quinta-feira, 20 de junho de 2013

o futebol e Lima Barreto: 'atualidades'...

oportuno;  atual -- neste tempo de futebol,e (imprescindíveis,irrevogáveis) protestos com relação aos descalabros dos gastos (superfaturados) com as copas , versus [para usar termo do esporte] as gritantes,insolúveis (sic) carências na Educação, na Saúde, Infraestrutura, Segurança, etc
[dois excertos de meu livro Lima Barreto vs. Coelho Neto : um fla-flu literário (2010]
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em 1921, confirmava-se para Lima Barreto o quanto o futebol tornara-se mais do que nunca instrumento de dominação — social, racial e econômica: ficava patente constituir-se o futebol acima de tudo numa questão social, mais do que isso, ‘ideológica’ , pois antepunha ricos e pobres, brancos e negros, poderosos e excluídos, ‘senhores e escravos’.  
                                                                                                  Bendito futebol
                                                                                                   Careta ,01.10.1921
            Não há dúvida alguma que o futebol é uma instituição benemérita, cujo rol de serviços ao país vem sendo imenso e parece não querer ter fim.
            Com a citação deles, podíamos encher colunas e colunas desta revista, se tanto quiséssemos e para isso nos sobrasse paciência.
            Não é preciso. É bastante elucidativa a enumeração de alguns principais. Um deles, se não o primordial, é ter trazido, para notoriedade das páginas jornalísticas e das festanças e regabofes dos Césares destas bandas, nomes de obscuros cavalheiros, doutores ou não, sequiosos de glória, que, sem ele, não teriam um destaque qualquer , fosse de que natureza fosse.
           Um outro é ter permitido que os trabalhadores de ofícios em que se exige grande força muscular nas pernas e nos pés, tais como  o de caixeiro de bancos, o de empregado e lojas comerciais e em escritórios, o de funcionário público, o de estudante e o de profissional do “desvio”, realizassem as suas respectivas profissões com perfeição e segurança de quem dispõe de poderosos “extensores”. “pediosos”, “perônios”, “tíbias”, etc., etc.
            Não falemos da gesticulação e falatório dos “torcedores” e “torcedoras”, nem dos soberbos rolos que coroam partidas magistrais.
            Além daqueles ótimos serviços, que citamos, prestados  pelo futebol, à Pátria e à mocidade brasileira de mais de quarenta anos, falemos de um terceiro mais geral de que todos nós brasileiros lhe somos devedores: ele tem conseguido, graças a apostas belicosas e rancorosas, estabelecer não só a rivalidade entre vários bairros da cidade, mas também o dissídio entre as divisões políticas do Brasil. Haja visto o que se tem passado entre São Paulo e Rio de Janeiro e vice-versa, por causa do jogo de ponta-pés na bola.
            O futebol é eminentemente um fator de dissensão. Agora mesmo, ele acaba de dar provas disso com a organização das turmas de jogadores que vão à Argentina atirar bolas com os pés, de cá para lá, em disputa internacional. O Correio da Manhã, no seu primeiro suelto de 17 de setembro, aludiu ao caso. Ei-lo:
                    “O Sacro Colégio do Futebol reuniu-se em sessão secreta, para decidir se podiam ser levados a Buenos Aires  campeões que tivessem, nas veias, algum bocado de sangue negro ¾ homens de cor, enfim.”
            A Igreja fazia, fez ou faz uma indagação semelhante que tinha o nome, se a minha ignorância não me trai, de processo de puritate sanguinis. Isto, porém, ela fazia para os candidatos a seu sacerdócio ¾ coisa extraordinariamente diversa de um simples habilidoso que sabe, com mestria e brutalidade, servir-se dos pés, como normalmente os homens fazem com as mãos, para jogar bolas de cá para lá, da esquerda para adiante, de trás para frente e vice-versa. O sacerdote é o intermediário entre Deus e os homens; um futebolesco, o que é? Não sei.
          O conchavo não chegou a um acordo e consultou o ‘Papa’, no caso, o eminente senhor presidente da República. Sua Excelência que está habituado a resolver questões mais difíceis como sejam a cor das calças com que os convidados devem comparecer às recepções de palácio; as regras de precedência, que convém sejam observadas nos cumprimentos a pessoas reais e principescas, não teve dúvida em solucionar a grave questão. Foi sua resolução de que gente tão ordinária e comprometedora não devia figurar nas exportáveis turmas de jogadores; lá fora, acrescentou, não se precisava saber que tínhamos no Brasil semelhante esterco humano.
