sexta-feira, 15 de agosto de 2014

um conto inédito de Arthur Azevedo

do e-book CONTOS INÉDITOS DE ARTHUR AZEVEDO [Foglio\Objetiva; ago 2014; $5,00]
http://www.objetiva.com.br/livro_ficha.php?id=1423
[conjunto de especiais características: 15 contos inéditos de Arthur Azevedo – nunca publicados em livro ou obra impressa ou em outros meio e suporte que não a veiculação original em periódicos de diversas épocas e distintas etapas da vida literária do escritor (e da história política,institucional, social e cultural brasileiras). 
 reveste-se de notável relevância histórico-bibliográfico pelo duplo atributo de , a par do aludido ineditismo , poder contribuir para dar a público, e difundir, o contista Arthur Azevedo – muito mais conhecido e difundido como teatrólogo , mas ainda insuficientemente editado, publicado e estudado. Arthur Azevedo tem cerca de 25 por cento das mais de duas de centenas de contos que escreveu ainda inéditos, apesar de 8 - a principais -- coletâneas impressas publicadas ( suas crônicas – caso pior ainda – têm nada menos do que 85% delas inéditas em livro ou outra forma impressa ou digital .
- imprescindível é que um autor – um multi-autor, como ele -- não seja devidamente estudado,inclusive academicamente, editado,publicado,difundido,reconhecido como um dos grandes 'retratistas' e intérpretes da cidade do Rio de Janeiro, por extensão do Brasil,do final século XIX -início do século XX..
- incompreensível como um dos escritores brasileiros mais criativos e populares de todos os tempos, que em suas criações e escritos aliou expressiva quantidade a significativa qualidade, ainda tem grande parte de sua produção intelectual inédita
-
absolutamente indispensável recuperar e tornar conhecido esse relevante material --- a que me dedico, para recolher , organizar, editar e dar a público tanto os contos quanto as crônicas de um dos mais criativos, fecundos e valiosos escritores brasileiros de todos os tempos

um exemplo concreto (e insinuante) da irônica verve azevediana

------------------
Bolina por bolina
                                                                                I
Naquela tarde, o Medeiros, que morava numa das ruas transversais do Catete, estava no seu gabinete de trabalho, a ler uma folha da tarde,esperando a hora do jantar, quando d. Therezinha, sua esposa, chegou da rua, e foi ter com ele visivelmente agitada.
-- Que tens ?... aconteceu-te alguma coisa?
-- Estou furiosa!
-- Por que?
-- Fui bolinada!
--Bolinada?
-- Sim, no bonde... ainda agora, por um de teus amigos...
-- Qual deles? Perguntou o marido, erguendo-se de um salto.
-- Espera, deixa-me tomar fôlego, disse d. Therezinha, tirando o chapéu e sentando-se numa cadeira.
E erguendo a voz:
-- Eulália!
-- Senhora! acudiu a criada lá de dentro.
-- Dá cá um copo d’água, d. Therezinha suspirou ruidosamente e comentou:
-- Hoje, depois que saíste, fui à cidade comprar umas coisas que me faltavam para acabar um vestido que estou fazendo. Pouco me demorei. Estive na rua do Ouvidor... no largo de S. Francisco de Paula... e voltei ao largo da Carioca para tomar o bonde... Ele estava parado no largo olhando muito para mim...
-- Mas ele quem ?
-- Não me lembro o nome... Aquele sujeito de barba à Ando e monóclio, que me apresentaste um dia no Parque...Aquele?... Sabes?...
-- Não sei.
-- Ora, aquele foi advogado da Ernestina Rocha quando esta se divorciou.
-- Ah! o Moniz!
-- Moniz – é isso mesmo!
-- Não estarás enganada? Olha que o Moniz é um rapaz sério.
-- Sério? Vais ver a sua seriedade! – Como já te disse,ele estava parado no largo, a olhar com muita insistência para mim...
-- Mas tu não podias reparar que ele olhava com muita insistência para ti, se não olhasses com muita insistência para ele...
-- Pode ser, e foi talvez animado pelos meus olhares inocentes que o patife entrou no bonde e se sentou ao meu lado.
-- Falou-te?
-- Cumprimentou-me com muita amabilidade. Quis entabular conversa, disse-me que estava fazendo muito calor, que íamos ter mudança de tempo – mas como eu só lhe respondia por monossílabos imperceptíveis, calou-se. Quando chegamos perto do Passeio Público, senti o seu joelho encostado ao meu. Julguei que fosse por distração. Afastei o joelho... Ele insistiu... Medi-o de alto a baixo com um olhar repreensivo, mas o desavergonhado não se deu por vencido.
-- Miserável! Rosnou o Medeiros.
-- Quando o bonde fazia a volta da Lapa, o homenzinho encostou resolutamente a coxa na minha coxa! A primeira idéia que me acudiu foi bater-lhe com o leque na cara, mas recuei diante do escândalo...
-- E não fizeste nada?
--Levantei-me, fiz parar o bonde,desci, tomei um carro que passava, e vim para casa. Manda pagar ao cocheiro, que está esperando.

