sábado, 7 de junho de 2014
O Unheimlich, (entre) Freud e Machado de Assis
Veio-me às mãos e aos olhos uma
fonte preciosa -- triplamente
contemplado com o livro Freud com os
escritores (de J. B. Pontalis e
Edmundo Gómez Mango; ed. Três Estrelas,
2013): pela ‘presença’ de Freud, per se ícone e pilar do Pensamento Ocidental, quem transcende a
psicanálise propriamente dita, dada sua estreita,íntima, sinérgica interação
com a literatura ( sabemos o quanto essencialmente literária é a obra freudiana), que o livro, em seus approach e conteúdo expõe ;
e nisso, o segundo elo a me agraciar, pois suas páginas abrigam muito mais
literatura, ciência literária, teoria literária do que propriamente
psicanálise. Mas há ainda o terceiro elemento, a mim irresistivelmente
fascinante, a me encantar -- que expressa, entre outros aspectos, a
riqueza fantástica das língua e lingüística alemã, por extensão de suas
soberbas literatura e cultura
A que me refiro ? termos e
expressões próprios, específicos, que só existentes na língua alemã, não
encontram correspondentes ou similares, ou correlatos, em outros idiomas – como
por exemplo(pincei alguns aqui, são inúmeros no alemão) : Dichtung (a criação
literária) e Dichter (o criador
literário – por extensão o escritor, o poeta, o artista ); Bildungsroman (romance de formação – que os estudiosos, profissionais
e ‘habitués’ da literatura conhecem bem.); Leitmotiv
( mais do que tema : a própria essência ) ; Naturforscher
(pesquisador): Sehnsucht (nostalgia);
Vergänglichkeit (transitoriedade,
efemeridade); Witz ( chiste --
estimulante no âmbito da linguagem, em sua íntima ligação com a sensorialidade das palavras); Wanderlust (forte desejo ou ímpeto de
viajar e explorar o mundo)..
Um termo, ou conceito (quiçá um
fenômeno, em conceituação científica), emerge (para meu gáudio) nesse universo:
Unheimlich, a “inquietante
estranheza” , sobre a qual Freud
debruça-se intensa e profundamente em sua vida e obra -- inclusive com um
ensaio , rigorosamente de crítica literária, um verdadeiro escrito filológico,
de investigação lingüística apurada, assim intitulado; além de icônicos literatos alemães (e universais)
como Schiller, Heine, Hoffman (essencialmente este, “o mestre inigualável do
estranhamento inquietante no Dichtung”, segundo Freud), todos interlocutores
freudianos no livro. O Unheimlich,
por sinal, também intensamente ‘exercido’ pelos românticos alemães..[o
Romantismo alemão ! fonte brilhante de criação e fomento na literatura, na
música, nas artes, na música clássica, etc].
O que é o Unheimlich ? linguisticamente, “a negação” – o prefixo Un – do Heimlich, “o que é do país”, “que pertence ao lar” ; exprime a
instigante, irresistível confrontação,
o cotejo entre dois conjuntos de
manifestações : o familiar, o conhecido, o confortável e o oculto, o
enigmático, o desconhecido.
O Unheimlich vai aos rincões do fantástico : a sensação que se tem
quando algo familiar, conhecido, íntimo, da ‘zona de conforto’ torna-se estranho,
angustiante, aterrador ; o estranho aflorando quando deveria estar
oculto. Também um procedimento literário, destinado a colocar e deixar o leitor
em sobressalto, em suspense...
Cá entre nós : não reside, ou se
embute, no confronto entre íntimo e distante, familiar e estranho, a própria
essência da vida ? necessário não é
esse confronto para que possamos rever pensamentos, sentimentos
que ficam cristalizados ? e o desconforto, fundamental para saber sobre outras
formas, modos de vida e vivências ?
De elo em elo, chego a meu ‘cenário’
principal : raros os que , na literatura brasileira, assimilaram, exerceram ,
trabalharam tanto, e tão magnificamente,
o Unheimlich como ... Machado de
Assis, mestre inigualável do mistério, do enigma, do subterfúgio, do secreto,
do desafiador -- do feito pelo não-feito, do dito pelo não
dito (até do criado pelo traduzido, o escrito pelo não-escrito : emblema e
paradigma de sua ‘índole’ pelo subterfúgio, seu primeiro livro publicado, Queda que as mulheres têm para os tolos,
1861, traz em si todos os ingredientes dos enigmas machadianos, obra
alimentadora durante anos e anos de especulações, ilações e interpretações em
torno de sua autoria original, a rigor, um prenúncio do que se desenrolaria na
produção literária de Machado, entre pseudônimos e anonimatos, dúvidas e
mistérios, sutilezas e disfarces (além de
introduzir o tríduo tolo-mulher-homem de espírito que pautaria e permearia toda
a ficção machadiana).
