quinta-feira, 3 de maio de 2012

Euclydes da Cunha e o sertanejo


para quem não sabe (ou olvidou), 3 de maio é Dia do Sertanejo. oportunidade para conhecer o quanto e como o homem do sertão foi objeto da pioneira interpretação étnica por parte de Euclydes da Cunha 

A  etnia brasileira foi um dos temas  que mais mobilizaram Euclydes da Cunha  para a formulação de reflexões sobre a nacionalidade, per se um tópico já excepcionalmente preponderante  em seu arcabouço intelectual – no que,entre outra considerações e  proposições,preconizava “a definição exata e o domínio franco (...) da nossa nacionalidade; aí está a nossa verdadeira missão”.
No capítulo “O homem”,de Os sertões,expôs analiticamente as origens do homem americano, a formação social do sertanejo,e em especial os “malefícios da mestiçagem”: numa espécie de teoria étnica fatalista , admitia a história brasileira ter sido construída por meio do choque entre etnias e culturas condenadas ao desaparecimento -- rigorosamente de acordo, diga-se, com as teorias do sociólogo austríaco Ludwig Gumplowicz(sociólogo austríaco , considerado um dos fundadores da sociologia ,estudioso e teórico de conflitos nacionais, raciais e sociais, formulador da tese de a  História guiada pela luta entre raças): é obrigatóro, no entanto, considerar essas teorias e postulados, a postura e o pensamento de Euclydes à luz dos conceitos étnicos da época, obviamente diferentes dos de hoje.
A princípio, lastreado em Gumplowicz , Euclydes não julgava possível um único tipo étnico no Brasil -- “não temos unidade de raça,não a termos nunca; até porque nenhum país a tem igualmente, por toda parte os cruzamentos sucessivos impediram a conservação do tipo primitivo” – enquanto que  “(...)a  mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial(...)” sendo “(...) a mestiçagem extremada um retrocesso(...)”, uma vez que “(...) não se compreende que após divergirem extremamente através de largos períodos, entre os quais a história é um momento, possam dois ou três povos convergir, de súbito, combinando constituições mentais diversas, anulando em pouco tempo distinções resultantes de um longo trabalho seletivo. Como nas somas algébricas, as qualidades dos elementos que se justapõem, não se acrescentam, subtraem-se ou se destroem, segundo os caracteres positivos e negativos em presença(...)”.
Nesse sentido, ao mesmo tempo em que reiterava a falta de “integridade étnica” do brasileiro, por exemplo em trecho do artigo “Nativismo provisório” ,da coletânea Contrastes e confrontos “(...)falta-nos integridade étnica que nos aparelhe de resistência diante dos caracteres de outros povos.O Brasil não é como os Estados Unidos ou a Austrália, onde o inglês, o alemão ou o francês alteram e cambiam as qualidades nativas ou as refundem e refinam, originando um tipo novo e mais elevado do que os elementos formadores. Está numa situação provisória de fraqueza, na franca instabilidade de uma combinação incompleta de efeitos ainda imprevistos, em que a variedade dos sangues, que se caldeiam, implica o dispersivo das tendências díspares, que se entrelaçam(...)”; ou em “O Brasil mental”, publicado em O Estado de S.Paulo,julho 1898,  Euclydes obedecia à crença na inferioridade dos não-brancos -- mas com uma nuance: explicando a guerra em Canudos como resultado do choque entre os mestiços do sertão, oriundos de brancos com índios, e os mestiços do litoral, originários de brancos com negros, enaltecia o sertanejo que  detinha vantagens sobre o mulato litorâneo por força de seu isolamento que propiciara  evolução racial e cultural  mais estável – “o sertanejo é antes de tudo um forte, não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral”. Observa que “ao invés da inversão extravagante, que se observa nas cidades do litoral, onde funções altamente complexas se impõem a órgãos mal constituídos, comprimindo-os e atrofiando-os antes do pleno desenvolvimento - nos sertões, a integridade orgânica do mestiço desponta inteiriça e robusta, imune de estranhas mesclas, capaz de evoluir, diferenciando-se, acomodando-se a novos e mais altos destinos, porque é a sol ida base física do desenvolvimento moral ulterior."
O ceticismo étnico euclidiano não era contra o mestiço em si, mas contra o mestiço do litoral. O sertanejo,no desenho literário-antropológico que construiu, era o resultado da convergência e interação, formando uma ‘sub-raça superior’ (sic) , entre a bravura indígena e a ousadia dos bandeirantes paulistas ,com seu “destino histórico de assaltar o deserto (...)cruzados destemerosos a desencadear a atividade arroteadora e valorizadora dos espaços interiores do território,integrando-os (...)”– difundindo aqui outro elemento até então inédito, junto ao mito do sertanejo: o mito do bandeirante, depois absorvido e assumido em estudos marcantes do ensaísmo brasileiro(em Taunay, Oliveira Viana,Vianna Moog). Na verdade, Euclydes edificou a imagem do homem do sertão como um ser autêntico, enraizado na terra, dotado de cultura e evolução próprias e autônomas , capaz inclusive de criar o brasileiro do futuro – como “rocha viva da nacionalidade”,inclusive comparando-o ao granito,composto de três minerais, assim como o homem brasileiro ,advindo do branco,do índio e do negro.
Posteriormente, sob o revisionismo pungente que elaborou, passou a ter o sertanejo --  segundo ele, um tipo étnico-social diferenciado -- como o único elemento de esperança de constituir no Brasil uma população homogênea , porquanto “as vicissitudes históricas o libertaram,na fase  delicadíssima de sua formação,das exigências desproporcionais de uma cultura de empréstimo”.
Revisionismo que ,de resto, à reformulação das concepções étnicas euclidianas pós-Canudos se acresceria a revisão advinda da vivência amazônica, em que a presença do homem e sua relação com o meio era afirmada pela mestiçagem étnica , o mestiço amazônico não mais visto como desenhara o sertanejo  nordestino -- biologicamente incapaz, assim tido antes de Canudos,descrito no Diário de uma expedição,não aquele sertanejo depois exposto em Os sertões --o Eucydes da Amazônia mais ‘evoluído’ ainda com relação ao Euclydes dos sertões,que por sua vez já  se diferenciava do Euclydes antes de Canudos.

