sábado, 18 de outubro de 2014
Em tempo de eleições : Lima Barreto e a política
Em essência, Lima Barreto sempre tratou mais
de política do que qualquer outro tema. Ninguém como ele, em seu tempo,
escreveu tanto sobre o tema e, por extensão, sobre questões sociais. Sua ‘literatura militante’,
assim por ele definida, determina o caráter marginal de sua obra: sua visão
crítica da sociedade o fez enveredar concreta e irreversivelmente no caminho da
luta social; nos jornais e revistas investiu contra todos os signos do poder,
nos textos ficcionais denunciou as profundas injustiças da sociedade
brasileira.
Toda a obra barretiana desenvolve-se a
partir e em torno de um tema nuclear: o
poder e seus efeitos discricionários — o poder
visto e descrito por ele como “o
variado conjunto de elementos, vetores e procedimentos encadeados no interior
da sociedade, compondo grandes e pequenas cadeias, visíveis e invisíveis,
tendentes a restringir e constringir o pensamento dos homens, coibindo-lhes as
possibilidades de afirmação, pessoal, cultural, profissional, social, e a justa
inserção social”. Tinha a visão verticalizada, analisando desde as
estruturas políticas como o governo e as ideologias, e as instituições
culturais como a imprensa e a ciência, até os modelos determinantes do
comportamento coletivo e do relacionamento cotidiano. Lima Barreto era, acima
de tudo, um anti-patrimonialista.
Crítico implacável da pretensa modernidade que
se queria implementar com a República, avesso a todas as formas de assimilação
de valores estrangeiros (no bojo, p. ex. de sua resistência ao futebol, ao
cinema e à cultura importada ), defensor ,por vezes intransigente, de uma
brasilidade que sustentava devia permear a “autêntica língua nacional”, foi no
entanto opositor ativo do nacionalismo
ufanista surgido no final do séc. XIX e início do XX,a começar por questionar as imagens errôneas que o Brasil
fazia de si mesmo, levando ad absurdum os clichês e mitos nacionalistas e os
desmascarando um a um.(no romance Triste
fim de Policarpo Quaresma parodia
implicitamente o opúsculo patrioteiro de Afonso Celso, filho de seu protetor,
intitulado Por que me ufano do meu país
(1901), livro muito popular no começo do século XX, que deu origem ao termo
ufanismo e foi traduzido para diversas línguas na época, inclusive o alemão. Lima Barreto inclusive alertava para
o que denominava “um dos mitos mais
perigosos,o do patriotismo : no fundo, os patriotas grandiloqüentes de plantão
não passam de traidores da pátria, pois a usam para a sua própria autopromoção
e enriquecimento (...), a sociedade
de classes e o Estado a
instrumentalizarem o patriotismo e o nacionalismo em favor do interesse das
elites.”. Na contrapartida, procurou esboçar um patriotismo social, com
consciência histórica e respeito pela cidadania, ancorado na cultura própria,
resistente ao cosmopolitismo e de reconhecimento da mestiçagem – étnica,social
e cultural --no Brasil.
Para
ele, a nova sociedade ,caracterizada
pelo binômio cosmopolitismo, inspirador das ações da elite do país , e
bovarismo[1],
“atitude mistificatória de o homem se
conceber outro que não é, entre o que é e o que acredita ser”, era um
sistema que premiava o egoísmo, o banal, a decadência dos costumes, o
preconceito, lastreada nos valores máximos da elite – a fruição do conforto
material, os privilégios, a superioridade, gerando discriminação e
sectarismo. “A nossa República se
transformou no domínio de um feroz sindicato de argentários cúpidos, com os
quais só se pode lutar com armas na mão. Deles saem todas as autoridades, deles
são os grandes jornais, deles saem as graças e os privilégios; e sobre a Nação
eles teceram uma rede de malhas estreitas, por onde não passa senão aquilo que
lhes convém” [2]
Lima Barreto,em sua fértil produção
contística, publicou 46 contos de teor explicitamente político – ainda que em
alguns deles, caso específico do conjunto de 13 textos que ele próprio batizou
de “contos argelinos”, se utilize da alegoria e do simulacro. Exemplares
insofismáveis de veemente oposição à República, da ferrenha crítica aos
governos republicanos ,notoriamente o ‘florianismo’ (referente a Floriano Peixoto) e o ‘hermismo’ ( a Hermes
da Fonseca)[3]
-- já objetos de críticas exacerbadas em inúmeros artigos e crônicas e também
na novela Numa e a ninfa e no memorialístico Diário íntimo --
expressão do intransigente e obstinado
repúdio para as coisas da política, aos
políticos, aos conchavos partidários,às oligarquias , Lima Barreto os “contos argelinos” têm
em seu cerne paródico a ascensão dos militares, com sua crescente participação
na política, e o militarismo — importando
notar que, em outro viés de leitura e interpretação, trazem em si a emblematização ficcional do patrimonialismo,
contra o qual Lima Barreto se colocava na própria essência de sua ideologia.