Subterfúgio e enigma não faltam
na obra e na carreira literária de Machado – e o mistério machadiano pode
perfeitamente ser associado à lenda
fáustica (Fausto, de Goethe -- e com
ele, citado intensamente como um dos grandes interlocutores intelectuais de
Freud, desenrola-se mais um elo
inter-machadiano gerado pelo livro -- símbolo da inquietação humana, aturdido
num universo que não compreendia, vendeu a alma ao diabo, em troca de sabedoria
e poder ; Machado, ao contrário , desdenhou do poder, preocupado apenas em
alcançar o conhecimento, “aquele conhecimento impiedoso, meio diabólico e
tantas vezes doloroso que desnuda a alma do homem e procura, em vão, levantar o
véu da natureza”).
Em Machado, pressente-se sempre
que há alguma coisa mais oculta, sem se saber exatamente o quê -- e nada,
absolutamente nada, o explica
satisfatoriamente. Sente-se que existe sempre algo a descobrir numa obra construída sob medida ao estilo e espírito
machadianos: sutil, insinuante, ambíguo, dissimulado. Machado sempre cultivou a
dúvida, o ‘traiu ou não traiu’(implícito em sua maior obra, a grandiosa Dom Casmurro), ‘insinuou ou não’,
‘seduziu ou não’, ‘mentiu ou não’, ‘fez ou não fez’ (um teor ‘hamletiano’, a ligá-lo e
referenciá-lo a Shakespeare, uma de suas maiores admirações e citação
constante – e outro dos grandes interlocutores de Freud, assim exposto no
livro).
O Unheimlich machadiano expressa-se e emerge, em quase turbulência,
em contos como “Um para o outro”, “O anjo das donzelas”, “A causa secreta”, “A
segunda vida”, “O enfermeiro” : e em seus contos fantásticos -- 17 deles
lapidares exemplares do gênero, claros tributários de Hoffmann e Heine (ambos arrolados por Freud,
no livro, como fontes do Unheimlich, ambos fonte e objeto de constantes e ativas leituras de Machado). Em Machado, o
fantástico obedece a formas e expressões que fogem a determinados padrões,
transitando pelo terreno fronteiriço entre o estranho e o maravilhoso,entre o
insólito e o inusitado, entre o exótico e o onírico, por vezes um fantástico
diluído em meio ao sonho, no teor onírico da narrativa o fantástico se
originando e se manifestando no plano inconsciente.
Machado -- o grande autor do romance
psicológico brasileiro do século XIX e do início do século XX -- em boa parte
de sua ficção, na qual traçou caminhos próprios e peculiares para tratar das
relações entre os homens e as mulheres,
expôe das pequenas coisas, das
passagens a princípio inocentes,
familiares, confortáveis, o outro lado
do estranho, do desconfortável, do desconhecido, alusivos à presença, sempre insidiosa, do
inconsciente.
Especialmente no que se refere à
mulheres, sua leitora predileta ( Machado sempre escreveu sobre mulheres e para
as mulheres e não era segredo preferir
colaborar em publicações cujo público
predominante era feminino, primeiro no Jornal
das Famílias, depois em A Estação) , tinha-as não apenas como capitais protagonistas de seus
romances e contos, mas fazendo delas
verdadeiro Leitmotiv -- sempre
chamando a atenção, nas linhas e entrelinhas de seus textos, para as
necessidades e os direitos da vida afetivo-social e sexual
das mulheres. Notadamente a partir do final da década de 1870, sua obra traz,
para o centro das discussões, a questão da afetividade feminina e de desejo inconsciente -- no que remete a ninguém menos do que Freud
(com este, emerge substancial elo gerado pelo livro), de quem Machado
consubstanciou – sem o conhecer... (Roberto Schwarz sentencia : “Machado
é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25 anos depois. Em
Esaú e Jacó, por exemplo, antecipou-se a Freud no ‘complexo de Édipo’”) —
os elementos e conceitos do inconsciente, do psiquismo humano, da sexualidade
feminina, estabelecendo, como Freud,
vetores e pontos de interseção
entre a literatura e a psicanálise.
Machado de Assis e Freud ; Freud,
Machado, os alemães – e suas lingüística,literatura, cultura ; eles (Dichters, autores, pensadores) e eu\nós
(leitores,ledores, cultores) – sob o manto indelével do Uncheimlich, a ‘inquietante estranheza’ pontuando, pautando,
permeando, leituras,reflexões e vidas (de todos).
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