raça e civilização,contra “a barbárie”

A rigor, as concepções e considerações étnicas de Eucydes acoplam-se, interagem e se intertextualizam com seus conceitos de civilização e o “movimento civilizador” que preconizava – ou processo civilizatório para o qual a República teria sido um decisivo passo: civilização,como citado, constituía um dos pólos de um dos ‘eixos binários euclidianos’.[raça-civilização].Desde seus primeiros textos,com efeito, o termo e o conceito de  “civilização” aparecem uma força histórica e como uma lei natural, até porque inerentes ao ideário positivista e evolucionista, a civilização como o modelo de desenvolvimento para a humanidade.  : “a civilização é o corolário mais próximo da atividade humana sobre o mundo; (...) o seu curso, como está, é fatal, inexorável”. Não obstante surgir sob certos ângulos como  imposição estrangeira, uma indesejável pressão exterior - num momento histórico de luta intelectual pela construção de uma identidade nacional, que se queria livre de fórmulas invasoras -- é taxativo : “Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos.” No entanto, Euclydes ,sob as variações de seu pensamento, se apropriava da idéia de civilização, tão alardeada nos círculos republicanos do período, como um termo e uma noção de um lado basilar no que tange a ser o contraponto à sua antítese -  a “barbárie”, de outro, móvel, porquanto a civilização que avançava sobre os sertões perpetrava um crime de  destruição e morte –a  mesma civilização como modelo de organização, como ordem social por excelência, era também produtora de violências.
[este texto integra meu livro Escritos de Euclydes da Cunha; política,ecopolítica,etnopolítica (PUC-Rio\Loyola, 2009)

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