segunda-feira, 29 de dezembro de 2014
2014, um ano de ‘entradas na posteridade’— IV
significativo, histórico este ano – nele se dá
o 175º. aniversário de nascimento da maior figura da literatura brasileira. predestinado foi Machado de Assis naquele 21 junho 1839 quando vindo ao mundo
dos homens, na chácara do Livramento no Rio de Janeiro, abria as portas da
posteridade que se configuraria pelo supremo quilate de sua obra.
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Machado de Assis, esfinge de transcendência literária
“Decifra-me – mas não te devoro”[sic] : parece dizer Machado de Assis,
dirigindo-se ao leitor.
Brincadeira, talvez... – mas
expressa uma espécie de lema machadiano a pautar as relações com aquele que o
lê.; Machado, na verdade, ‘brinca’ (no bom sentido), essencialmente na
crônica,no conto, até no romance, com aquele que o lê. Em seus textos, às
características de leveza de tom , fluência textual e estilística muito
próxima da oralidade, ironia satírica e pilhéria, metáfora e paródia, alia-se a
presença incisiva dos admiráveis elementos machadianos do disfarce, da
dissimulação, do subterfúgio, da sutileza, postos como desafios ao leitor..
A nem sempre linear narrativa,
ficcional ou não-ficcional – na crônica, por exemplo, nela predominante a “arte
das transições”, levada a extremos no unir tópicos aparentemente distintos, um
parecendo não ter nada a ver com outro, mas que justapostos oferecem um
resultado surpreendente; no conto,
oferecidas explícitas ou veladas armadilhas retóricas e significados ocultos -- tem seu
trajeto ‘amenizado’ para o leitor
, primeiro desviando-o do tema principal, depois retornando e
reintegrando-o,numa espiral de circularidade muitas vezes nem percebida de
todo. Machado esconde ou disfarça uma
parte da verdade e desafia o leitor a descobri-la e fazê-la emergir -- o
conhecido narrador machadiano, o ‘narrador volúvel’, presente tanto na ficção
quanto na não-ficção..
Sua
obra parece sempre ‘pronta’ a oferecer e
revelar surpresas – não fosse ele autêntico mestre do subterfúgio, da
dissimulação, da sutileza, do disfarce e do enigma, inclusive por meio de
outras de suas peculiaridades, o uso do anonimato e do pseudônimo: foram quase
40 assinaturas em contos (como eram publicados em folhetins, por vezes uma
assinatura diferente para cada capítulo) e em crônicas.
Um, ou o, Machado ‘misterioso’ fez
seu debut literário, por assim dizer, logo em seu primeiro livro publicado, Queda que as mulheres têm pelos tolos,
em 1861 (antes, nesse mesmo ano,
veiculado em folhetins em A
Marmota ). Obra de extrema representatividade histórico-literária na
produção machadiana, revestida de características especiais de definição
genérica, conotação autoral, geradora de polêmica entre machadianos e de
fundamental, crucial relevância pelo que contém, e projeta, de elementos e
concepções que pautariam toda sua ficção literária.
Além
de abrigar um conjunto de peculiaridades que a fazem única e diferenciada.A
primeira de suas peculiaridades refere-se ao fato de ter despertado ao longo do tempo – não tanto
quando de sua publicação – dúvidas, daí uma salutar (culturalmente falando)
polêmica, quanto à sua condição de criação original ou tradução de Machado de
Assis,contendo em si, portanto, uma conotação de mistério,dúvida e polêmica,
que de resto apenas corroboram, por assim dizer, o ‘espírito’ machadiano de
fazer literatura.
Outra das particularidades --que se percebe de imediato – reside em
não constituir-se em um gênero definido, difícil de classificar nos
moldes tradicionais, aproximando-se mais de uma sátira e menos de um ensaio,
muito longe de ser um romance,uma novela, um conto ou uma crônica.
Sobretudo a multiplicidade da representatividade
histórica de Queda que as mulheres têm
para os tolos expressa-se em especial por deflagrar um elo de interações, afinidades e
intertextualidades , prenunciando,anunciando, antecipando e consubstanciando em
sua forma,linguagem,estilo e conteúdo muito
do que viria a seguir na lavra ficcional do autor. Que elos de
intertextualização são esses ? a)
como suposta tradução, inserida na
produção machadiana, constitui manifestação pioneira do conceito da tradução, a
incorporar a célebre “teoria do molho” ,
reaplicada e reutilizada numa perspectiva das teorias do comparatismo
elaboradas por ele próprio, em muitos
aspectos antecipadora da vertente atual dos estudos de Literatura Comparada ; b) a ‘teoria amorosa’ desenvolvida em
“Desencantos”, em Ressurreição, e chegando a Dom Casmurro –
o livro inaugural interagindo com a
primeira peça teatral, com o primeiro romance e
com a opera-mater : em todas
elas, a ‘ideologia’ da dubiedade,
da ambigüidade, da dicotomia ; c) a mulher como protagonista
primordial da ficção machadiana ,que
traz para o centro das discussões, o feminino e a questão da sexualidade feminina : nenhum escritor de seu tempo ‘edificou’ tanto a mulher como personagem
capital e leitmotiv básico de seus textos
como Machado ,que escrevia sobre mulheres e para mulher ; d)
a tríade tolo -- mulher -- homem de espírito , que
permeia toda a ficção machadiana, sob uma teia dramatúrgica presente em
contos e romances ao longo do tempo e da evolução literária de Machado
,transportando a 'ideologia' de Queda que
as mulheres têm para os tolos para
muitas das obras posteriores.