O Medeiros saiu do gabinete e mandou despedir o carro. Quando voltou, já d. Therezinha ali não estava: tinha ido para o seu quarto de toilette mudar de roupa.
Ele foi ter com ela, e disse-lhe:
-- Estou perplexo! Tinha o Moniz em conta de homem escrupuloso, incapaz de semelhante procedimento!
-- Pois aí tens.
-- E ele é casado.
--É. Com uma senhora muito mais bonita que eu. E dizem que tem cabelinho na venta! Ah! se ela soubesse...
-- Há de sabê-lo!
-- Hein?
-- Oh! o tratante pagará capital e juros! Afianço-te que tão cedo não se mete a outra!
-- O melhor é evitar o escândalo!
-- Ele que o evitasse!
-- Olha o que vais fazer!
-- Não te assustes!
-- Já estou arrependida de te haver contado o que se passou!
-- Fizeste bem; não te arrependas: as senhoras honestas assim procedem.
-- Pretendi apenas que conhecesses o grande amigo que tens.
-- Achas então que não devo fazer nada?
-- Deixe de cumprimentá-lo: é quanto basta.
-- Veremos. Anda daí! Vamos jantar que são oito horas.
O Medeiros e d. Therezinha jantaram alegremente, e não se falou mais no caso do bonde.
                                                                         II
D. Therezinha não deixava de ter razão: uma vez que ela protestara contra a audácia do reles bolina, e contara tudo ao marido, era desnecessário entre os dois uma explicação, da qual poderia resultar um escândalo público; bastava realmente que eles nunca mais se falassem, mas conquanto não tivesse a alma impetuosa de um corso, pensava o Medeiros que a vingança não era um prazer exclusivamente reservado aos deuses, e começou a ruminar um plano terrível de desagravo.

O acaso veio de encontro ao desejo.
Poucos dias depois do incidente que deixei narrado, o Medeiros, tomando ao sair de casa um bonde que ia para a cidade, descobriu, sentada a um canto, a esposa do Moniz.

Sentou-se ao lado dela, cumprimentou-a com muita afabilidade, e daí a pouco, enchendo-se de coragem, suspirou e pisou-lhe delicadamente um pé.

Ele esperava que ela se zangasse; desculpar-se-ia, dizendo-lhe: - Faço a vossa excelência o mesmo que seu marido fez à minha mulher; mas, oh surpresa! a dama abaixou o rosto e sorriu, lançando ao Medeiros um olhar de soslaio, um olhar que prometia, que dava quanto pedia um bolina!
A vingança do Medeiros foi muito mais completa que ele desejava, e, passados tempos, quando d. Therezinha lhe perguntou se havia tomado algum desforço contra o Moniz:
-- Tomei, filha, tomei; isto é, eu te digo: para falar a verdade, quem tomou não fui eu, foi a senhora.
                                                                                                                                              A.A.
                                                                                                                      [O Século 18 março 1907]
Foto: do e-book "CONTOS INÉDITOS DE ARTHUR AZEVEDO" [Foglio\Objetiva; ago 2014; $5,00]
http://www.objetiva.com.br/livro_ficha.php?id=1423

um exemplo concreto (e insinuante) da irônica verve azevediana
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Bolina por bolina

