domingo, 30 de dezembro de 2007

mulheres alencarinas


Não há como encerrar o ano sem registrar o sesquicentenário (150 anos) de publicação de uma das primeiras obras ficcionais de José de Alencar – A Viuvinha, à qual está acoplada, por assim dizer, Cinco minutos que imediatamente lhe antecedera,um ano antes(1856).


Ambas , longe de expressaram apenas os exercícios literários iniciais de um estreante, exibem de modo insofismável — inclusive por suas inovações temáticas e formais — as extraordinárias aptidões, o incomparável talento do ‘patriarca do Romantismo brasileiro’, o criador profícuo de obras em praticamente todos os gêneros.Alencar foi novelista, romancista, dramaturgo, ensaísta, articulista, polemista,político e sobretudo intelectual empenhado no fomento e sedimentação de uma língua literária brasileira, envolvido na formação de um verdadeiro nacionalismo cultural.Suas múltiplas atuação intelectual e manifestações literárias tiveram especificamente no denominado ‘romance urbano’ uma de suas vertentes mais criativas e dinâmicas, afinado com o tempo do Romantismo incipiente advindo do processo de Independência política do País e as alterações dos modus econômico e social -- em sintonia, sim, mas suplantando o tônus comum aos primeiros romances com um teor de crítica aos novos valores e paradigmas comportamentais.Nas duas novelas já se encontram esboçados os contornos do típico romance urbano alencariano , seu olhar e sua leitura sobre personagens femininas, seus característicos “perfis de mulher”, seu estudo sobre os modos, costumes e vícios da sociedade patriarcal da época e sobre as relações sociais — desenvolvidos depois em Lucíola, Diva , em A pata da gazela e em Senhora . Em ambas aparecem exercícios inovadores não apenas de temática mas também de forma — dialogicidade interna, metaficção e intertextualidade — praticados pela primeiríssima vez na literatura brasileira e que somente muitos anos depois seriam utilizados por outros escritores,notadamente Machado de Assis.

Ode ao amor nos perfis femininos

“Cinco minutos e A Viuvinha têm mais força que O guarani."

do bibliófilo José Mindlin


Em meados do século XIX, o Romantismo implementado no País, as mulheres da burguesia costumavam socializar as obras literárias por meio da leitura coletiva de jornais. Enquanto bordavam, em grandes salões, se emocionavam com o simples e mágico ato de ler em voz alta e por meio dessas leituras, autores românticos penetraram na sociedade através desse público ouvinte para quem, gradativamente, se habituavam a escrever. Esses momentos exalavam prazer, soluços, risos e gozo, sentimentos provocados pelos romances românticos e seus personagens marcantes. José de Alencar, ao desvelar as várias faces de um Brasil recém independente, em busca de suas singularidades para delinear e sedimentar a identidade nacional, iniciar os brasileiros no conhecimento da realidade de seu país adentrava na intimidade burguesa da cidade do Rio de Janeiro.No pano de fundo histórico universal em que veio a se desenrolar matizes do Romantismo brasileiro, a ascensão da burguesia e a Revolução Industrial— advindas da Revolução Francesa, que fortaleceu o desenvolvimento das idéias liberais — reforçaram as bases do capitalismo, e em meio a isso, a degradação da classe dominante e dos que desejam ascender socialmente a qualquer preço. Em função da ânsia de ganhos que começa a prevalecer na mente das pessoas, para um certo segmento da sociedade surge o sentimento de frustração, de perda de valores, já que o homem começa a degradar-se para conseguir uma boa posição social. E nisso reside o cerne do teor crítico imprimido por Alencar , em maior ou menor grau, a seus romances urbanos, —como por exemplo as vicissitudes do personagem Jorge em A Viuvinha, que “(...) começou a viver essa vida dos nossos moços ricos, os quais pensam que gastar o dinheiro que seus pais ganharam é uma profissão suficiente para que se dispensem de abraçar qualquer outra, essas esterilidades a que se condenam homens que, pela sua posição independente, podiam aspirar a um futuro brilhante (...), (...) essa descuidosa existência da gente rica, apesar do novo progresso econômico da divisão do trabalho, que multiplicou infinitamente as indústrias, e por conseguinte as profissões, a questão ainda é bem difícil de resolver para aqueles que não querem trabalhar (...), (...) em uma época em que dominava a vertigem do suicídio”No contraponto a esse cenário de realidade social, se Alencar o denuncia e critica, não deixa de, como todos os românticos e seu ideário ficcional, pretender o predomínio da emoção sobre a razão, a liberação dos sentimentos dos sentimentos, a redenção e superação do materialismo pelo amor, a resistência “a todas as seduções do mundo, sucumbir à força poderosa do amor puro e desinteressado”.

