domingo, 29 de junho de 2014
MACHADO DE ASSIS, 175 anos(21.06.1839) - um corolário
para concluir a série acerca dos 175 anos de nascimento de Machado, uma reflexão inerente à mais emblemática de suas obras.
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em torno de Capitu e o exercício machadiano da
dúvida.
Machado sempre cultivou a dúvida como instrumento
de reflexão, e evitava o maniqueísmo de personagens por não aflorar os
questionamentos.. Uma das expressões de sua evolução literária foi a narração.
O narrador machadiano muda. Existem as expressões cunhadas no estudo machadiano
do narrador confiável e do narrador não-confiável; o narrador não-confiável se
sobressaindo a partir da segunda fase, iniciada em 1880. Esse tipo de narrador
é quem coloca dúvidas sobre as coisas. Nesse particular, costuma-se conferir
importância desmesurada àquela grande questão do romance Dom
Casmurro: Capitu traiu ou não traiu? – o que é absolutamente descartável e
desprezível. E aqui peço licença para abrir um longo parênteses e me estender
nesse assunto, que é importante para caracterizar um elemento fundamental , um
dos fulcros capitais de toda a ficção machadiana . A tola discussão se Capitu
traiu ou não traiu é o que menos -- na verdade,nada – importa :Machado faz de Dom Casmurro -- a meu juízo, a maior
obra da literatura brasileira, anos-luz acima de qualquer outra, comparável às
maiores obras-primas da literatura universal -- um transcendental exercício da
dúvida, um ensaio sobre a dúvida, que de resto permeia toda sua ficção :
evoca-se,nesse romance, o
'shakespearianismo' [sic : neologismo meu...] do ciúme e traição a la Otelo \Desdêmona, mas o que existe mesmo, assim entendo,é
uma conotação 'hamletiana', vale dizer o 'ser ou não ser', que seria traduzido,
sob a égide do exercício machadiano da dúvida,pelo 'traiu ou não traiu'
inerente a Capitu -- aliás, a mais complexa e bem construída protagonista
feminina da literatura brasileira , a suma da mulher machadiana criada e
fomentada em toda sua ficção . Nesse ‘teor hamletiano’ reside toda a ficção
machadiana, mormente na seara contística : é o 'fez\nãofez',''disse\não disse',
' saiu\não saiu', 'roubou\não roubou', 'recaiu\não recaiu' (caso do primoroso
conto "Singular ocorrência"), e por aí vai. E o narrador é o agente dessas
dúvidas .Examinado, ou lido, pela ótica, ou na órbita do ciúme --'oteliano':
e Shakespeare foi a maior influência
sobre Machado, suas referência e citação prediletas, mil vezes referenciado em
contos e crônicas -- Capitu é julgada infiel pelo narrador Bentinho, um
ciumento nato e hereditário,doentio,e dissimulado -- e aqui entra outra grande
influência de Machado : Freud , pois fomenta a pseudo-traição de Capitu como
processo de transferência de sua atração pela mulher de Escobar. Bentinho
é o narrador da história . e aqui chegamos ao âmago da coisa, no âmbito
da análise literária, que creio 'mata' a questão : o narrador-em –primeira-
pessoa machadiano, mormente pós-1880 é um narrador não-confiável, que de resto
Machado adotou em muitos dos textos ficcionais desse período -- justo os mais
importantes e impactantes -- ao contrário do narrador confiável de antes, que
se expressa pelo chamado narrador-em terceira-pessoa (embora Machado tenha
também criado um ‘falso’ narrador-em-terceira-pessoa, mas isso faz parte de
outra digressão) . Se o narrador de Dom Casmurro fosse este, distanciado e isento tanto quanto possível, haveria campo para se
cogitar de Capitu infiel, adúltera , mas não : sendo em primeira-pessoa, nada a
declarar, ou melhor nada a discutir. Dom
Casmurro surgiu cerca de 3 ou 4 anos depois de Madame Bovary, de Flaubert, e de O primo Basilio, de Eça de Queiroz, dois 'parentes' sanguíneos
,literariamente, do romance de Machado, mas neles o narrador –em-
terceira-pessoa não deixa dúvidas quanto à infidelidade de Ema Bovary e de
Luisa , que são personagens 'chapados',definidos, mulheres praticantes
nitidamente da infidelidade --não cabe aqui discutir quais os motivos que as
levaram, ainda que saibamos ter sido o abandono por parte dos maridos ou a
insatisfação com o casamento, etc : aliás, a infidelidade que Machado insinua
em suas protagonistas, ao longo de sua ficção, é exatamente motivada ou gerada
por esse comportamento dos homens, vide como exemplo emblemático disso o conto
"Uma partida',neste livro que ora publico. Capitu não, não é nada
'chapada', é primorosamente construída como figura literária , sua grandeza
ficcional é comparável á de Ana Karenina, e por aí vai.