                                                      I
Naquela tarde, o Medeiros, que morava numa das ruas transversais do Catete, estava no seu gabinete de trabalho, a ler uma folha da tarde,esperando a hora do jantar, quando d. Therezinha, sua esposa, chegou da rua, e foi ter com ele visivelmente agitada.
-- Que tens ?... aconteceu-te alguma coisa?
-- Estou furiosa!
-- Por que?
-- Fui bolinada!
--Bolinada?
-- Sim, no bonde... ainda agora, por um de teus amigos...
-- Qual deles? Perguntou o marido, erguendo-se de um salto.
-- Espera, deixa-me tomar fôlego, disse d. Therezinha, tirando o chapéu e sentando-se numa cadeira.
E erguendo a voz:
-- Eulália!
-- Senhora! acudiu a criada lá de dentro.
-- Dá cá um copo d’água, d. Therezinha suspirou ruidosamente e comentou:
-- Hoje, depois que saíste, fui à cidade comprar umas coisas que me faltavam para acabar um vestido que estou fazendo. Pouco me demorei. Estive na rua do Ouvidor... no largo de S. Francisco de Paula... e voltei ao largo da Carioca para tomar o bonde... Ele estava parado no largo olhando muito para mim...
-- Mas ele quem ?
-- Não me lembro o nome... Aquele sujeito de barba à Ando e monóclio, que me apresentaste um dia no Parque...Aquele?... Sabes?...
-- Não sei.
-- Ora, aquele foi advogado da Ernestina Rocha quando esta se divorciou.
-- Ah! o Moniz!
-- Moniz – é isso mesmo!
-- Não estarás enganada? Olha que o Moniz é um rapaz sério.
-- Sério? Vais ver a sua seriedade! – Como já te disse,ele estava parado no largo, a olhar com muita insistência para mim...
-- Mas tu não podias reparar que ele olhava com muita insistência para ti, se não olhasses com muita insistência para ele...
-- Pode ser, e foi talvez animado pelos meus olhares inocentes que o patife entrou no bonde e se sentou ao meu lado.
-- Falou-te?
-- Cumprimentou-me com muita amabilidade. Quis entabular conversa, disse-me que estava fazendo muito calor, que íamos ter mudança de tempo – mas como eu só lhe respondia por monossílabos imperceptíveis, calou-se. Quando chegamos perto do Passeio Público, senti o seu joelho encostado ao meu. Julguei que fosse por distração. Afastei o joelho... Ele insistiu... Medi-o de alto a baixo com um olhar repreensivo, mas o desavergonhado não se deu por vencido.
-- Miserável! Rosnou o Medeiros.
-- Quando o bonde fazia a volta da Lapa, o homenzinho encostou resolutamente a coxa na minha coxa! A primeira idéia que me acudiu foi bater-lhe com o leque na cara, mas recuei  diante do escândalo...
-- E não fizeste nada?
--Levantei-me, fiz parar o bonde,desci, tomei um carro que passava, e vim para casa. Manda pagar ao cocheiro, que está esperando.

O Medeiros saiu do gabinete e mandou despedir o carro. Quando voltou, já d. Therezinha ali não estava: tinha ido para o seu quarto de toilette mudar de roupa.
Ele foi ter com ela, e disse-lhe:
-- Estou perplexo! Tinha o Moniz em conta de homem escrupuloso, incapaz de semelhante procedimento!
-- Pois aí tens.
-- E ele é casado.
--É. Com uma senhora muito mais bonita que eu. E dizem que tem cabelinho na venta! Ah! se ela soubesse...
-- Há de sabê-lo!
-- Hein?
-- Oh! o tratante pagará capital e juros! Afianço-te que tão cedo não se mete a outra!
-- O melhor é evitar o escândalo!
-- Ele que o evitasse!
-- Olha o que vais fazer!
-- Não te assustes!
-- Já estou arrependida de te haver contado o que se passou!
-- Fizeste bem; não te arrependas: as senhoras honestas assim procedem.
-- Pretendi apenas que conhecesses o grande amigo que tens.
-- Achas então que não devo fazer nada?
-- Deixe de cumprimentá-lo: é quanto basta.
-- Veremos. Anda daí! Vamos jantar que são oito horas.
O Medeiros e d. Therezinha jantaram alegremente, e não se falou mais no caso do bonde.

                                               II
D. Therezinha não deixava de ter razão: uma vez que ela protestara contra a audácia do reles bolina, e contara tudo ao marido, era desnecessário entre os dois uma explicação, da qual poderia resultar um escândalo público; bastava realmente que eles nunca mais se falassem, mas conquanto não tivesse a alma impetuosa de um corso, pensava o Medeiros que a vingança não era um prazer exclusivamente reservado aos deuses, e começou a ruminar um plano terrível de desagravo.

O acaso veio de encontro ao desejo.
Poucos dias depois do incidente que deixei narrado, o Medeiros, tomando ao sair de casa um bonde que ia para a cidade, descobriu, sentada a um canto, a esposa do Moniz.

Sentou-se ao lado dela, cumprimentou-a com muita afabilidade, e daí a pouco, enchendo-se de coragem, suspirou e pisou-lhe delicadamente um pé.

Ele esperava que ela se zangasse; desculpar-se-ia, dizendo-lhe: - Faço a vossa excelência o mesmo que seu marido fez à minha mulher; mas, oh surpresa! a dama abaixou o rosto e sorriu, lançando ao Medeiros um olhar de soslaio, um olhar que prometia, que dava quanto pedia um bolina!
A vingança do Medeiros foi muito mais completa que ele desejava, e, passados tempos, quando d. Therezinha lhe perguntou se havia tomado algum desforço contra o Moniz:
-- Tomei, filha, tomei; isto é, eu te digo: para falar a verdade, quem tomou não fui eu, foi a senhora.
                                                                           A.A. 
                                                    [O Século 18 março 1907]
C

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