segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014
cinema e literatura -- a Eduardo Coutinho (1933-2014)
O cinema vai à literatura
(e a literatura se vale do cinema)
o cinema, sempre objeto do foco, das luzes; e como
a literatura,
sempre presente no imaginário e no cotidiano de praticamente todas as pessoas no
mundo.
elementos mais do que suficiente para examinar as
relações entre cinema e literatura
.
Todas as
ocasiões, oportunidades e motivos são
excelentes por permitir uma reflexão
sobre a sempre vigente relação literatura-cinema , com suas interseções,
confluências ...e divergências . Poucas formas artísticas estabelecem entre si
tantas relações de sentido mútuo, ainda que sujeitas a entreveros e embates,
acusações de “infidelidade autoral”, polêmicas sobre liberdades de criação,
etc.-- até porque são diferenciadas as linguagens e distintos os respectivos
códigos e modos de funcionamento : narrativa literária e narrativa fílmica
distinguem-se e na maioria dos casos
contrastam- se; são sempre difíceis as transposições de uma para o
outro, pois as características intrínsecas do texto literário --
originalidades, subjetividades, entrelinhas, elaboramentos -- por princípio não
encontram a mesma expressão na narrativa cinematográfica.
A par das diferenças, entre a página e a tela há
laços estreitos -- em forma de ‘mão e
contra-mão’ : a página contém palavras que acionarão os sentidos e se
transformam na mente do leitor em imagens; a tela abriga imagens em movimento
que serão decodificadas pelo expectador
por meio de palavras.Entre a literatura e o cinema, há um parentesco
originário, diálogo que se acentuou sobremaneira após a intermediação dos
processos tecnológicos. Assim, a enorme e expressiva influência da literatura
sobre o cinema tem sua contrapartida, por meio de um ‘cinema interior ou mental’ sobre a
literatura e as artes em geral, mesmo em uma época precedente ao advento dos
artefatos técnicos.
Optando pela modalidade narrativa, o cinema roubou da
literatura parte significativa da tarefa de contar histórias, tornando-se, de
início, um fiel substituto do folhetim romântico. E, apesar de experimentações
mais ousadas, como a "Avant-Garde" francesa da década de 1920, ou o
surrealismo cinematográfico, que buscaram fugir dessa linha, a narratividade
continua a ser o traço hegemônico da cinematografia.
Daí,
adaptar para o cinema ou para a televisão — meios reconhecidamente ligados à
cultura de massa — obras de autores como Shakeaspeare, Dostoiévski, Tolstói,
Balzac, Flaubert, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, para
citar apenas alguns nomes de relevo no panorama universal e nacional — equivale
a trazer para as mídias o prestígio da grande arte ou, no dizer de alguns,
tornar a arte erudita acessível ao grande público. Mas a adaptação de obras
literárias para o cinema e, posteriormente para a televisão -- meios que privilegiam a linha narrativa —
também não se tem feito sem conflitos, pois as adaptações resultam sempre em
empreendimentos insatisfatórios.
Não se pode negar que, principalmente em seu período
clássico, o cinema tenha procurado na aproximação com a literatura uma forma de
legitimar-se. E além das freqüentes adaptações de obras literárias para a tela,
tornou-se prática corrente, em particular naquele período, a contratação de
escritores como roteiristas. Assim é que, em Hollywood, notáveis escritores
como William Faulkner, Scott Fritzgerald, Aldous Huxley, Gore Vidal, James
Age,Nathanael West, dentre outros, tornaram-se os contadores de muitas
histórias que comoveram o grande público e garantiram o sucesso de vários
empreendimentos. Saber se tais roteiros traziam a marca da criação literária já
é uma outra questão, que talvez possa ser analisada a partir da postura de
alguns desses escritores-roteiristas. Faulkner, por exemplo, não fazia segredo
sobre a natureza de sua atividade em Hollywood: "Faço apenas o que me
dizem para fazer; é um emprego, e pronto."
