sexta-feira, 27 de junho de 2014

MACHADO DE ASSIS, 175 anos(21.06.1839) - VI

Os primeiros de Machado (contin.)
o 1o. livro publicado, 1861 -- extremamente significativo, por um conjunto incrível de elementos, que o fazem obra fundamental na produção literária machadiana
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Queda que as mulheres têm para os tolos

      Um sugestivo e instigante título batizou a primeira obra de Machado de Assis publicada em forma de livro — embora não o fosse o primeiro  texto dado a público : fora precedido por três poemas,um conto (que,a la Machado, duvida-se ser tradução ou criação original) e uma incipiente novela (cuja autoria é discutida até hoje), todos eles modestos exercícios de iniciação ficcional, praticados na imaturidade literária dos 20 anos .
         A primeira de suas peculiaridades reside no fato -- que o leitor perceberá de imediato -- de não constituir-se em um gênero definido, difícil de classificar nos moldes tradicionais, aproximando-se mais de uma sátira e menos de um ensaio, muito longe de ser um romance,uma novela, um conto ou uma crônica. Outra das particularidades refere-se ao ter despertado ao longo do tempo – não tanto quando de sua publicação – dúvidas, daí uma salutar (culturalmente falando) polêmica, quanto à sua condição de criação original ou tradução de Machado de Assis,contendo em si, portanto, uma conotação de mistério,dúvida e polêmica, que de resto apenas corroboram, por assim dizer, o ‘espírito’ machadiano de fazer literatura : afinal, todos sabemos, o autor de Dom Casmurro  utilizou em muitas de suas criações – romanescas e contísticas, até mesmo em crônicas – o subterfúgio, a dissimulação, o cultivo consciente, fundamentado e deliberado do enigma.
        A multiplicidade da representatividade histórica de Queda que as mulheres têm para os tolos expressa-se em especial por deflagrar , a par de todos os elementos acima mencionados,  um elo de interações, afinidades e intertextualidades com outros  importantes momentos da vida literária  de Machado de Assis, prenunciando,anunciando, antecipando e consubstanciando em sua forma,linguagem,estilo e conteúdo muito  do que viria a seguir na lavra ficcional do autor.
        Que elos de intertextualização são esses ? a) como suposta tradução -- que a meu juízo não é -- inserida na produção machadiana como intérprete de Victor Hugo, La Fontaine, Lamartine, Shakespeare, Dante, Poe, Dickens, Goethe,e outros, constitui manifestação pioneira do conceito da tradução, a incorporar a célebre “teoria do molho”  , reaplicada e reutilizada numa perspectiva das teorias do comparatismo elaboradas por ele  próprio, em muitos aspectos antecipadora da vertente atual dos estudos de Literatura Comparada ; b) a ‘teoria amorosa’ desenvolvida  em “Desencantos”, em Ressureição, e chegando a Dom Casmurro – o  livro inaugural interagindo com a primeira peça teatral, com o primeiro romance e  com a  obra-mater : em todas elas, a ‘ideologia’ da  dubiedade, da  ambigüidade, da dicotomia ; c) a mulher como protagonista primordial da ficção machadiana ,que nos moldes de  Flaubert, Balzac, Eça de Queiroz (juntamente com Freud – de quem Machado ‘antecipou’ muitos conceitos, não fosse este,como aquele, grande perscrutador da alma humana), traz para o centro das discussões, o feminino  e a questão da sexualidade feminina  : nenhum escritor de seu tempo  ‘edificou’ tanto a mulher como personagem capital e leitmotiv básico de seus textos como Machado ,que escrevia sobre mulheres e para mulher  ; d) a tríade  tolo -- mulher -- homem de espírito , que permeia toda a ficção machadiana, sob uma teia dramatúrgica presente em contos e romances ao longo do tempo e da evolução literária de Machado ,transportando a 'ideologia' de Queda que as mulheres têm para os tolos  para muitas das obras posteriores.
  
