domingo, 5 de outubro de 2008

Machado e a crise financeira :ontem, como hoje


Os recentes acontecimentos turbulentos, envolvendo bolsas de valores em boa parte do mundo, além de induzir a necessárias reflexões, remetem-nos a ninguém menos que Machado de Assis e seu olhar oblíquo e crítico sobre o mundo das finanças durante um período crucial da história brasileira.

Certamente será surpresa para muitos – mas nada que não seja peculiar a esse perspicaz analista de seu tempo, que além de vanguardista inaugurou uma nova maneira de relacionamento com os leitores, inclusive fazendo da crônica muito mais do que um registro pontual do cotidiano, transformando-a em um verdadeiro gênero literário .Machado de Assis,sim senhor, tratou de fatos e assuntos da economia e das finanças , como nenhum outro escritor em sua época. Muitos de seus escritos no período 1892-96, publicados na Gazeta de Notícias mostram como o notável escritor,cronista,autor e criador debruçou-se com seu olhar acurado,lúcido,crítico,irônico, satírico – por vezes claro, nítido e direto, por vezes obliquo, dissimulado, sutil – sobre as mazelas provocadas e advindas, nos tempos novos da República, de uma ciranda financeira e sua plêiade de emissões, crédito luxuriante, jogatina, falências em cadeia , sem deixar de passar pelo machadiano crivo, aguçado e satírico, quebras de bancos – a “quebra do Souto”,alusão à falência da Casa (bancária) A . F. Souto & Cia, em 1864 -- o “estouro” da bolsa de valores em 1867 , a crise financeira inerente à guerra do Paraguai (1865-70), os problemas da conjuntura econômica envolvendo companhias,bancos e entidades.
Não poderia ser de outra forma na crônica machadiana, que desde sempre – apesar de suas primordiais características de leveza de tom e teor, fluência textual e estilística (muito próxima da oralidade), ironia satírica e alegórica -- foi, ao longo do tempo, em maior ou menor grau, de um lado influenciada e de outro refletora do fluxo da história brasileira do século XIX. Destacada a presença marcante também nas crônicas como ocorre em sua obra ficcional, dos conhecidos elementos machadianos do disfarce, da dissimulação,do subterfúgio, da sutileza, dos significados ocultos postos como desafios ao leitor, por meio da “arte das transições” -- no unir tópicos aparentemente distintos, um parecendo não ter nada a ver com outro, mas que justapostos oferecem um resultado surpreendente,cujo trajeto Machado ‘ameniza’ para os leitor, primeiro desviando-o do tema principal, depois retornando e reintegrando-o,numa espiral de circularidade muitas vezes nem percebida de todo. Mestre do subterfúgio, da dissimulação, da sutileza, Machado esconde ou disfarça uma parte da verdade e desafia o leitor a descobri-la e fazê-la emergir ; utiliza à exaustão a ‘estratégia da negação/(que é uma afirmação’ , as armadilhas estéticas típicas da ficção machadiana executadas também na crônica : quando diz que “política não é o assunto da crônica”, pode-se ter certeza que efetivamente o é, e ao sentenciar que “não sei finanças” (que se tornou mais comum, em suas crônicas a partir de 1893, do que a repetida expressão de antes “não entendo de política”), vale observar o quanto contundentemente comenta os fatos da área financeira, e o quanto as valoriza, a ponto de repetir “finanças e semana são a mesma coisa”.