A
criação, confecção e publicação desses 46 contos deram-se em período histórico
conturbado, durante os sucessivos governos de Hermes da Fonseca, Venceslau Brás
e Epitácio Pessoa, em sete dos mais cruciais anos de plena sedimentação do
regime republicano — de resto um processo de altíssima ebulição política,
convulsionante e transformadora.
Por
essa época , apenas Lima Barreto (Euclydes
da Cunha morrera em 1909) mantinha , entre os escritores, uma postura
participativa – de natureza crítica -- nas coisas da política , uma vez que os
demais literatos se afastaram do
envolvimento e da militância a que se entregaram ainda durante as campanhas
abolicionista e republicana, nas últimas décadas do século XIX e início do
século XX : frustrados a expectativa e o entusiasmo iniciais despertados pela
República , os intelectuais desistiram da participação política ativa,
militante, que muitos tiveram no advento do novo regime e passaram a se
concentrar na literatura e em parte no jornalismo ‘croniquesco’,
dedicando-se a produzir uma literatura
de linguagem empolada, o ‘clássico’
calcado em expressões cediças e de figuras de efeito, cheia de arabescos
estilísticos — uma literatura impregnada
de vocábulos garimpados do virtuosismo lingüístico e verborrágico,expressão da
frivolidade dominante. Uma literatura como “o sorriso da sociedade” de que
falava Afrânio Peixoto e contra a qual Lima Barreto lutava com denodo.
No
lado oposto, além da ferrenha oposição à escrita aristocrática predominante ,
destoando e substancialmente contrário aos estilos vigentes, Lima Barreto por
essa época já era respeitado como articulista e cronista e reconhecido como
excepcional escritor mercê dos elogiados romances publicados Recordações do escrivão Isaias Caminha(1909)
e Triste fim de Policarpo Quaresma
(1915)—que rejeitava terminantemente fazer de tanto de seu trabalho
jornalístico como de sua obra literária, fosse ficcional ou não-ficcional,
“instrumento de propaganda do sonho republicano de falso progresso e falsa
civilização”. Sustentava ele que fazia “uma
literatura militante, de obras que se ocupam com o debate das questões da época
(...), por oposição às letras que,
limitando-se às preocupações da forma, dos casos sentimentais e amorosos e da
idealização da natureza”.
Na
contrapartida ao aristocratismo da escrita de então , aos nefelibatas da
linguagem, tinha-se em
Lima Barreto um registro da
língua ‘brasileira’ do início do século XX e um ritmo genuinamente
nacional que prenunciava a linguagem
modernista.
Contrariamente
à maioria de seus contemporâneos, Lima
Barreto conferia à sua obra ficcional o sentido militante de uma “missão
social, de contribuir para a felicidade de um povo ,de uma nação, da
humanidade” Em sua concepção, a literatura tinha de ser “militante”, com
objetivo concreto e definido, como sentencia em entrevista a A Época,18.02.1916
: “(...)não desejamos mais uma literatura contemplativa, cheia de ênfase e
arrebiques ,falsa e sem finalidade, o que raramente ela foi; não é mais uma
literatura plástica que queremos, a encontrar beleza em deuses para sempre
mortos, manequins atualmente, pois a alma que os animava já se evolou com a
morte dos que os adoravam; digamos não a uma
literatura puramente contemplativa, estilizante sem cogitações outras
que não as da arte poética, consagrada no círculo dos grandes burgueses embotados
pelo dinheiro, de amplo emprego por pretensos intelectuais,bacharéis e
políticos” (...) “a obra
de arte tem por fim dizer o que os simples fatos não dizem. Este é meu escopo.
Vim para a literatura com todo o desinteresse e toda coragem. As letras são o
fim da minha vida. Eu não peço delas senão aquilo que elas me podem dar:
glória!”
Dono
de obra ficcional e não-ficcional com vigoroso fulcro ideológico, Lima Barreto
buscava na politização da literatura um sentido sobretudo ético.Na única
conferência literária que faria, mas não o fez — “O destino da Literatura”
[publicada na Revista Souza Cruz,Rio de Janeiro, 1921 , em cujo número
também apareceu trecho do romance O cemitério dos vivos ], em Rio Preto , São Paulo, em
fevereiro de 1921 — foi explícito :“A Beleza não está na forma, no encanto
plástico, na proporção e harmonia das partes, como querem os helenizantes de
última hora . A importância da obra literária que se quer bela
sem desprezar os atributos externos de perfeição de forma, de estilo, deve residir
na exteriorização de um certo e determinado pensamento de interesse humano(...)