Machado, eterno enigma

Queda que as mulheres têm para os tolos  veio a lume no ano de 1861, originalmente publicada na revista A Marmota Fluminense, em cinco folhetins sucessivos: 19, 23, 26, 30 de abril e 03 de maio, e no mesmo ano em livro, um opúsculo de 43 páginas, formato 16 x 12cm , pela Typographia de Paula Brito [Francisco de Paula Brito, "o primeiro editor digno deste nome que houve entre nós", em citação de Machado de Assis, exerceu papel fundamental no desenvolvimento da carreira literária de Machado – bem como de muitos outros escritores, em meados do século XIX. Inaugurou, na verdade, uma vertente histórica e uma linhagem de editores ou casas editoriais que se constituíram em ponto de encontro da elite cultural e de incentivo à produção literária.]
 Tanto nos folhetins como nos volumes editados  aparece sob a indicação de “tradução de Machado de Assis”, sem informar no entanto   o nome do autor original.
 Estudiosos e pesquisadores de Machado de Assis por muito tempo sustentaram  -- em que me incorporei  -- tratar-se de  um trabalho original, disfarçado em tradução por ‘timidez’ do autor, mas o  ensaísta (e machadófilo) francês Jean-Michel Massa defendeu, recentemente, ser uma tradução do panfleto publicado anonimamente pela editora F. Renard de Liège, em 1859,  com o título “De l'amour des femmes pour les sots”, atribuído posteriormente ao belga Victor Henaux — ainda que apenas cite nominalmente  a obra, sem maiores detalhes , em seu livro Machado de Assis traducteur [Massa teria tido acesso, segundo ele, à 4ª. edição da obra de Henaux, pertencente à Biblioteca Nacional de Paris].
O disfarce concebido por Machado, segundo os que asseguram ser uma criação e não tradução – por ‘timidez’ do autor – seria mais um dos inúmeros  subterfúgios machadianos: de um lado, por ser Queda...  seu  primeiríssimo livro  publicado, em 1861; de outro lado, pelo fato de ser ele anda ‘um ilustre desconhecido’ e sobretudo por ser um texto de gênero absolutamente indefinido — não é romance, não é conto, não novela, não crônica, não poesia, não teatro : aproxima-se mais do ensaio (filosófico) .Machado , ‘a la Machado’, teria optado por aparecer como tradutor : inclusive porque sempre foi (e é) difícil encontrar, comprovar e certificar-se de  muitas das traduções  feitas por ele – que  constituem um permanente desafio a críticos,pesquisadores,historiadores e estudiosos.
Convém assinalar que em 1859, A Marmota publicou, também em folhetins,dois textos literários muito peculiares no que se referem a Machado de Assis. De 10 maio a 30 agosto, o conto “Bagatela” , com uma nota inicial informando “O  sr. Machado de Assis  cujo nome e de cujas produções literárias já os nossos leitores têm conhecimento, pelo que de sua pena se tem publicado, mimoseou-nos com a seguinte tradução,que muito lhe agradecemos, cujo trabalho não é,como o título diz, uma Bagatela”.No entanto, Jean-Michel Massa  realizou intensa pesquisa, consultando primeiramente “os melhores especialistas do conto fantástico(M.M. Castex, Vax, Stragliati,  M. Versians) e nenhum deles tinha a menor referência sobre esse texto; depois, buscando localizar na Biblioteca  Nacional de Paris o conto entre as principais obras -- nada menos que  19 obras publicadas entre 1842 e 1859 e em 3 coletâneas de contos fantásticos – da mesma forma nada encontrando; em última instância,Massa supõe que o conto possa ter sido publicado  numa revista literária francesa de pouca importância e algo obscura, da qual não restam exemplares ou registros bibliográficos.
Em se tratando de Machado, sabemos tudo ser possível – o feito pelo não-feito, o criado pelo traduzido, o escrito pelo não-escrito. Nada como esses exemplos para alimentarem especulações, divagações, ilações e interpretações em torno não apenas de Queda... – a rigor, um prenúncio do que se desenrolaria na produção literária de Machado – mas de várias outras obras, entre pseudônimos,anônimos e criptônimos, dúvidas e mistérios, sutilezas e enigmas,disfarces e subterfúgios .
Mestre dessas ‘artes’, Machado utilizou-os  à exaustão, como meios e instrumentos de disfarce: só de pseudônimos, foram mais de 30 assinaturas diferentes, em contos (como eram publicados em folhetins, por vezes uma assinatura diferente para cada capítulo) e crônicas : nestas, a prática do anonimato, por Machado, atingiu seu auge, por assim dizer, na série “Bons Dias!”, conjunto seqüencial de crônicas publicadas na Gazeta de Notícias de abril 1888 a agosto 1889  – porque somente descoberto e revelado na década de 1950, por J. Galante de Souza, vale dizer cerca de 70 anos depois (!)    