Machado ao longo de sua ficção levantava
,incentivava, insuflava e cultuava todas essas dúvidas,praticava quase que
permanentemente esse exercício, e as
colocava no leitor. Então, ao mesmo tempo em que Machado moldava ,e
mutava, sua trama e seus protagonistas,
também moldava e mutava narradores e, conseqüentemente, leitores. Esse culto ao
questionamento passou para o leitor, que começou a ler,ou pelo menos deveria
ler – o que é mais do válido para o leitor de hoje, também -- as histórias de Machado de forma diferente. E
nisso está plenamente demonstrada a genialidade de um autor : na evolução
literária de Machado, alteram-se formas e ritmos narrativos (condimentados de
ironia e humor,adquirem um tom mais coloquial e de certa forma intimista),
transformam-se protagonistas, transmutam-se narradores e leitores. Mutações e
transformações, dos protagonistas , que se manifestam também em transmutação do narrador e da voz narrativa e
a criação de um ‘novo’ leitor, o leitor-
modelo em contraponto ao leitor-empírico. Machado construiu em seu texto ,e por meio dele, um novo “leitor-modelo” — definido este
conforme a conceituação de “leitor-modelo’ e “leitor-empírico” de Umberto Eco.
Machado formou seus leitores recorrendo a estratégias
temáticas,tramáticas,narrativas,estilísticas que ,como poucos, tinha e sabia
usar -- entre essas estratégias ,as digressões,fragmentações
narrativas,retardamentos de fatos anunciados ou prometidos ao leitor,
metamorfoses de vozes narrativas, de forma e de linguagem .Machado
descondicionou o leitor empírico do leitor-modelo, como ninguém na literatura
brasileira, 'desconstruiu' essa relação,
embora via de regra seja ela utilizada para que o leitor chegue aonde o autor
deseja. Contudo, não satisfeito,na
esteira desse 'dissídio' fez o leitor(o empírico) oscilar em
"grave"-- que espera algo mais do que um 'simples texto', ou um 'puro
romance', ou uma 'obra correta',um leitor que deseja reflexões de caráter mais
realista-- e "frívolo"-- que espera impactos e emoções no texto ou na
obra,um leitor de tipo romântico ; ora
graves ora frívolos, esses leitores são por assim dizer 'transportados' para
dentro dos romances e para a maioria dos contos pós-1880 : na obra machadiana, o leitor empírico é o
‘frívolo’, e ‘grave’ é o leitor-modelo.
Até o final da década de 1870, os
romances e contos , atendiam ao leitor empírico\frívolo , como aliás não poderia deixar de ser, condicionado e formado no âmbito do
Romantismo e seus valores ; ao passo que
o grave mantinha-se em ‘surdina’.