“A literatura e cinema não são tão distantes assevera o
pesquisador e professor do departamento de espanhol e português da University
of California (UCLA), Randal Johnson – com quem tive oportunidade de conversar
quando de sua estadia no Rio de Janeiro, em 2008, convidado pelo Programa de
Pós-graduação da Escola de Comunicação (ECO-Pós) da UFRJ, para ministrar uma
disciplina compactada sobre Cinema, Literatura e TV. Para ele, as relações
entre cinema e literatura não se limitam às adaptações do texto escrito para a
tela, apontando três outros importantes pontos de encontro : o primeiro seria
os filmes feitos sobre escritores – de que gradativamente proliferam vários
exemplos em cinematografias distintas; outro, seria o uso estrutural ou
incorporação de textos literários no discurso cinematográfico – esta
indubitavelmente a ocorrência maior; e também
o encontro da literatura e do cinema poderia se dar através de
referências como alusões literárias nos diálogos e citações implícitas ou
explícitas, visuais, orais ou escritas diretamente na tela – um expediente cada
vez mais recorrente na produção contemporânea. Por outro lado, Johnson critica enfaticamente
a valorização do texto literário sobre o discurso cinematográfico,
sustentando ser muito comum entre os
espectadores uma exigência de fidelidade do filme ao livro. A insistência na
fidelidade da adaptação cinematográfica à obra literária originária,pode
resultar em julgamentos superficiais que freqüentemente valorizam a obra
literária em detrimento da adaptação, sem uma reflexão mais profunda. Os filmes
são julgados criticamente porque, de um modo ou de outro, não são “fieis” à
obra modelo. O conceito, de ‘fidelidade’ assume conotação crucial,tornando-se
na discussão\reflexão do relacionamento entre cinema e literatura, no chamado ‘x da questão’ : tudo, a rigor, gravita
em torno disso.
Às vezes a mais fiel das adaptações faz o pior dos
filmes, porque o material não se presta a uma história filmada e, na forma como
está escrito, não funciona na tela, por mais forte que seja a história no
original.
Esse freqüente discurso da fidelidade baseia-se,a meu
juízo, na crença difundida de que a literatura é superior ao cinema, um
preconceito devido ao fato da literatura ser anterior no tempo ao cinema, o que
pode levar à idéia de que o livro é historicamente mais nobre e o filme
secundário -- além evidentemente do pensamento de que cinema e literatura são
rivais a partir da crença na idéia de que o filme adaptado suga e destrói o que
é essencial no livro.
Na verdade, desde que o cinema é cinema, a literatura tem
sido um de seus pontos de partida – as relações entre o cinema e a literatura
são tão fortes que alguns estudiosos chegam a afirmar a sua existência antes
mesmo do surgimento do cinema. Para isto evocam uma teoria limite, segundo a
qual há uma essência do cinema, de um “pré-cinema” embutido em alguns textos
literários anteriores à forma de expressão cinematográfica, e que teriam como
especificidade o fato de os escritores ordenarem o relato em função da
incidência do olhar do narrador, da sua ‘ocularização’ da cena a narrar. Desse
modo, a narrativa cinematográfica já se encontraria latente em alguns textos
narrativos literários, e a relação logo
passou a trilhar indissolúvel (sic) mão dupla, quando literatos e dramaturgos
começaram a se inspirar no cinema para formar narrativas em prosa e em
poesia. A rigor, as diferenças entre textos literários
e filmes neles apoiados são marcadas por historicidades específicas de cada
linguagem --- isto é, o tempo histórico que cada um retrata (um filme realizado
na década de 2000 abriga um relato literário escrito ou passado em 1890 , ou em
1950, etc ) : e o momento histórico de
cada um é que se constitui faceta que conduz a inevitáveis diferenças. Nenhum
filme ‘repete’ uma obra literária, nenhuma obra literária ‘repete’ um filme,
quer pelas diferenças de linguagem, quer pelo momento próprio de produção e
circulação de cada um de seus produtos.
Essa intrínseca, dialógica
e dinâmica relação nasce no momento em que o cinema descobre seu potencial
digamos literário, ao absorver o modelo narrativo do romance do século XIX a
subsidiá-lo para melhor contar histórias – malgrado podermos hoje levantar a
reflexão em plena era da imagem digital
em que vivemos : o cinema continuaria
‘preso’ a um modelo narrativo já ,em maior ou menor grau, superado pela própria
literatura? .Se o cinema beneficiou-se do romance do século XIX, por que na era
da imagem digital, quando a capacidade plástica do cinema atinge seu ponto mais
alto, continuam-se a ilustrar romances do século XIX?
Examinado detidamente com isento rigor crítico, no campo
da narrativa, em sua já longa história, o cinema não sofreu muitas variações –
malgrado certas exceções, como experimentos ‘de vanguarda’ – e vem à mente, por
aproximação etimológica, a “Nouvelle Vague” da década de 1960 , que
se propunha a romper com a lógica
linearizante da estética e da narrativa fílmica de até então, inspirada num
congênere da seara literária, o “nouveau
roman”—ambas dialogando entre si pelas respctivas técnicas narrativas, num
movimento de realimentação recíproco entre as duas linguagens.Convém não
esquecer,entretanto, que sob a égide de suas
afinidades com a cultura literária, se o cinema europeu tendia, então, a
se afastar do modelo romanesco tradicional, a indústria cinematográfica
hollywoodiana, voltada para o entretenimento, consolidou-se seguindo padrões já
consagrados da narrativa literária – levando
Jorge Luis Borges a observar que, com os westerns, “Hollywood, por razões comerciais, naturalmente, salvou a
épica, num tempo em que os poetas tinham esquecido que a poesia começou pela
épica”.Tanto uma quanto o outro buscando ultrapassar as limitações formais e “não procurando ordenar o caos”, ao contrário, o caos
tornando-se o princípio da criação. Os cineastas da “Nouvelle Vague”, p. ex., queriam mostrar que nem tudo faz sentido e
que os caminhos são múltiplos; e por fim
aquilo que Jean Cocteau afirmou sobre o cinema pode agora se efetivar,
pois para ele, os filmes só seriam bons quando fossem acessíveis como uma caneta
e um papel.