Mistério e enigmas, aliás, não faltam na obra e na carreira literária de Machado. O mistério machadiano pode perfeitamente ser  associado à lenda fáustica : Fausto, de Goethe,símbolo da inquietação humana, aturdido num universo que não compreendia, vendeu a alma ao diabo, em troca de sabedoria e poder ; Machado, ao contrário , desdenhou do poder, preocupado apenas em alcançar o conhecimento, “aquele conhecimento impiedoso, meio diabólico e tantas vezes doloroso que desnuda a alma do homem e procura, em vão, levantar o véu da natureza”. Em Machado, pressente-se sempre que há alguma coisa mais oculta, sem se saber exatamente  o quê — e nada o explica satisfatoriamente. Sente-se que existe sempre algo a descobrir no mistério machadiano, no enigma do criador de uma obra de ficção tão importante quanto a dos grandes mestres dos séculos XIX e XX, como Balzac, Stendhal,  Flaubert, Proust.
 Por outro lado, os que admitem Queda que as mulheres têm para os tolos como  efetivamente tradução, ainda assim mantêm suas dúvidas ( a que me integro) , de resto extensivas a essa dificuldade na localização de traduções efetivamente realizadas por  Machado e, importante saber, ao fato de Machado simplesmente suprimir seu nome como tradutor em alguns trabalhos.
Daí, quem garante Queda que as mulheres têm para os tolos ser  efetivamente uma tradução feita por Machado, ou mais um de seus subterfúgios ? E cá entre nós e para nós, a versão considerada por mais de um século é muito mais, digamos, ‘charmosa’, muito mais —  não há dúvida alguma — condizente e apropriada ao estilo e espírito  machadiano : sutil, insinuante, ambíguo, dissimulado. Pois não é essa, a par de outras igualmente grandiosas, a mais espetacular característica/conotação de toda obra de Machado ? Ele sempre cultivou a dúvida, o ‘traiu ou não traiu’(implícito em sua maior e definitiva obra), ‘insinuou ou não’, ‘seduziu ou não’, ‘mentiu ou não’, ‘furtou ou não’,‘fez ou não fez’— um  teor ‘hamletiano’ que permeia todos os romances, contos e  novelas, a  ligá-lo e  referenciá-lo a  Shakespeare,uma de suas grandes admirações e contumaz citação ..
De Shakespeare e de Goethe – este,  outra  de suas leituras mais assíduas --Machado assimilou e incorporou  à sua obra ficcional a temática do ciúme, aliás o binômio ‘ciúme e perdão’ , presente e atuante  em romances como Ressurreição, A mão e a luva, sobretudo em Dom Casmurro, e em inúmeros contos : binômio que também (ou essencialmente) remete a Freud, de quem Machado consubstanciou – sem o conhecer...—os elementos e conceitos do inconsciente, do psiquismo humano, da sexualidade feminina, estabelecendo como nenhum outro escritor brasileiro de seu tempo vetores e  pontos de interseção entre a literatura e a psicanálise,  desde as primeiras obras, mesmo as da ‘fase de aprendizado’ e atingindo seu clímax na denominada ‘fase de maturidade’. Como sentencia Roberto Schwarz  , “Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25 anos depois. Em Esaú e Jacó, por exemplo, antecipou-se a Freud no ‘complexo de Édipo’”. E sabemos ser   Machado de Assis  o grande  autor do romance psicológico brasileiro do século XIX e do início do século XX.
 O certo é que  Queda que as mulheres têm para os tolos ser ou não tradução é o que menos importa. O que vale ser considerado mesmo é, primeiro, sua própria textura — leve, gracioso, fluente, irônico, bem-humorado — e sua indefinição genética, sua não-identificação formal ; depois, ter sido inspiração para muito do que viria a seguir , o modelo de uma ‘teoria amorosa’ exercitada por Machado em “Desencantos”(1861), em Ressurreição(1872), e finalmente na opera-mater, a grandiosa Dom Casmurro.(1899).  Queda que as mulheres têm para os tolos adquire representativa especial e peculiar, pois lhe serviu de inspiração para a escrita de sua primeira peça teatral, por cadeia, de seu primeiro romance,e, por fim, de sua obra definitiva e  consagradora .Todos esses textos têm por modelo a “teoria amorosa” -- traduzida ou não – anunciada por Machado, em 1861;   em todas eles, a ‘ideologia’ da dúvida, da dubiedade, da incerteza, da ambigüidade; todos eles abordam a questão da escolha que a mulher deve fazer entre um homem de espírito e um homem sem juízo – que constitui-se num dos primordiais arcabouços dramatúrgicos e temáticos da ficção machadiana.

