Os primeiros de Machado (contin.)
o 1o. livro publicado, 1861 -- extremamente significativo, por um conjunto incrível de elementos, que o fazem obra fundamental na produção literária machadiana
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Queda que as mulheres têm para os tolos
Um sugestivo e instigante
título batizou a primeira obra de Machado de Assis publicada em forma de livro
— embora não o fosse o primeiro texto
dado a público : fora precedido por três poemas,um conto (que,a la Machado, duvida-se ser tradução ou criação original) e uma
incipiente novela (cuja autoria é discutida até hoje), todos eles modestos
exercícios de iniciação ficcional, praticados na imaturidade literária dos 20
anos .
A primeira de suas peculiaridades reside no fato -- que o leitor
perceberá de imediato -- de não
constituir-se em um gênero definido, difícil de classificar nos moldes
tradicionais, aproximando-se mais de uma sátira e menos de um ensaio, muito
longe de ser um romance,uma novela, um conto ou uma crônica. Outra das particularidades
refere-se ao ter despertado ao longo do tempo – não tanto quando de sua
publicação – dúvidas, daí uma salutar (culturalmente falando) polêmica, quanto
à sua condição de criação original ou tradução de Machado de Assis,contendo em
si, portanto, uma conotação de mistério,dúvida e polêmica, que de resto
apenas corroboram, por assim dizer, o ‘espírito’ machadiano de fazer literatura
: afinal, todos sabemos, o autor de Dom
Casmurro utilizou em muitas de suas
criações – romanescas e contísticas, até mesmo em crônicas – o subterfúgio, a
dissimulação, o cultivo consciente, fundamentado e deliberado do enigma.
A multiplicidade da
representatividade histórica de Queda que
as mulheres têm para os tolos expressa-se em especial por deflagrar , a par
de todos os elementos acima mencionados,
um elo de interações, afinidades e intertextualidades com outros importantes momentos da vida literária de Machado de Assis, prenunciando,anunciando,
antecipando e consubstanciando em sua forma,linguagem,estilo e conteúdo
muito do que viria a seguir na lavra
ficcional do autor.
Que elos de
intertextualização são esses ? a)
como suposta tradução -- que a meu juízo não é -- inserida na produção
machadiana como intérprete de Victor Hugo, La Fontaine, Lamartine,
Shakespeare, Dante, Poe, Dickens, Goethe,e outros, constitui manifestação
pioneira do conceito da tradução, a incorporar a célebre “teoria do molho” , reaplicada e reutilizada numa perspectiva
das teorias do comparatismo elaboradas por ele
próprio, em muitos aspectos antecipadora da vertente atual dos estudos
de Literatura Comparada ; b) a ‘teoria amorosa’ desenvolvida em “Desencantos”, em Ressureição,
e chegando a Dom Casmurro – o
livro inaugural interagindo com a primeira peça teatral, com o primeiro
romance e com a obra-mater : em todas elas, a ‘ideologia’ da
dubiedade, da ambigüidade, da
dicotomia ; c) a mulher como
protagonista primordial da ficção machadiana ,que nos moldes de Flaubert, Balzac, Eça de Queiroz (juntamente
com Freud – de quem Machado ‘antecipou’ muitos conceitos, não fosse este,como
aquele, grande perscrutador da alma humana), traz para o centro das discussões,
o feminino e a questão da sexualidade
feminina : nenhum escritor de seu
tempo ‘edificou’ tanto a mulher como
personagem capital e leitmotiv básico
de seus textos como Machado ,que escrevia sobre mulheres e para mulher ; d)
a tríade tolo -- mulher -- homem de espírito , que
permeia toda a ficção machadiana, sob uma teia dramatúrgica presente em
contos e romances ao longo do tempo e da evolução literária de Machado
,transportando a 'ideologia' de Queda que
as mulheres têm para os tolos para
muitas das obras posteriores.
Machado, eterno enigma
Queda que as mulheres têm para os
tolos veio a lume no ano de 1861, originalmente publicada na revista A Marmota Fluminense, em cinco folhetins sucessivos: 19, 23, 26, 30
de abril e 03 de maio, e no mesmo ano em livro, um opúsculo de 43 páginas,
formato 16 x 12cm , pela Typographia de
Paula Brito [Francisco de Paula Brito, "o primeiro editor digno
deste nome que houve entre nós", em citação de Machado de Assis, exerceu
papel fundamental no desenvolvimento da carreira literária de Machado – bem
como de muitos outros escritores, em meados do século XIX. Inaugurou, na verdade,
uma vertente histórica e uma linhagem de editores ou casas editoriais que se
constituíram em ponto de encontro da elite cultural e de incentivo à produção
literária.]