Contudo, há de se atentar para um outro viés, uma espécie
de contra-mão no processo de interação cinema-literatura, no caso um
contrafluxo mediado, executado,e recentemente cada vez mais incentivado pelo
setor editorial e mercado livreiro – nos quais dá-se o crescente movimento de
publicação de livros motivados... pelo
cinema :roteiros de filmes, diários de filmagens, histórias sobre a elaboração
de filmes(making-of), edição ou
reedição de obras literárias abrigando imagens e outros elementos
iconográficos que remetem para os filmes
realizados a partir da adaptação da obra para
o cinema – uma subversão das relações entre cinema e literatura. De resto, uma tendência à qual avolumam-se questionamentos sobre até que
ponto sinaliza tanto ‘perda de prestígio’ e ‘distorção\vulgarização’
da matéria literária, como sobretudo
‘dessacralização’ da literatura, tênues
que se tornam cada vez mais as fronteiras entre ela e outros tipos de bens
culturais que circulam pela mídia.e no seio de consumo da sociedade.
Das mesmas forma e diapasão e desse processo decorrente,
deflagra-se ao longo da segunda metade do século XX, por parte e ação do
setor editorial ,a contrapartida à incorporação da obra
literária,fosse best seller ou não –
muitas criadas especificamente para se transporem à tela – pelo cinema , com o
relançamento de romances adaptados e especialmente com a publicação de roteiros
.Toda a literatura poderia, então, ser considerada como texto básico para um
filme, e na direção oposta, parece que o cinema vem buscando cada vez mais o
espaço do livro, no que o mercado editorial explora o filão das publicações
derivadas de filmes.
Por
outro lado e em outra vertente, ao praticarem exercícios literários, cineastas
e roteiristas via de regra imprimem a suas narrativas muito mais o teor, o
timbre, o ritmo, o timing fílmico --
e menos literário. E além disso, mesmo
que sua estória e trama seja de ação,de movimento, costumam lidar
com o onírico, o sonho , e com o
psicológico -- que é, sabemos, elemento
recorrente ao extremo no cinema, do expressionismo alemão a Stroheim, de
Bergman a Buñuel, de Resnais a Godard. Não poderia ser de outra forma, pois são
eles antes e acima de tudo pessoas do cinema.
Tudo isso propicia
um exercício de reflexão e indagação: as incursões de cineastas e de
profissionais de tv na literatura podem ser bem resolvidas e bem sucedidas ? O
caso é que um diretor de cinema ou de tv
quando vai à literatura leva com
ele uma bagagem da linguagem -- o ritmo,
o corte abrupto, o esperar pronto entendimento do leitor, qual um espectador --
e assim comete pecados e pecadilhos marcantes . Ao
contrário, um escritor que vai para o cinema -- como roteirista, quase sempre
-- o faz melhor, sabe adaptar, mostra-se mais seguro, os resultados são
melhores: caso de Rubem Fonseca, dos exemplos clássicos dos escritores
norte-americanos com Hollywood, e ainda de Jean Louis Carrière , Dalton Trumbo
no cinema europeu.
Sob essa perspectiva, é comum cineastas em incursões
literárias atuarem numa espécie de
contramão, na via inversa do terreno do relacionamento -- ou do embate --
literatura/cinema ; os questionamentos sobre “apropriação de obras literárias
por cineastas”, ao realizar filmes, ganha outro contorno, de sinal trocado : no
caso, um cineasta não pega um livro e faz um filme -- e vale lembrar que para o escritor Autran Dourado “não existe
livro filmado, existe filme baseado
em livro” -- mas escreve um livro com elementos e ‘cacoetes’ de filme. Sai de
seu habitat original e vem para outro, mas utilizando o mesmíssimo instrumental,
na vã tentativa de sintetizar o mimetismo palavra-imagem.
No ‘umbelical’ -- nada dicotômico, portanto --
relacionamento do cinema com a literatura, podem ser extraídos, ou
inferidos\induzidos, alguns elementos que responderiam a Stanley Kubrick --
para quem “tudo que pode ser escrito e pensado pode ser filmado” -- também provando o inevitável desejo de cineastas e roteiristas, ao
escreverem uma obra literária, replicando a Kubrick, que ‘tudo que pode ser filmado poderia ser escrito’...
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Mauro Rosso
pesquisador, ensaísta,escritor; amante do cinema.
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