Escritor romântico por excelência, José de Alencar insiste na idéia de que o amor é um instrumento eficaz contra a despersonalização capitalista.Alencar soube como ninguém desnudar o modo de vida na Corte, retratar o cotidiano do Segundo Império , denunciar a burguesia negociando casamentos e amor, dramas morais e afetivos, tipos femininos imersos nos problemas de amor e do casamento, sob o manto do patriarcalismo ou do matriarcado, os costumes morais, sociais e políticos da sociedade burguesa da Corte do Segundo Reinado como o centro do romance urbano — mas sob enredo sempre idealista, concebido segundo a imaginação e o sentimentalismo romântico. Mesmo ao adotar o modelo balzaquiano de composição romanesca e observação social, Alencar conserva em sua obra um certo ranço moralista inexistente na visão de mundo de Balzac.

José de Alencar jamais perde a visão de conjunto de sua narrativa. Se a ação de seus personagens faz surgir acontecimentos que parecem bordejar o inverossímil, isso se dá por um momento fugaz,como brilhante recurso narrativo — afinal, alerta ele tanto em Cinco minutos como em A Viuvinha, “é uma história curiosa a que lhe vou contar, minha prima. Mas é uma história, e não um romance" ; “não escrevo um romance, conto-lhe uma história. A verdade dispensa a verossimilhança”.E tudo acaba por explicar-se convenientemente, e o leitor termina ‘pacificado’.Este processo de compensação, presente e permeante em toda sua obra, começou a ganhar foro de estilo (o ‘estilo Alencar'’) a partir justamente dessa primeiras experiências de romance urbano (seus “ romancetes”). Em ambos utiliza o expediente, inédito à época, da figura da “prima D...”, condutora do desenrolar das intrigas das novelas, interlocutora privilegiada, nomeada como responsável pela fé depositada no escritor , com quem inclusive o autor ‘dialoga’, a la Machado de Assis (bem antes deste) — “perdão, minha prima; não zombe das minhas utopias sociais; desculpe-me esta distração; volto ao que sou, simples e fiel narrador de uma pequena história”.

Nessas duas novelas precursoras, a história em contraposição ao romance, inovador ainda é o elemento metaliterário utilizado em Cinco minutos quando envia à ‘prima’ a cópia de um hipotético manuscrito realizada por ele e Carlota "nos longos serões das nossas noites de inverno " — a ficção dentro da ficção, inaugurando elemento somente muitos anos depois utilizado na literatura brasileira.O narrador em ambas as novelas,como quase todo narrador romântico, procura criar a impressão de que o seu relato é verídico: teve existência real antes de assumir a forma literária. Esse narrador, enfim, confunde-se com um outro "eu" inventado por Alencar em seus romances urbanos, a tonalidade de voz assumida na transmissão de Cinco minutos e A Viuvinha, depois em Lucíola, é semelhante à de Senhora —todos muito diferentes do acento narrativo de Iracema ou de O guarani.Já nessas duas obras iniciais Alencar põe mais alta a essência da feminilidade, mas traçando o perfil da “mulher cordial,romântica, idílica”—distinto da “mulher cerebral”, depois desenhado em Lucíola e mais adiante com rigor e plenitude em Senhora— perfil inerente tanto a Carlota (sobretudo), de Cinco minutos como a Carolina , de A Viuvinha (embora esta também contenha “vivacidade e malícia”), ambas por sinal preponderante mulheres “em vestido de seda preta”.Em Cinco minutos, o narrador em primeira pessoa — relatando sua estória em carta à “prima D...” —é um típico ‘herói romântico, apaixonado, arrebatado por um amor irresistível’: um exemplo clássico do Romantismo ao mostrar ‘o amor puro, casto, duradouro e curativo, sentido por duas almas gêmeas perfeitas, com o destino interpondo-se no caminho e resolvendo-se no final’.Em A Viuvinha, narrada em terceira pessoa —também à “prima D...” — o personagem principal é moldado, a princípio um pouco distante daquilo que se espera de um herói tipicamente romântico : Alencar desfila seus olhos pelas mazelas morais que são fruto do capitalismo nascente e do culto ao perdularismo advindo da acumulação financeira, mas como homem de seu tempo , não dá a Jorge as dimensões funestas dos personagens que seriam típicos mais tarde no Realismo, espicaçando-lhes os desvios de comportamento, ao contrário acaba por redimi-lo. Lapidar romântico que era, procura, na realidade, preservar a altivez e a pureza de seus heróis e no caso de Jorge, usa o subterfúgio do amor verdadeiro que este sente por Carolina para garantir a redenção do herói no final, com um mistério antecedendo a resolução que é uma característica dos românticos.

[excerto de estudo crítico da obra Cinco minutos e A Viuvinha,de José de Alencar : edição comentada, de Mauro Rosso]

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