quinta-feira, 1 de março de 2012
Pelo aniversário do Rio
O aniversário da cidade neste 1º. de março, oferece excelente oportunidade para, em torno de uma coleção de livros sobre o Rio de Janeiro, tecer um exercício de reflexões,ilações e interações,vis a vis, entre quatro de seus mais representativos escritores e quatro de suas obras.
Espelhos : o Rio de Janeiro visto pelos seus escritores
Coleção, preciosa na forma e no conteúdo, enfoca a cidade sob as lentes e as penas de seus mais representativos escritores
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Caso exemplar de continente – a exuberante forma editorial-gráfica – integrado à perfeição ao conteúdo – as magníficas criações literárias de grandes escritores, uma coleção, importante em todos sentidos, cujo primeiro conjunto abre possibilidades de formulação de interessantes estudos e reflexões sobre interações entre as peças que o compõem. A rigor, mostra muito mais do que o geográfico-urbano-espacial elo comum entre o Rio e notáveis literatos: traz outros elementos de relações, encadeamentos e ilações -- estas tanto de identificação quanto de contraposição -- entre as quatro obras, seus autores e... seus personagens.
A par de ilações concretas de cunho intelectual e literário entre os escritores e as obras em tela, mencionemos a existência efetiva de relações de ordem pessoal – amistosas, num caso; de franca antipatia mútua,em outro : enquanto Manuel Antonio de Almeida e Machado de Assis guardavam excelente relacionamento e até afinidades afetivas entre si (mas também marcantes ilações literárias, como se verá)– Almeida,.além de ter sido chefe de Machado na oficina da Imprensa Nacional,iniciando-o na arte e atividade de tipografia, introduziu-o na Sociedade Petalógica e no seleto círculo intelectual em torno de Paula Brito e foi seu grande incentivador para o fazer literatura; Machado, inclusive,dedicou a ele o (importantíssimo) artigo “O jornal e o livro”, publicado em janeiro 1859 (ele, com menos de 19 anos e meio) no Correio Mercantil – de outro lado, Lima Barreto e João do Rio se antegonizavam, nutriam forte animosidade um pelo outro.E entre Machado e João do Rio deu-se curiosa episódio : Machado nunca respondeu ao questionário que,em 1899, João lhe submetera para a coletânea, de entrevistas com diversos escritores, O momento literário, e acabou não aparecendo – não se sabe até hoje porque – na obra, publicada em 1904..
Em outro viés – aqui de natureza digamos ‘filosófica’ -- em Machado de Assis e Lima Barreto as diferenças e divergências entre ambos escondem proximidades e até mesmo identidades bastante significativas (veiculei estudo a respeito, exatamente com esse título, “Diferentes, divergentes, mas próximos muito próximos”, no qual promulgo Lima Barreto e Machado de Assis como verdadeiros, natos, ‘parentes literários’. Ainda que bastante diferentes, ambos muito próximos de várias maneiras – essencialmente semelhantes em concepções filosóficas, temas, influências, pontos de vista,mesmo que sob formas,modos e discursos distintos. De modo convergente, mas de forma divergente, analisaram os cenários políticos, históricos,institucionais,sociais,culturais de suas épocas e a existência do homem --: Machado, privilegiando as nuances, dissecando-o em sua essência ,revelando sutilezas, contradições e ambigüidades psicológicas; Lima, sem linhas e focos enviezados, desnudando suas fraquezas, insuficiências, submissões, condições sociais. Se Machado inaugurou o psicologismo na ficção brasileira, Lima introduziu o tema da incomunicabilidade, do isolamento existencial e social.)
Por outro lado, notáveis – e sem o serem inusitadas ou surpreendentes - são as intertextualidades, quer de interações quer de contraposições, explícitas ou=implícitas, entre as quatro obras e os quatro autores. ’Sob um viés, Memórias de um sargento de milícias irradia genericamente para Casa Velha e para Triste fim de Policarpo Quaresma um vetor de estado e posturas de autoritarismo, concreto ou latente: o autoritarismo ditatorial de Vidigal, em Memórias... é do mesmo naipe do de Floriano,como tratado em Policarpo Quaresma – de que aliás é o personagem principal, sem dúvida – e de outro tom no autoritarismo doméstico,familiar de d. Antonia em Casa Velha.
Leonardo Filho, Lalau e Policarpo Quaresma, cada um a seus modo, feitio e circunstâncias, são personagens que reagem a pressões, por vezes intoleráveis, de uma sociedade dominadora, patriarcal, ou de um ambiente matriarcal(como em Casa Velha ) – de resto, também o que se dá com os personagens de Lima Barreto, no geral de sua ficção : Leonardo Filho e Policarpo agem, mas sofrem as sanções da sociedade e do sistema político -- para o primeiro,ainda colonial; para o outro, já republicano -- que os sufocam e ferem; Lalau, de um imperial âmbito familiar,doméstico, e de esfera social.
Quer em Memórias de um sargento de milícias, em Casa Velha , quer em Triste fim de Policarpo Quaresma, personagens, situações,tramas – e os autores – ‘subjugados’ ao Estado,onipresente, seja “no tempo do rei”, seja ‘sob o manto imperial’(em 1839),seja sob a ‘mão pesada da República’.