a forma literária de uma trindade machadiana
        Entre os vários e relevantes  elementos por meio dos quais Queda que as mulheres têm para os tolos prenuncia, integra-se e intertextualiza-se  com diversas obras machadiana,entre eles a ironia, o sarcasmo, a sutileza, a finura psicológica, o vocativo ao leitor, vale  destacar o que se pode denominar de  ‘diplomacia amorosa’ ,  expressa pela  tríade  tolo -- mulher -- homem de espírito que permeia toda a ficção machadiana e sua evolução literária .
     A trindade habita intensamente, como protagonista, a maioria dos contos do ciclo 1858-71 -- mormente nos contos “Confissões de uma viúva moça”,“Fernando e Fernanda”,”A felicidade pelo casamento” , “O anjo Rafael” ,”A mulher de preto”, “Linha reta e linha curva” ,“Ernesto de Tal”, “O machete”, “Aires e Vergueiro”, “Antes que cases” – e está presente em todos os contos  do período 1872-79 . A tríade está nos romances RessureiçãoA mão e a luvaHelena , anuncia-se algo transformada na transição representada por Iaiá Garcia, transmuta-se inteiramente em Memórias póstumas de Brás Cubas (quando surge consistentemente o cético, oriundo do homem de espírito transformado), reaparece em Quincas Borba , e, sob outra perspectiva ,em Dom Casmurro , por fim chega a seu ocaso nos derradeiros romances Esaú e Jacó e Memorial de Aires (o cético  atingindo seu cume no Conselheiro Aires) : na última obra, a seara  da redenção total da mulher machadiana(protagonizada por Carmo), definitivamente apartada da preferência pelo tolo ao invés e em vez do homem de espírito.
            Os tolos são, via de regra, frívolos, estroínas, praticam as fórmulas socialmente estabelecidas, sua linguagem assemelha-se à retórica romântica dos folhetins, ostentam autoconfiança, são determinados e objetivos nas ações afetivas, até mesmo fingindo sentimentos e aparentando paixões com o fito exclusivo de conquistar a mulher. Exatamente ao contrário dos homens de espírito, que fracassam e são excluídos por não se coadunarem com os padrões de postura, convenções e relacionamento sociais e por acreditarem numa vida  além e acima do jogo estratégico de aparências falsas e artificiais – mas se verá  que , ao longo do tempo e dos contos  ( e aqui convém lembrar o quanto os contos se constituíram de terreno e instrumento de experimentação, como meio fundamental do processo de evolução ficcional de Machado até a ‘inflexão’ do final da década de 1870/início de 1880 ,  cujas causas e motivos tanto intrigam os analistas e estudiosos de Machado) , numa espécie de aprendizado pelo fracasso, irão amadurecer,assumir  uma atitude de reflexão sobre a "realidade aética da vida" vis –a - vis com a desilusão com as possibilidades da vida moral e  transmutar-se no cético.
       Se o macro-universo do entorno – os cenários político-institucionais-sociais, mormente a partir da década de 1870 --  se transforma, o micro-universo literário deve acompanhá-lo: Machado pressente os novos tempos,convence-se da necessidade crucial de mudança, já exercita os primeiros passos do grande salto que virá no final dessa década, altera seu enfoque, sua temática,sua linguagem,seu estilo, sua estética literária – a começar pelos novos perfis dados a dois dos vértices do triângulo. Apenas dois, porque o tolo continuará com sua frivolidade e estoicismo, servil das convenções sociais e atado ainda à retórica romântica. De um lado, o homem de espírito muda, amadurece, estabelece nova relação com a mulher-- recusando terminante e objetivamente aquelas que fingem e ostentam--caminha da contemplação para o ceticismo; de outro, a senhorinha ingênua,namoradeira,festeira,‘casamenteira’(por interesse ou conveniência) cede lugar,primeiro à mulher matrimonial (por sentimento ou segurança),voltada para a vida íntima, para “a paz doméstica”,tornando-se  depois – pelo rompimento gradativo dessa paz e a fragilidade dessa vida doméstica – vulnerável à “vida exterior”,“estratégica”,dual,.determinada, paradoxal..
              A ‘nova’ mulher machadiana deplora a frivolidade do tolo (com quem se casou) e passa a se inclinar para o homem de espírito (de quem aspira ser  amante). Machado, atento e obediente aos ditames sociais-‘ideológicos’ dos novos tempos,como sempre praticou em toda sua obra ficcional, convoca o leitor à acurada reflexão sobre a preferência da mulher – quer a antiga quer a atual – e deixa-lhe a responsabilidade do julgamento conclusivo. A ele cabe dizer afinal o que pensam/querem as mulheres. 
 Em  Dom Casmurro  a história de amor e ciúme de Bento Santiago e Capitolina representam a reescrita não apenas de Otelo de Shakespeare, mas das principais peças teatrais do dramaturgo inglês : leitor contumaz,e em especial tradutor,  dos textos shakespeareanos, Machado embebeu-se nas lições do ‘bardo’ e delas impregnou seu romance mais lido e estudado , conseguindo atar, finalmente, as duas pontas de sua carreira literária — a de tradutor, iniciada em sua juventude, paralelamente com a de dramaturgo,  e a de romancista, já maduro. Nessa simbiose , inclusive, Machado como que prenuncia, cerca de 100 anos antes, a tese contemporânea — vigorante no âmbito da Teoria Literária desde o final do século XX  — proposta por especialista, “a ficção vista  como  nova fonte de teorização para a tradução”, a  tradução  aparecendo como  fio condutor e meio operandi , quer tendo sido feita realmente em Queda que as mulheres têm para os tolos., quer ‘incorporada’ em Dom Casmurro, e estabelecendo vetores claros de inflexão em quatro etapas cruciais da vida literária de Machado.