Tanto nos folhetins como nos volumes editados aparece sob a indicação de “tradução de
Machado de Assis”, sem informar no entanto o nome do autor
original.
Estudiosos
e pesquisadores de Machado de Assis por muito tempo sustentaram -- em que me incorporei -- tratar-se de um trabalho original, disfarçado em tradução
por ‘timidez’ do autor, mas o ensaísta
(e machadófilo) francês Jean-Michel Massa defendeu, recentemente, ser uma tradução do panfleto
publicado anonimamente pela editora F. Renard de Liège, em 1859, com o título “De l'amour des femmes pour
les sots”, atribuído posteriormente ao belga Victor Henaux — ainda que
apenas cite nominalmente a obra, sem
maiores detalhes , em seu livro Machado de Assis traducteur [Massa teria tido acesso, segundo ele, à 4ª.
edição da obra de Henaux, pertencente à Biblioteca Nacional de Paris].
O disfarce concebido por Machado, segundo os que asseguram ser uma
criação e não tradução – por ‘timidez’ do autor – seria mais um dos
inúmeros subterfúgios machadianos: de um
lado, por ser Queda... seu primeiríssimo livro publicado, em 1861; de outro lado, pelo fato
de ser ele anda ‘um ilustre desconhecido’ e sobretudo por ser um texto de
gênero absolutamente indefinido — não é romance, não é conto, não novela, não
crônica, não poesia, não teatro : aproxima-se mais do ensaio (filosófico)
.Machado , ‘a la Machado’, teria optado por aparecer como tradutor :
inclusive porque sempre foi (e é) difícil encontrar, comprovar e certificar-se
de muitas das traduções feitas por ele – que constituem um permanente desafio a
críticos,pesquisadores,historiadores e estudiosos.
Convém assinalar que em 1859,
A Marmota publicou, também em
folhetins,dois textos literários muito peculiares no que se referem a Machado
de Assis. De 10 maio a 30 agosto, o conto “Bagatela” , com uma nota inicial
informando “O sr. Machado de Assis cujo
nome e de cujas produções literárias já os nossos leitores têm conhecimento,
pelo que de sua pena se tem publicado, mimoseou-nos com a seguinte tradução,que
muito lhe agradecemos, cujo trabalho não é,como o título diz, uma Bagatela”.No
entanto, Jean-Michel Massa realizou
intensa pesquisa, consultando primeiramente “os melhores especialistas do conto
fantástico(M.M. Castex, Vax, Stragliati,
M. Versians) e nenhum deles tinha a menor referência sobre esse texto;
depois, buscando localizar na Biblioteca
Nacional de Paris o conto entre as principais obras -- nada menos
que 19 obras publicadas entre 1842 e
1859 e em 3 coletâneas de contos fantásticos – da mesma forma nada encontrando;
em última instância,Massa supõe que o conto possa ter sido publicado numa revista literária francesa de pouca
importância e algo obscura, da qual não restam exemplares ou registros
bibliográficos.
Em se tratando de Machado, sabemos tudo ser possível – o feito pelo
não-feito, o criado pelo traduzido, o escrito pelo não-escrito. Nada como esses
exemplos para alimentarem especulações, divagações, ilações e interpretações em
torno não apenas de Queda... – a
rigor, um prenúncio do que se desenrolaria na produção literária de Machado –
mas de várias outras obras, entre pseudônimos,anônimos e criptônimos, dúvidas e
mistérios, sutilezas e enigmas,disfarces e subterfúgios .
Mestre dessas ‘artes’, Machado utilizou-os à exaustão, como meios e instrumentos de
disfarce: só de pseudônimos, foram mais de 30 assinaturas diferentes, em contos
(como eram publicados em folhetins, por vezes uma assinatura diferente para
cada capítulo) e crônicas : nestas, a prática do anonimato, por Machado,
atingiu seu auge, por assim dizer, na série “Bons Dias!”, conjunto seqüencial
de crônicas publicadas na Gazeta de
Notícias de abril 1888 a
agosto 1889 – porque somente descoberto
e revelado na década de 1950, por J. Galante de Souza, vale dizer cerca de 70
anos depois (!)
