domingo, 18 de janeiro de 2015

OUI, CE SONT CHARLIE - I

 "Humor tem se ser crítico, senão vira 'secos e molhados'; Imprensa tem de ser oposição, senão é propaganda". [
 Millor Fernandes] 
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 Já se disse, e a vida , também por que não a própria História, confirma isso, que nada é ao mesmo tempo mais individual, cultural e universal do que o humor. Praticado em exemplos clássicos desde a Antiguidade , pelo grego Aristofanes ou pelo latinos Plauto e Terencio, na complexa Idade Média , do saxão Chaucer e do florentino Boccacio, no profícuo Renascimento ,do espanhol Cervantes, do francês Rabelais, do inglês Shakespeare, o riso acompanha o mundo e os homens nas formas,graus e jeitos mais variados , mesmo que seja (diria eu, principalmente que seja) para a humanidade gozar dela própria e sorrir, ou satirizar, ou pilheriar, ou debochar da eterna tragédia humana.
É preciso por outro lado ficar claro que o humor não se manifesta pela matriz básica da piada, da gargalhada,do deboche , mas se expressa por tantos matizes -- como por exemplo a irreverência, a paródia , a metáfora, a parábola, o tragicômico e o melodramático, ou a sátira política, a crítica social e comportamental -- quanto sejam adequados para retratar o ridículo,o patético . O humor, a História mais uma vez nos prova, muitas vezes é muito perigoso, inúmeros são os casos daqueles que, só para ficarmos no terreno da literatura, foram ‘retribuídos’ com prisão , ou exílio, ou desterro, ou morte : aliás, já que adentramos na seara literária, convém lembrar que o humor na literatura é feito desde que o mundo é mundo, por escritores, antigos, ocidentais, orientais, medievais, renascentistas, clássicos, modernos, contemporâneos ,pós-modernos – e até mesmo por aqueles tidos como sérios,sóbrios,sisudos,austeros, como se verá\lerá em um inusitado caso aqui.
O que dizer então, nesse particular, do brasileiro,cuja proverbial natureza bem-humorada [sic] faz dele,ou fez dele, um estereótipo, aos olhos universais, da alegria em sua conceituação mais original. Verdade ou mito, o sorriso, a anedota, a ironia, o sarcasmo, a galhofa, a comicidade parece ter concedido uma espécie de ‘marca registrada’ ao nascido, ou habitante, destes trópicos – sob tal ótica, nada ‘levistraussianamente’ tristes.
E o cômico brasileiro, assevera ainda a cartilha, atinge sua mais perfeita tradução, ou expressão, no carioca, a cidade do Rio de Janeiro erigida à capital da gargalhada nacional -- respeitadas evidentemente outras searas geográficas,e antropológicas, onde também se pratica esse ‘esporte’ pátrio(como esquecer,por exemplo, Juó Bananére e Alcântara Machado em São Paulo: Bernardo Guimarães em Minas Gerais:; Ascenso Ferreira,e até Gilberto Freyre – sim ! -- em Pernambuco;QorpoSanto, no Rio Grande do Sul; Gregório de Mattos – o irresistível “Boca do Inferno” -- na Bahia :.
Mais : dessa matriz da irreverência , extrai-se a inevitável vertente fescenina, dito o fescenino como licencioso, lascivo, devasso, obsceno, ou pornográfico mesmo , por vezes escatológico, grotesco -- todos clandestinos no nascedouro e primeiros tempos de existência, muitos deles de autoria anônima, somente depois identificados seus autores verdadeiros, ‘não publicáveis’,escondidos e guardados a ‘setenta mil chaves’, mantidos ou destruídos sob ação censória oficial,institucional ou particular.
fesceninos -- creio aqui muitos, senão todos saberem --compõem o conjunto para livro que finalizo.
´Charlie fescenino' é por exemplo Bob -- pseudônimo de renomado, consagrado, canônico, clássico , e tido como comportado, escritor brasileiro.
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O pecado
Bob
A Anacleta ia caminho da igreja, muito atrapalhada, pensando no modo porque havia de dizer ao confessor os seus pecados... Teria a coragem de tudo? E a pobre Anacleta tremia só com a idéia de contar a menor daquelas cousas ao severo padre Roxo, um padre terrível, cujo olhar de coruja punha um frio na alma da gente. E a desventurada ia quase chorando de desespero, quando, já perto da igreja, encontrou a comadre Rita.
Abraços, beijos... E lá ficam as duas, no meio da praça, ao sol, conversando.
— Venho da igreja, comadre Anacleta, venho da igreja... Lá me confessei com o padre Roxo, que é um santo homem...
— Ai! comadre! — gemeu a Anacleta — também para lá vou... e se soubesse com que medo! Nem sei se terei a ousadia de dizer os meus pecados... Aquele padre é tão rigoroso...
— Histórias, comadre, histórias! — exclamou a Rita — vá com confiança e verá que o padre Roxo não é tão mal como se diz...
— Mas é que meus pecados são grandes...
— E os meus então, filha? Olhe: disse-os todos e o Sr. padre Roxo me ouviu com toda a indulgência...
— Comadre Rita, todo o meu medo é da penitência que ele me há de impor, comadre Rita...
— Qual penitência, comadre?! — diz a outra, rindo — as penitências que ele impõe são tão brandas!... Quer saber? contei-lhe que ontem o José Ferrador me deu um beijo na boca... um grande pecado, não é verdade? Pois sabe a penitência que o padre Roxo me deu?... mandou-me ficar com a boca de molho na pia de água benta durante cinco minutos...
— Ai! que estou perdida, senhora comadre, ai! que estou perdida! — desata a gritar a Anacleta, rompendo num pranto convulsivo — Ai! que estou perdida!
A comadre Rita, espantada, tenta em vão sossegar a outra:
— Vamos, comadre! que tem? então que é isso? sossegue! tenha modos! que é isso que tem?
E a Anacleta, chorando sempre:
— Ai, comadre! é que, se ele me dá a mesma penitência que deu á senhora, — não sei o que hei de fazer!
— Porque, filha? porque?

— Porque... porque... afinal de contas... eu não sei como é que... hei de tomar um banho de assento na pia!..

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