As metamorfose ao longo do tempo, a partir da década de 1860, deram-se
concomitantes : na medida da evolução literária machadiana,o leitor
empírico\frívolo vai ‘cedendo espaço’ ao leitor-modelo (inclusive um
novo,criado por Machado)\grave, ao mesmo tempo em Machado 'camufla'
as diferenças existentes entre
injunções ficcionais e reais ,incentiva o leitor a acreditar no fictício,ou
embuste\artimanha, e o induz a ilusões interpretativas, simplesmente fomentando
um narrador de pouca,ou nenhuma, confiabilidade, uma espécie de 'narrador
volúvel' que habita e conduz muitos de seus contos. E o leitor situa-se como um
‘espelho’ desse narrador.No fim , ainda que sob o controle do autor, ou do
narrador cabe ao leitor,quase que
exclusivamente, o acesso a unidade
dentro da imensa e complexa obra ficcional de Machado – que nisso parece
contrariar Nietzsche\Zaratustra : “Alguém
que conhece o leitor, nada fará por ele...”
Vale lembrar que desde seu primeiro livro
publicado,em 1861 , Queda que as mulheres
têm para os tolos – que título instigante, provocador ! – Machado fomenta o
enigma,o mistério, o disfarce,o subterfúgio: porque persiste a dúvida histórica
de ser uma tradução ou uma criação original dele – de que teci especulações
reflexivas em artigo específico sobre esse texto. Cá entre nós e para nós, a
versão de ser criação original é muito mais,digamos,’charmosa’, muito mais –
não há dúvida alguma — ao estilo e espírito machadiano: sutil, insinuante,
ambíguo, dissimulado -- a par de outras igualmente grandiosas, a mais
espetacular característica/conotação de toda obra de Machado. Ele sempre cultivou
a dúvida, o ‘traiu ou não traiu’(implícito em sua maior e definitiva obra),
‘insinuou ou não’, ‘seduziu ou não’, ‘mentiu ou não’, ‘furtou ou não’,‘fez ou
não fez’— e é esse teor ‘hamletiano’, a
ligá-lo e referenciá-lo a ninguém
menos que Shakespeare, uma de suas maiores admirações e citação constante
.Dele, Machado assimilou e incorporou à
sua obra ficcional a temática do ciúme, aliás o binômio ‘ciúme e perdão’ – presente e atuante em romances como Ressurreição, A mão e a luva,
sobretudo em Dom Casmurro , e em
inúmeros contos : binômio que remete a Freud, de quem Machado consubstanciou –
sem o conhecer...— os elementos e conceitos do inconsciente, do psiquismo
humano, da sexualidade feminina, estabelecendo como nenhum outro escritor
brasileiro de seu tempo vetores e pontos
de interseção entre a literatura e a psicanálise, desde as primeiras obras, mesmo as da ‘fase
de aprendizado’ e atingindo seu clímax na denominada ‘fase de maturidade’. Como
sentencia Roberto Schwarz , “Machado
é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25 anos depois. Em
Esaú e Jacó, por exemplo, antecipou-se a Freud no ‘complexo de Édipo’”.
O certo é que Queda que as mulheres têm para os
tolos ser ou não tradução é o que menos importa. O que vale ser considerado
mesmo é , primeiro, sua própria textura — leve, gracioso, fluente, irônico,
bem-humorado — e sua indefinição genética, sua não-identificação formal;
depois, ter sido inspiração para muito do que viria a seguir , o modelo de uma
‘teoria amorosa’ exercitada por Machado em “Desencantos”(1861), em Ressureição
(1872), e finalmente na
opera-mater, a grandiosa Dom Casmurro.(1899) . Todos esses textos têm por modelo essa “teoria amorosa” -- traduzida ou não por
Machado, em 1861; em todos eles, a ‘ideologia’ da dúvida, da dubiedade, da
incerteza, da ambigüidade; todos abordam a questão da escolha que a mulher deve
fazer entre um homem de espírito e um homem sem juízo – que constitui-se num
dos primordiais arcabouços dramatúrgicos e temáticos da ficção machadiana.
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