Em se tratando de Machado,
sabemos tudo ser possível – o feito pelo não-feito, o criado pelo traduzido, o
escrito pelo não-escrito. A alimentarem
especulações, ilações e interpretações em torno não apenas de Queda que as mulheres têm pelos tolos, a
rigor, um prenúncio do que se desenrolaria na produção literária de
Machado, mas de várias outras obras,
entre dúvidas , sutilezas e enigmas, disfarces
e subterfúgios -- que não faltam na obra e na carreira literária machadiana.
‘Mistérios’, subterfúgios,
disfarces, ‘jogos com o leitor’ à parte,
na verdade, sempre existiu em Machado um notável e meticuloso experimentador
-- mutável na utilização de
formas,estilos e modelos -- mas
absolutamente seguro,determinado e consciente.. Ao longo do tempo, sempre preocupou-se com configurações para sua obra –
essencialmente, tanto o conto quanto a crônica foram notáveis e eficazes
terrenos de experimentações narrativas, nelas se revelando uma seqüência
notável de exercícios formais,estilísticos, de linguagem e de enfoque ao longo
de sua produção e evolução literárias..
Evolução literária machadiana que
desenvolveu-se ao longo de sua vida
literária (e pessoal) como um todo coerente e consistente – obediente a escalas
e estágios – mediado por um período de marcante inflexão que antecede o que se
convencionou denominar ‘o grande salto’, a grande mudança -- que tanto instiga
estudiosos, pesquisadores,historiadores, críticos ; e leitores, claro. Inflexão
que, a par de contribuir positivamente para a análise e interpretação adequadas
da trajetória machadiana, em
contrapartida serve para sedimentar um conceito, ou avaliação, de muitas
formas discutível : a divisão da obra --
ficcional e não-ficcional -- de Machado em duas fases ,o ‘aprendizado’ versus a ‘maturidade’, a ‘formação’ versus a ‘radicalização’.
Para de uma vez por todas reformular
o conceito estabelecido sobre tal
dicotomia : a obra machadiana submete-se
a estruturas básicas que se superpõem, se interligam e se renovam “como um todo coerentemente organizado(...) à
medida que seus textos se sucedem cronologicamente certas estruturas primárias
e primeiras se desarticulam e se rearticulam sob forma de estruturas
diferentes,mais complexas e mais sofisticadas”, sentencia Silviano
Santiago. Na verdade, a estética ficcional e não-ficcional e o pensamento literário machadianos não podem
nem devem ser tão facilmente encaixados
nesses dois blocos distintos, até porque
se desenvolvem e se coadunam concomitantemente,seguindo, ambos, vis a vis,a
mesma linha no decorrer de toda sua carreira,apenas sedimentando-se e
amadurecendo consistentemente pós-1880 e nas obras seqüentes -- o romance Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e a coletânea de contos Papéis avulsos (1882), como
incontestáveis epígonos da transformação.
Nítida
e lídima é a relação-interação entre a
mudança do contexto político-social do Brasil do século XIX – notadamente a
partir de 1871 -- e as transformações formais e de conteúdo da obra machadiana,
em cujo cerne encontrava-se o pensamento político-histórico sobre o Brasil --
haja vista a extrema ‘presença’ da política,e do lúcido olhar para ela -- que
permeou e sedimentou a totalidade quer da
ficção quer da não-ficção, numa espécie de espinha-dorsal, no decorrer
de todas as ‘fases’ e estágios de sua trajetória literária.Machado percebeu
nitidamente a necessidade de fazer algo mais diferenciado – no plano estritamente literário, tanto do Romantismo
ainda vigente (para ele, já “acabado”) quanto do Realismo-Naturalismo, que então impunha
narrativas e descrições ao mesmo tempo minuciosas e contundentes da vida real (
via de regra surpreendendo,e muitas vezes ‘assustando’, o público-leitor); no plano histórico, em função da própria mutação política e
social que o país experimentava .
‘Dinâmico’ na construção e
sedimentação de sua vida literária,
obediente a um consciente,coerente e
consistente processo evolutivo, de ‘camadas’
superpostas, interligadas e re-articuladas ; ‘misterioso’, ‘enigmático’,
disfarces e subterfúgios postos a serviço e uso da criação ficcional e
não-ficcional – sempre ‘pronta’ a revelar surpresas(e inéditos...)-- Machado de
Assis e sua magnífica obra exemplificam e emblematizam à perfeição a sentença
do crítico e ensaísta Alcides Villaça: “é
papel da Literatura dar expressão ao que não a tem, revelar disfarçadamente o
que se disfarça de fato”. A relativização de valores constituía-se numa
estratégica de Machado para levar adiante seu projeto literário, e certa
contundência de suas relativizações, não
conclusivas em si mesmas,
propicia e estimula de resto reflexões e interpretações que servem para
valorizar e enriquecer mais e mais,através dos tempos, sua grandiosa obra literária.
Na qual evidencia-se e
sedimenta-se o vaticínio que ele mesmo formulou:
“A literatura, como Proteu, troca de
formas, e nisso está a condição de sua
vitalidade.”
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