Machado, como nenhum escritor de seu tempo, anteviu que a própria evolução da sociedade nacional, o processo transformador que o País atravessava – de resto, sintonizado com o mundo industrializado, capitalista e socialmente ‘darwinista’ – impunha mudanças, de toda ordem, também em sua criação literária : daí, a significativa ‘guinada’, para ao mesmo tempo expor e contrapor, adotar e minar, revelar as contradições : esta a razão primordial da inflexão machadiana que tanto estimula e insufla a historiografia e o pensamento crítico literários. Ao olhar machadiano nada escapou dos fatos ,temas e assuntos -- de qualquer ordem ou natureza -- de seu tempo, uma época sob todos os aspectos ebulitiva,tumultuada e marcante para a história brasileira , a partir da Abolição,seguida pelo advento da República e as novas formas e manifestações de um capitalismo emergente.A economia o obcecou em “A Semana”, conjunto seqüencial de crônicas escritas ininterruptamente de 1892 a 1900 na Gazeta de Notícias – embora já escrevesse sobre questões econômicas desde 1859, assim como no decorrer das décadas de 1860,1870 e 1880. Foi crítico vigoroso do Encilhamento -- denominação dada à “bolha” especulativa na bolsa de valores do Rio de Janeiro, iniciada no final do Império, impulsionada com a reforma monetária feita por Ruy Barbosa, e que tem sua decadência ‘dolorosa’ no anos posteriores à crise econômico-financeira de 1891 -- que o chocou profundamente,fazendo-o sentir-se desalentado, tedioso,desgostoso, diante do vale-tudo do dinheiro pelo dinheiro, das fortunas feitas ou desfeitas da noite para o dia e da orgia financeira que se multiplicava a partir do que ele denominava “ano terrível(1890-91)”.
Na seara econômica, no entanto, Machado não ficou só no repúdio ao Encilhamento : destilou sua ácida ironia crítica ao câmbio, aos juros, à dívida pública, aos bancos,à política financeira, aos impostos, às subvenções do Estado,às crises de abastecimento, aos próprios dilemas e polêmicas da modernização, as perspectivas de progresso anunciadas pela República traduzindo-se em frustração desses desígnios.Seu olhar irônico -- singularmente oblíquo, como lhe era peculiar -- alcança a explosão especulativa, o papel moeda, a ascensão da burguesia argentaria, as falcatruas financeiras, as fusões e liquidações bancárias, os mistérios do câmbio, a inflação. Como poucos literatos de seu tempo, via e antevia os primeiros passos do nascente capitalismo brasileiro como propulsor não de um processo de desenvolvimento econômico mas de endividamento generalizado. As crônicas machadianas referentes à economia trazem uma espécie de tese sobre o Brasil : examinadas em conjunto, formam um enredo de sátira ativa ao nítido capitalismo de Estado que vicejava no país, em que tudo emanava do governo , fosse imperial como até 1889, fosse republicano . Machado percebe nitidamente o quanto o capitalismo brasileiro da época era "uma idéia fora lugar", uma máscara sobre uma economia composta de concessões e privilégios todos emanados do Estado .Não é outro o sentido, por exemplo, da postura crítica,no caso notavelmente cética, com relação ao acionista – personagem central de uma alegoria sobre a atividade empresarial no Brasil do final do século XIX : o acionista machadiano não é similar ao de nossos dias, tampouco se preocupa com as boas práticas de governança corporativa ; para ele, não vale a pena participar de assembléias ou interessar-se pelos destinos da empresa , não há por que se envolver com rituais societários, se tudo a rigor era decidido pelo poder público. Tem plena consciência de que o Estado mandava tanto na economia e no país que qualquer outra forma de pensar o capitalismo brasileiro seria mero fingimento.
As crônicas de Machado que tratam de finanças e economia formam um elenco bastante significativo de sua produção não-ficcional : são 77 textos escritas sob o clamor crítico-satírico do olhar machadiano feito testemunho incomparável sobre a história brasileira nas quatro últimas décadas do século XIX.

[colaborei com o economista Gustavo Franco,apresentando as crônicas, na organização da coletânea Machado de Assis e a economia: o olhar oblíquo do acionista, publicado em 2007, contendo 39 textos ; preconizo uma obra sequencial com as demais 38 crônicas. preparo para o Senado Federal a antologia "Machado de Assis e a política:crônicas", com 381 textos, a se publicar no início de 2009]

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