Mistério e enigmas, aliás, não faltam na obra e na carreira literária
de Machado. O mistério machadiano pode perfeitamente ser associado à lenda fáustica : Fausto, de
Goethe,símbolo da inquietação humana, aturdido num universo que não
compreendia, vendeu a alma ao diabo, em troca de sabedoria e poder ; Machado,
ao contrário , desdenhou do poder, preocupado apenas em alcançar o
conhecimento, “aquele conhecimento impiedoso, meio diabólico e tantas vezes
doloroso que desnuda a alma do homem e procura, em vão, levantar o véu da
natureza”. Em Machado, pressente-se sempre que há alguma coisa mais oculta, sem
se saber exatamente o quê — e nada o
explica satisfatoriamente. Sente-se que existe sempre algo a descobrir no
mistério machadiano, no enigma do criador de uma obra de ficção tão importante
quanto a dos grandes mestres dos séculos XIX e XX, como Balzac, Stendhal, Flaubert, Proust.
Por outro lado, os que admitem Queda
que as mulheres têm para os tolos como
efetivamente tradução, ainda assim mantêm suas dúvidas ( a que me
integro) , de resto extensivas a essa dificuldade na localização de traduções
efetivamente realizadas por Machado e,
importante saber, ao fato de Machado simplesmente suprimir seu nome como
tradutor em alguns trabalhos.
Daí, quem garante Queda que as
mulheres têm para os tolos ser
efetivamente uma tradução feita por Machado, ou mais um de seus
subterfúgios ? E cá entre nós e para nós, a versão considerada por mais de um
século é muito mais, digamos, ‘charmosa’, muito mais — não há dúvida alguma — condizente e apropriada
ao estilo e espírito machadiano : sutil,
insinuante, ambíguo, dissimulado. Pois não é essa, a par de outras igualmente
grandiosas, a mais espetacular característica/conotação de toda obra de Machado
? Ele sempre cultivou a dúvida, o ‘traiu ou não traiu’(implícito em sua maior e
definitiva obra), ‘insinuou ou não’, ‘seduziu ou não’, ‘mentiu ou não’, ‘furtou
ou não’,‘fez ou não fez’— um teor
‘hamletiano’ que permeia todos os romances, contos e novelas, a
ligá-lo e referenciá-lo a Shakespeare,uma de suas grandes admirações e
contumaz citação ..
De Shakespeare e de Goethe – este,
outra de suas leituras mais
assíduas --Machado assimilou e incorporou
à sua obra ficcional a temática do ciúme, aliás o binômio ‘ciúme e
perdão’ , presente e atuante em romances
como Ressurreição, A mão e a luva, sobretudo em Dom
Casmurro, e em inúmeros contos : binômio que também (ou
essencialmente) remete a Freud, de quem Machado consubstanciou – sem o
conhecer...—os elementos e conceitos do inconsciente, do psiquismo humano, da
sexualidade feminina, estabelecendo como nenhum outro escritor brasileiro de
seu tempo vetores e pontos de interseção
entre a literatura e a psicanálise,
desde as primeiras obras, mesmo as da ‘fase de aprendizado’ e atingindo
seu clímax na denominada ‘fase de maturidade’. Como sentencia Roberto
Schwarz , “Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25
anos depois. Em Esaú e Jacó, por exemplo, antecipou-se a Freud no ‘complexo de
Édipo’”. E sabemos ser Machado de
Assis o grande autor do romance psicológico brasileiro do
século XIX e do início do século XX.
O certo é que Queda que as
mulheres têm para os tolos ser ou não tradução é o que menos importa. O que
vale ser considerado mesmo é, primeiro, sua própria textura — leve, gracioso,
fluente, irônico, bem-humorado — e sua indefinição genética, sua
não-identificação formal ; depois, ter sido inspiração para muito do que viria
a seguir , o modelo de uma ‘teoria amorosa’ exercitada por Machado em
“Desencantos”(1861), em Ressurreição(1872), e finalmente na opera-mater, a grandiosa Dom Casmurro.(1899).