Não chego a dizer e sustentar que Memórias de um sargento de milícias e Manuel Antonio de Almeida sejam a obra e o autor capitais, centrais, deste conjunto, mas podem ser vistos como um pólo gerador de eixos de ilações e recorrências com as demais obras e autores. Antonio de Almeida e sua obra -- emblemática de uma inflexão temática, tramática e estilística no romantismo literário brasileiro -- ‘interagem’ com Machado de Assis não só na antecipação do Realismo, mas também, e especificamente,no que Memórias de um sargento de milícias --‘anárquica’, ‘picaresca’(conotação, na verdade, cunhada por Mario de Andrade , é questionada por Antonio Candido,em seu primoroso ensaio “Dialética da malandragem”, para quem Leonardo Filho antes de ser um ‘pícaro’ é, sim, o primeiro malandro da literatura brasileira . No entanto, para ‘simplificar’ e evitar estender o que não é propósito deste comentário, aceitemos e adotemos essa designação mesmo.) -- prenuncia Memórias póstumas de Brás Cubas (1881)– ‘inovadora’, ‘revolucionária’, marco da inflexão machadiana e de rito de passagem para o Realismo literário brasileiro,e da qual – convém notar - Casa Velha(1885),na produção romanesca machadiana, é seqüente.
Mais do que ‘picaresca’[sic] ou outra conotação que se lhe atribua, Memórias... é antes de tudo, um romance social – como aliás são os de Lima Barreto. Mas é também uma história do amor de Leonardo Filho por Luisinha – esta, ao contrário, de Lalau, de Casa Velha, e de certo modo de Olga, de Policarpo Quaresma, é mocinha burguesa, com herança e meneios dissimulados. A obra de Antonio de Almeida também retrata uma família – Leonardo Filho, seu pai e sua mãe, aliás o núcleo central do elenco de protagonistas, como o são em Casa Velha d. Antonia,Lalau e Félix. Na obra de Machado de Assis há a contraposição ao mundo patriarcal representada pela figura de d. Antonia, e em dada escala por Lalau, não de todo submissa às regras sociais (embora de comportamento dentro da ‘ordem’); em Memórias de um sargento de milícias personalizada essa contraposição,e confrontante com a ordem estabelecida, por Leonardo Filho: ele e Lalau são dotados, cada um per se, de elementos simbólicos, como personagens –representantes das classes não-dirigentes [e caberia aqui uma especulação- claro que numa escala ‘surreal’ : Lalau poderia se interessar,e vice-versa, por Leonardo?...]
Ambas as obras e seus protagonistas como veículos de hilariantes sátiras sócio-políticas, das instituições, Policarpo Quaresma como uma espécie de Leonardo Filho ao contrário : se aquele é modelo do patriota, este é o antipatriota. Enquanto Leonardo Filho sofre a repressão de uma sociedade forte,preocupada com a ordem pública, Policarpo convence-se da necessidade de um governo forte -- o que o leva a apelar ao poder de Floriano Peixoto e alistar-se no exército florianista.
No geral e em essência, o universo dos personagens da obra de Antonio de Almeida – empregados, subempregados, desempregados, biscateiros; destituídos, marginalizados, etc – é o universo ficcional de toda a obra de Lima Barreto.
Os dois autores, ‘contestadores’ da ordem – não apenas numa,digamos, ideologia de suas respectivas tramas e temas ficcionais, mas também na forma literária: as escrita e linguagem ficcional imprimidas em Memórias.guarda identidades com as escrita,estilo e linguagem literária de Lima Barreto, ambas coloquiais,despojadas,fluentes,lastreadas na oralidade.(“antinefelibatas”, segundo Lima).
Identificação e ‘entrocamento’ entre Lima e João – não obstante as antipatia e animosidade de um pelo outro no campo pessoal -- que não se dá apenas nesse terreno subjetivo de comportamento social mas também em vívidos aspectos comuns da realidade de origem e de vivência de cada um.
Ambos naturais e falecidos no mesmo Rio de Janeiro – João do Rio nascido em 1880, Lima Barreto em 1881(aliás, ano de publicação de Brás Cubas,marco ficcional machadiano); João, morto em 1921, Lima em 1922 : um ano a separá-los em seus nascimentos e mortes – Lima oriundo de família modesta, de funcionário público empregado pela Monarquia, amante de seus ‘adoráveis subúrbios’,rebelde e automarginalizado; João, de família de classe média, abolicionista,positivista, republicana, dândi integrando-se gradativamente às altas esferas da soiedade e às elites ; os dois vividos na mesma cidade,então em ebulição, pela pretensa modernização, ambos sob a mesma República, João, entusiasta incondicional, Lima, crítico visceral.
Mas, embora dotados de ideologias, posturas, visões e interpretações nada convergentes, ambos profundamente interessados na cidade e no seu habitante.
É nesse sentido e com essa índole que João do Rio registra, apregoa, expõe, dissemina e exalta a “alma encantadora das ruas” da cidade – que por sua vez está também nos becos,ruelas,ladeiras, por onde Leonardo Filho e os personagens transitam ‘picarescamente’[sic] na obra de Manuel Antonio de Almeida e onde Lima Barreto constrói e ambienta todas suas tramas ficcionais. Os mesmos contingentes sociais da cidade povoam literariamente as obras dos três escritores.
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