          É verdade, aduziu ainda, que os estrangeiros possuem os retratos dos nossos senadores, dos nossos deputados, dos nossos lentes e estudantes, dos nossos acadêmicos, etc., etc., mas são fatos domésticos com os quais nada tem a ver os estranhos; porém, fez Sua Excelência com ênfase, numa representação nacional, não é decente que tal gente figure. É verdade que o Senado, a Câmara são, mas... isso não vem ao caso.
          Concordaram todos aqueles esforçados cavalheiros que trabalham “pedestremente” pela prosperidade intelectual e pela grandeza material do Brasil; e, como complemento da medida, decidiram nomear uma comissão de antropólogos para examinar os “Enviados Extraordinários e Ministros Plenipotenciários da Pátria”, ao certame de junta-pés, na República Argentina. Sabemos que de tal comissão fazem parte as grandes inteligências arianas e ilustres desconhecidos: senhores Anastácio, Zebedeu Palhano e Juliano Qualquer, doutos todos em várias coisas e também deputados federais.
            A providência, conquanto perspicazmente eugênica e científica, traz no seu bojo ofensa a uma fração muito importante, quase a metade, da população do Brasil; deve naturalmente causar desgosto, mágoa e revolta; mas – o que se há de fazer? O papel do futebol repito, é causar dissensões no seio da nossa vida nacional. É a sua alta função social.
            O que me admira  é que os impostos, de cujo produto se tiram as gordas subvenções com que são aquinhoadas as sociedades futebolescas e seus tesoureiros infiéis, não tragam também a tisna, o estigma de origem, pois uma grande parte deles é paga pela gente de cor. Os futeboleiros não deviam aceitar dinheiro que tivesse tão malsinada origem. Aceitam-no, entretanto, cheios de satisfação. Não foi à toa que Vespasiano disse a seu filho Tito que o dinheiro não tem cheiro.
            Havia um remédio para resolver esse congesto estado de coisas: o governo retirava do doutor Belisário Pena as verbas com que ele socorre as pobres populações rurais, flageladas por avarias endêmicas que se dizimam ou as degradam; e punha-as à disposição do futebol.
            Dava-se o seguinte: o futebol ficava mais rico e mais branco; e a gente de cor, de que se compõe, em geral, os socorridos por aquele doutor, acabava desaparecendo pela ação da malária, da opilação e outras moléstias de nomes complicados que não sei pronunciar e muito menos escrever.
            O governo, procedendo assim, seria lógico consigo mesmo. Ilógico é querer conservar essa gente tão indecente e vexatória, dando-lhes médico e botica, para depois humilhá-la, como agora, em honra do futebol regenerador da raça brasileira, a começar pelos pés. “Ab Jove principium...”
            Os maiores déspotas e os mais cruéis selvagens martirizam, torturam as suas vítimas; mas as matam afinal. Matem logo os de cor; e viva o futebol, que tem dado tantos homens eminentes ao Brasil! Viva!
            P. S. – A nossa vingança é que os argentinos não distinguem, em nós, as cores; todos nós, para eles, somos macaquitos. A fim de que tal não continue seria hábil arrendar por qualquer preço, alguns ingleses que nos representassem nos encontros internacionais de futebol. Há toda a conveniência em experimentar. Dessa maneira, sim, deixávamos todos de ser macaquitos, aos olhos dos estranhos.
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em 1922,  Lima Barreto prosseguia  em sua cruzada, porém já mostrava tênues indícios de  um certo esgotamento diante da crua realidade .Parecia dar mostras de que, irreversível a popularização e  sedimentação do futebol por todas as classes sociais, considerava ‘batalha perdida’. A irreversível popularidade do futebol — violento ou não; fator de desagregação e segregação social, ou ‘regenerador da raça’; instrumento de discriminação econômica e étnica, ou de ‘redenção cívica’ — era reconhecida por todos seus ferrenhos opositores, inclusive pelo fato de ser crescente o espaço concedido pelos jornais diários, para atenderem, segundo Lima “ao  gosto do público”.