Queda
que as mulheres têm para os tolos adquire representativa especial e
peculiar, pois lhe serviu de inspiração para a escrita de sua primeira peça
teatral, por cadeia, de seu primeiro romance,e, por fim, de sua obra definitiva
e consagradora .Todos esses textos têm
por modelo a “teoria amorosa” -- traduzida ou não – anunciada por Machado, em
1861; em todas eles, a ‘ideologia’ da
dúvida, da dubiedade, da incerteza, da ambigüidade; todos eles abordam a
questão da escolha que a mulher deve fazer entre um homem de espírito e um
homem sem juízo – que constitui-se num dos primordiais arcabouços dramatúrgicos
e temáticos da ficção machadiana.
a forma literária de uma
trindade machadiana
Entre os vários e relevantes elementos por meio dos quais Queda que as mulheres têm para os tolos
prenuncia, integra-se e intertextualiza-se
com diversas obras machadiana,entre eles a ironia, o sarcasmo, a
sutileza, a finura psicológica, o vocativo ao leitor, vale destacar o que se pode denominar de ‘diplomacia amorosa’ , expressa pela tríade tolo -- mulher -- homem de espírito que
permeia toda a ficção machadiana e sua evolução literária .
A trindade habita
intensamente, como protagonista, a maioria dos contos do ciclo 1858-71 --
mormente nos contos “Confissões de uma viúva moça”,“Fernando e Fernanda”,”A
felicidade pelo casamento” , “O anjo Rafael” ,”A mulher de preto”, “Linha reta
e linha curva” ,“Ernesto de Tal”, “O machete”, “Aires e Vergueiro”, “Antes que
cases” – e está presente em todos os contos
do período 1872-79 . A tríade está nos romances Ressureição, A mão e a luva e Helena
, anuncia-se algo transformada na transição representada por Iaiá Garcia, transmuta-se inteiramente
em Memórias póstumas de Brás Cubas
(quando surge consistentemente o cético, oriundo do homem de espírito
transformado), reaparece em
Quincas Borba , e,
sob outra perspectiva ,em
Dom Casmurro , por
fim chega a seu ocaso nos derradeiros romances Esaú e Jacó e Memorial de
Aires (o cético atingindo seu cume
no Conselheiro Aires) : na última obra, a seara
da redenção total da mulher machadiana(protagonizada por Carmo),
definitivamente apartada da preferência pelo tolo ao invés e em vez do homem de
espírito.
Os tolos são, via de
regra, frívolos, estroínas, praticam as fórmulas socialmente estabelecidas, sua
linguagem assemelha-se à retórica romântica dos folhetins, ostentam
autoconfiança, são determinados e objetivos nas ações afetivas, até mesmo
fingindo sentimentos e aparentando paixões com o fito exclusivo de conquistar a
mulher. Exatamente ao contrário dos homens de espírito, que fracassam e são
excluídos por não se coadunarem com os padrões de postura, convenções e
relacionamento sociais e por acreditarem numa vida além e acima do jogo estratégico de
aparências falsas e artificiais – mas se verá
que , ao longo do tempo e dos contos
( e aqui convém lembrar o quanto os contos se constituíram de terreno e
instrumento de experimentação, como meio fundamental do processo de evolução
ficcional de Machado até a ‘inflexão’ do final da década de 1870/início de 1880
, cujas causas e motivos tanto intrigam
os analistas e estudiosos de Machado) ,
numa espécie de aprendizado pelo fracasso, irão amadurecer,assumir uma atitude de reflexão sobre a
"realidade aética da vida" vis –a - vis com a desilusão com as
possibilidades da vida moral e
transmutar-se no cético.
Se o macro-universo do entorno – os cenários
político-institucionais-sociais, mormente a partir da década de 1870 -- se transforma, o micro-universo literário deve
acompanhá-lo: Machado pressente os novos tempos,convence-se da necessidade
crucial de mudança, já exercita os primeiros passos do grande salto que virá no
final dessa década, altera seu enfoque, sua temática,sua linguagem,seu estilo,
sua estética literária – a começar pelos novos perfis dados a dois dos vértices
do triângulo. Apenas dois, porque o tolo continuará com sua frivolidade e
estoicismo, servil das convenções sociais e atado ainda à retórica romântica.
De um lado, o homem de espírito muda, amadurece, estabelece nova relação com a
mulher-- recusando terminante e objetivamente aquelas que fingem e
ostentam--caminha da contemplação para o ceticismo; de outro, a senhorinha
ingênua,namoradeira,festeira,‘casamenteira’(por interesse ou conveniência) cede
lugar,primeiro à mulher matrimonial (por sentimento ou segurança),voltada para
a vida íntima, para “a paz doméstica”,tornando-se depois – pelo rompimento gradativo dessa paz
e a fragilidade dessa vida doméstica – vulnerável à “vida exterior”,“estratégica”,dual,.determinada,
paradoxal..