Por outro lado, ao se  examinar  alguns aspectos da atividade de tradutor em Machado de Assis, denota-se que em todas as traduções que fez, “se permitiu algumas licenças”, as quais demonstram que, para ele, o traduzir não deveria ser um ofício de menor valor na carreira de um escritor. Como tradutor e crítico-teórico do traduzir, Machado desde o início de sua carreira literária percebeu como nenhum de seus contemporâneos a importância do papel da tradução  como geradora e incentivadora do ‘diálogo’ entre textos, ou ‘diálogo entre literaturas’,como propiciadora da hoje extremamente citada e difundida intertextualidade — na qual, como em muitos outros campos e searas,  foi ele também um precursor.

Machado em sua  ação tradutória  não compartilhava com seus contemporâneos “o entendimento de cor local, no sentido dado pelo Romantismo – o etnocentrismo, o indigenismo, a paisagem natal como elementos essenciais para se criar uma literatura nacional genuína” – colocando-o em discordância com o momento cultural do País no século XIX. E ia além, criando e praticando um conceito da tradução – na verdade, um processo criador -- que, entre outros aspectos, incorporava  em maior ou menor grau sua célebre “teoria do molho” , segundo a qual  "pode-se ir buscar a especiaria alheia, mas há de ser para temperá-la com o molho de sua fábrica" : vale dizer, embora bebesse nas fontes européias utilizadas como ‘comida para seus pensamentos’,  ruminava os diversos alimentos e os transformavam em pratos tipicamente machadianos, pois tirava de cada coisa uma parte e fazia o seu ideal de arte, que praticava pioneiramente como ninguém --  reaplicada e reutilizada numa perspectiva das teorias do comparatismo elaboradas por ele  próprio, em muitos aspectos antecipadoras da vertente atual dos estudos de Literatura Comparada.
Tenha sido tradução ou não -- em ambos os casos, manifesto eloqüente de criatividade de Machado – dando início e alavancando sua evolução literária ,  Queda que as mulheres têm para os tolos ultrapassa os limites de seu próprio significado histórico, como  obra debutante e reveladora para , estabelecendo elos e decorrências na criação ficcional, na inspiração  teatral, na atividade tradutória ,abrindo e fechando ciclos temáticos, oferecendo todas as possibilidades de análise,interpretação e reflexão, contextualiza-se na fértil e enorme seara da genialidade de Machado de Assis como uma das expressões mais proeminentes de verdadeira transcendência literária.   



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