                                                                                              O nosso esporte
                                                                                              A.B.C.,26.08.1922
            Quem abre qualquer um dos nossos jornais, principalmente nestes dias de centenário festejados faustosamente em meio da maior miséria, há de concluir que este nosso Rio de Janeiro não é o paraíso do jogo do bicho, a retorta monstruosa da politicagem, a terra dos despautérios municipais e de poetas.
            Concluirá que é um imenso campo de futebol. Senão, vejam : os cotidianos ocupam uma ou duas colunas, em semana, com política, um cantinho com coisas de letras, algum pouco mais com as patacoadas do nosso teatro, quase nada com artes plásticas, tudo o mais de suas edições diárias, isto é, a quase totalidade da folha, enche-se com assassinatos, anúncios e futebol.
            De resto, as gazetas têm razão. Vão ao encontro do gosto do público, seguem-no e, por sua vez, excitam-no. Toda a gente, hoje, nesta boa terra carioca, se não fica com os pés ferrados, ao menos com a cabeça cheia de chumbo, joga o tal sport ou esporte bretão, como eles lá dizem. Não há rico nem pobre, nem velho nem moço, nem branco nem preto, nem moleque nem almofadinha que não pertença virtualmente pelo menos, a um club destinado a aperfeiçoar os homens na arte de servir-se dos pés.
           Até bem pouco, essa habilidade era apanágio de outra espécie animal; hoje, porém, os humanos disputam entre si o primado nela. Deixo a explicação desse fenômeno à inteligência e sagacidade dos sociólogos de profissão. O que verifico é que toda a nossa população anda apaixonada pela eurritmia dos pontapés e os poderes públicos protegem generosamente as associações que a cultivam.
            Abram o Diário Oficial, lá verão, no orçamento e fora dele, as autorizações inúmeras ao governo para auxiliar com subvenções de cem, duzentos e mais contos, tais e quais ligas de “desportos”, como eles, os sportmen, dizem, na sua comichão de vernaculismo.
            As mais das vezes, essas subvenções ficam no caminho; mas, nem por isso, o Congresso deixa de auxiliar o desenvolvimento físico dos nacionais do país.
            Diabo! Uma alimentação sadia, uma habitação higiênica, um bom clima agem tão eficazmente sobre o nosso organismo como umas marradas ou uns pontapés dominicais, debaixo de um sol ardente – não acham? E o dinheiro, dado para isto é mais empregado naquilo – penso eu.
            A proteção dispensada ao futebol não se limite à que lhe dá o Congresso. O Conselho Municipal vai além, porque o Conselho, como toda a gente sabe, é composto do que há demais fidalgo de sangue na nossa sociedade; e é próprio de fidalgos, tanto da Inglaterra como de Madagascar, amar toda espécie de esporte, desde a escalada ao topo do “pau de sebo”, em cuja ponta há uma grande pelega, até os raids de aeroplanos.
          Sendo assim, o nosso Conselho Municipal derrama-se, esparrama-se, derrete-se em favores aos moços demais de quarenta anos que se dão ao sacrifício de dar pontapés numa bola, para desenvolvimento dos respectivos mollets e gáudio das damas gentis que, assistindo-lhes as performances aprendem ao mesmo tempo o calão dos bairros escusos, com cujos termos os animam nas pugnas. É verdade que essas singulares vestais dos nossos modernos coliseus, às vezes, engalfinham-se no correr da luta. É que elas têm partido: uma é pelo leão do Atlas e a outra é pelo “retiário”.
            Os nossos edis, tendo em conta esse aspecto de beleza do nosso futebol, isentaram-lhe de impostos, enquanto sobrecarregam os outros divertimentos de ônus asfixiantes; entretanto, uma função de futebol rende, às mais das vezes, uma fortuna, sem despesa alguma, enquanto as diversões outras ...
            A edilidade, porém, tem razão. Os clubes de futebol são de uma pobreza franciscana, tanto assim que há alguns que compram vitórias a peso de ouro, peitando jogadores dos contrários a contos de réis e mais ...
            Bem haja o Conselho Municipal que protege o desenvolvimento físico das pernas de alguns marmanjos! Ele se esquece de estimular os poetas, os músicos, os artistas naturais ou filhos adotivos da cidade que representa; mas, em compensação, dá “arras” de sua admiração pelos exímios “ponta-pedistas” de toda a parte do mundo. É mesmo essa a função de uma municipalidade.
                                                                                                      


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