A ‘nova’ mulher
machadiana deplora a frivolidade do tolo (com quem se casou) e passa a se
inclinar para o homem de espírito (de quem aspira ser amante). Machado, atento e obediente aos
ditames sociais-‘ideológicos’ dos novos tempos,como sempre praticou em toda sua
obra ficcional, convoca o leitor à acurada reflexão sobre a preferência da
mulher – quer a antiga quer a atual – e deixa-lhe a responsabilidade do
julgamento conclusivo. A ele cabe dizer afinal o que pensam/querem as
mulheres.
Em Dom Casmurro
a história de amor e ciúme de Bento Santiago e Capitolina representam a
reescrita não apenas de Otelo de
Shakespeare, mas das principais peças teatrais do dramaturgo inglês : leitor
contumaz,e em especial tradutor, dos
textos shakespeareanos, Machado embebeu-se nas lições do ‘bardo’ e delas
impregnou seu romance mais lido e estudado , conseguindo atar, finalmente, as
duas pontas de sua carreira literária — a de tradutor, iniciada em sua
juventude, paralelamente com a de dramaturgo,
e a de romancista, já maduro. Nessa simbiose , inclusive, Machado como
que prenuncia, cerca de 100 anos antes, a tese contemporânea — vigorante no
âmbito da Teoria Literária desde o final do século XX — proposta por especialista, “a ficção
vista como nova fonte de teorização para a tradução”,
a tradução aparecendo como fio condutor e meio operandi , quer tendo sido feita realmente em Queda que as
mulheres têm para os tolos., quer ‘incorporada’ em Dom Casmurro,
e estabelecendo vetores claros de inflexão em quatro etapas cruciais da vida
literária de Machado.
Por outro lado, ao se
examinar alguns aspectos da
atividade de tradutor em Machado de Assis, denota-se que em todas as traduções
que fez, “se permitiu algumas licenças”, as quais demonstram que, para ele, o
traduzir não deveria ser um ofício de menor valor na carreira de um escritor.
Como tradutor e crítico-teórico do traduzir, Machado desde o início de sua
carreira literária percebeu como nenhum de seus contemporâneos a importância do
papel da tradução como geradora e
incentivadora do ‘diálogo’ entre textos, ou ‘diálogo entre literaturas’,como
propiciadora da hoje extremamente citada e difundida intertextualidade — na
qual, como em muitos outros campos e searas,
foi ele também um precursor.
Machado em sua ação
tradutória não compartilhava com seus
contemporâneos “o entendimento de cor local, no sentido dado pelo Romantismo –
o etnocentrismo, o indigenismo, a paisagem natal como elementos essenciais para
se criar uma literatura nacional genuína” – colocando-o em discordância com o
momento cultural do País no século XIX. E ia além, criando e praticando um
conceito da tradução – na verdade, um processo criador -- que, entre outros
aspectos, incorporava em maior ou menor
grau sua célebre “teoria do molho” , segundo a qual "pode-se ir buscar a especiaria alheia,
mas há de ser para temperá-la com o molho de sua fábrica" : vale dizer,
embora bebesse nas fontes européias utilizadas como ‘comida para seus
pensamentos’, ruminava os diversos
alimentos e os transformavam em pratos tipicamente machadianos, pois tirava de
cada coisa uma parte e fazia o seu ideal de arte, que praticava pioneiramente
como ninguém -- reaplicada e reutilizada
numa perspectiva das teorias do comparatismo elaboradas por ele próprio, em muitos aspectos antecipadoras da
vertente atual dos estudos de Literatura Comparada.
Tenha sido tradução ou não -- em ambos os casos, manifesto eloqüente de
criatividade de Machado – dando início e alavancando sua evolução literária
, Queda
que as mulheres têm para os tolos ultrapassa os limites de seu próprio
significado histórico, como obra
debutante e reveladora para , estabelecendo elos e decorrências na criação
ficcional, na inspiração teatral, na
atividade tradutória ,abrindo e fechando ciclos temáticos, oferecendo todas as
possibilidades de análise,interpretação e reflexão, contextualiza-se na fértil
e enorme seara da genialidade de Machado de Assis como uma das expressões mais
proeminentes de verdadeira transcendência literária.
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