E o destino da literatura é tornar sensível, assimilável, vulgar esse grande
ideal de fraternidade e de justiça entre os homens para que ela cumpra ainda
uma vez sua missão quase divina. Mais do que qualquer outra atividade
espiritual da nossa espécie, a Arte, especialmente a Literatura, a que me
dediquei e com quem me casei; mais do que ela, nenhum outro qualquer meio de
comunicação entre os homens, em virtude mesmo do seu poder de contágio, teve,
tem e terá um grande destino em nossa triste humanidade.”
Marginalizado
por suas origens e condição social, execrado por ser ‘passadista e contrário à
modernização’, Lima Barreto enfrentou as marcas de seu tempo e da sociedade brasileira
que lhe foi contemporânea. Seu projeto era um projeto para uma vida inteira de
militância literária contra o preconceito, mas também “contra os falsos
intelectuais, contra um academismo espelhado no modelo europeu, contra uma
literatura só de deleite, como ornamento”. Para ele, a literatura era uma
verdadeira missão. A pretensa beleza estilística, os atributos externos formais
de perfeição, de forma, de estilo, de vocabulário, não poderiam prescindir da “exteriorização de um certo e determinado pensamento
de interesse humano, que fale do problema angustioso do nosso destino em face
do Infinito e do Mistério que nos cerca, e aluda às questões de nossa conduta
na vida” [Bagatelas ; Empresa de Romances Populares, Rio de
Janeiro,1923].
Tanto nos romances e contos como nas crônicas
e artigos, Lima Barreto exerceu sempre
uma crítica à cultura da modernidade contra a opressão social e a hipocrisia
política — tal como se revelaram na implementação da República . A opção por
uma literatura militante determinou o caráter marginal (e ‘revolucionário’,
para muitos estudiosos) de sua obra : sua visão crítica da sociedade, da
política e da cultura, renderam-lhe frutos amargos — desprezo do público,
penúria econômica, alcoolismo e doença, internação em manicômio — mas nada o
fez submeter-se aos ditames da moda e dos valores culturais da República.
A “esperança” mencionada por Lima
Barreto na entrevista de 1916 alimentava-se na verdade da recusa impassível em
transigir com o que demandava popularidade — o aburguesamento do escritor, por
via da adesão aos temas da moda, que fortaleciam os interesses políticos,
econômicos, sociais e culturais da República. Nada porém o fez submeter-se a
esses valores.
[1] bovarismo, conceito cunhado pelo filósofo francês Jules de Gaultier em
sua obra Le Bovarysme, em 1892, advindo de Gustave Flaubert e sua Madame
Bovary, seja em relação à figura do artista ‘sonhador irresponsável’ seja a
um comportamento artificial simbolizando
um falseamento da vida,um desejo irreal de fuga – o abismo que se abre entre as duas escalas, a
da realidade e a do imaginário, conferindo-lhe
uma dimensão ao mesmo tempo trágica e irônica ; o termo é especialmente
empregado também com o sentido da alienação intelectual que precede a construção
de uma identidade cultural própria. Lima Barreto -- para quem o bovarismo era
uma atitude mistificatória típica da nova elite, extremamente prejudicial para
o país, “o poder partilhado no homem de se conceber
outro que não é, o afastamento entre o indivíduo real e o imaginário,entre o
que é e o que acredita ser” -- aplicou esse conceito tanto literariamente –
no romance Triste fim de Policarpo Quaresma e nos contos “A biblioteca”, “Lívia” e “Na
janela” aparece como a própria essência
dos textos – quanto socialmente : segundo ele, a República estava toda imersa
em atitudes bovaristas e ,pior, os
próprios intelectuais, teoricamente dotados de maior capacidade e lucidez
críticas, mergulharam desde o início numa militância ufanista,destemperada, de
otimismo ingênuo ; e esse ufanismo bovarista era uma forma terrível de se
alienarem dos graves problemas do país.
[2] “Sobre a carestia”, in O
Debate, 15.09.1917.
[3] em dezembro de 1909,Lima Barreto editara com Antônio
Noronha Santos (o maior de seus amigos) um panfleto contra a candidatura Hermes
da Fonseca à presidência da República, intitulado “O Papão – semanário dos
bastidores da política,das artes e... das candidaturas”.
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Um comentário:
Olá, Mauro. Tudo Bem?
Gostaria de saber de qual obra do Lima está esse trecho que você destacou.
Pode me ajudar?
Abraço
Marcos
“um dos mitos mais perigosos,o do patriotismo : no fundo, os patriotas grandiloqüentes de plantão não passam de traidores da pátria, pois a usam para a sua própria autopromoção e enriquecimento (...), a sociedade de classes e o Estado a instrumentalizarem o patriotismo e o nacionalismo em favor do interesse das elites.”.
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