextualizam, se interativam e
desdobram-se,fragmentam-se em correlações estruturais, conferem o tom geral a
suas obras e suas linhas narrativas e temáticas mais intensas. Esferas capitais
que condicionam e determinam a existência do indivíduo no ambiente social de
suas épocas, inclusive fazendo-o ter de utilizar artifícios de compensação para
superar as adversidades que lhe são impostas. Esferas tão dominantes, quase
onipresentes, indispensáveis, inevitáveis, imprescindíveis para as próprias essências,
viços e grandiosidade das respectivas obras. Desde o início, a experiência
autoral forneceu a Lima e a Machado a percepção da correlação estrutural dessas
esferas e da sua funcionalidade histórica e literária, perceberam como uma se
prolongava na outra, como se articulavam em um equilíbrio dinâmico e
renovável., nelas se dando exemplarmente as interações entre indivíduo e
sociedade.
Ao
dotarem suas obras desses elementos, nitidamente compatíveis e associados, nada
mais fizeram do que esclarecer no plano da literatura as exigências que as
sociedades em crise de seus respectivos tempos demandavam às condutas interior
e exterior dos indivíduos e ao modo como estes reagiam. Ambos se tornaram
mestres em construir, flagrar e analisar a complementaridade e a
intercambialidade intrínseca desse processo – a política reflexo da história,
uma e outra determinante dos rumos da sociedade.
Sob
tais esferas, em Lima o estilo e linguagem vibrantes, pulsantes, irregulares em
seu ritmo discursivo, contra os padrões, as normas, as convenções,destoante do
ambiente cultural de seu tempo, atentória à prática textual aristocrática de
então, sem subterfúgios ou camuflagens. Contraposto a Machado, de escrita fina, equilibrada, a prosa
elegante, algo refinada, sob os ritos do respeitável e por todos aceita,
obedecendo aparentemente as convenções da sociedade – algo aqui e ali
sutilmente desobediente, ‘subversivo’ -- mas feita também de silêncios e
cesuras, de não-ditos e reticências.
Por
meio dessas esferas que se explicam de forma recíproca, Lima e Machado puderam
observar a grande mutação histórica do país de um século para outro e suas ação
e conseqüências na existência, vida e interioridade, do indivíduo. Diferentes,
nos dois, os enfoques, ou focos, ou oscilações, entre mundo exterior e interior
– mas em comum ambos retratam o exterior (o meio, a sociedade, a realidade), a
partir do interior (o indivíduo, a pessoa, a mulher).
Em
ambos, malgrado os subterfúgios machadianos, a obra dotada e fadada a ostentar
sólidas conotações política e social.: Lima, colocado literariamente sob um
regime autoritário, a aristocracia em relativo declínio integrada a uma
ascendente burguesia, despótica, que se diz progressista,.utiliza o discurso
franco e forte, algo panfletário, acoplado ao alegórico a que se liga o
simulacro; Machado, posto literariamente no horizonte do mundo patriarcal ,
familial e escravocrata, vale-se do ceticismo e da ironia, do subterfúgio, de
disfarces e dissimulações.
Na
seara ficcional, mister observar a figura feminina em um e em outro. Em ambos,
irrestritos defensores dos direitos femininos de toda ordem, aparecem mulheres
notáveis; em ambos, quase todas elas superiores aos homens: em Lima, se
dependentes dos homens e submissas ao casamento e à moral que lhe era imposta
pela sociedade, carentes de educação e oportunidades profissionais, são muito
mais fortes, em sua maioria ostentam atitude e comportamento
progressistas,avançados; em Machado, sem serem propriamente heróicas,
edificantes ou modelares, são marcantes, mesmo quando fúteis,frívolas,
volúveis.
Entre
elas, e entre personagens masculinos, diálogos e relações possíveis, bastante plausível uma conversibilidade entre
personagens – a ficção de um e de outro, em confronto, permitem especular: Olga
e Capitu, Clara dos Anjos e Virginia, Edgarda e Sofia, Cló e Flora, Adélia e
Marcela, a Lívia barretiana e a Lívia machadiana. Tudo indica que Gonzaga de
Sá, por exemplo, veria Aires; Policarpo Quaresma ficaria satisfeito em
conversar com Quincas Borba; Numa e Brás Cubas,parceiros e cúmplices, trocariam
confidências indiscretas, compartilhariam amantes, tramariam ações escusas. .
De
modo geral, os personagens de Lima e Machado se não freqüentam, em tempos
diferentes, os mesmos tipos de ambientes sociais – é claro poder-se afirmar que
transitam pela seara comum da ficção literária – circulam, nas respectivas em
épocas distintas, por um mesmo cenário urbano : a cidade do Rio de Janeiro,
Lima e seus “amados subúrbios” (crítico das áreas nobres,em especial Botafogo )
, Machado e o Centro e certos bairros da hoje zona sul. A cidade carioca,
espaço geográfico inerente a um e a outro autor, revelando semelhanças e
similaridades, convergências e confluências, identificabilidades e igualações.
Incontestável,
que a par do parentesco literário, de pontos e elementos em comum, persistem
neles diferenças e divergências, contrastes e confrontos – os quais,
reflitamos, poderiam menos desmentir um Lima oposto de Machado, e vice-versa, e
mais uma complementaridade. Sob tal ótica e lente, procurei encontrar em Lima e
Machado possíveis e plausíveis conexões dessa complementaridade lastreada na
convergência das divergências – ou valendo-se da expressão do compositor
popular, nos reflexos ‘do avesso do avesso do avesso’.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário