segunda-feira, 10 de março de 2014

Lima Barreto e a mulher

em pleno mês da Mulher -- que não é apenas março mas devem ser todos
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Feminista, emancipacionista; mas realista

Articulista, escritor, pensador, nunca silencioso sobre seu tempo, Lima Barreto  não poderia pois ficar alheio à situação da mulher na realidade social brasileira do início do século XX, época de tantas e profundas transformações na sociedade. Retratou e a fez personagem em contos e romances e escreveu sobre a mulher em artigos e crônicas, publicadas em jornais e revistas — sob um caráter de ambigüidade, ora a criticando, por vezes atacando, ora a defendendo, muitas vezes enaltecendo: diz-se “antifeminista”, põe-se abertamente contra os movimentos feministas, mas defende a necessidade de instrução para a mulher; repele o ingresso da mulher no serviço público (“.rendosos cargos para as mulheres das classes sociais mais favorecidas : e as reivindicações das operárias ?...”), mas defende o divórcio e  justifica com vigor o adultério feminino (ambos forma de revolta contra um homem opressor e uma concepção de  casamento instituída pela sociedade); imbuído da moral do seu tempo, retrata a mulher pela ótica comum, mas denuncia sua “absurda” situação de dependência aos homens.
Evidentemente que sua posição ‘pendular’ no enfoque da mulher brasileira do início do século XX é resultado e reflexo do momento histórico em que vivia, pleno de oscilações e mutações.
Longe, muito longe da falsa, equivocadissima acusação de misoginia, posicionava-se na realidade não contra a mulher em si, ou ao feminismo como movimento defensor e propugnador dos direitos da mulher, mas sim contra o feminismo então praticado por “lideranças medíocres e interesseiras”, um feminismo da moda, “feminismo bastardo, feminismo burocrático, feminismo de secretaria”, e sobretudo  contra os signos do progresso republicano : a rigor, insurge-se contra um feminismo de caráter elitista, que não propugnava por transformações sociais e visava apenas a interesses particulares dos setores privilegiados da sociedade. Lima Barreto  era, antes de tudo, crítico da mulher burguesa, esnobe, e ao contrário simpático à mulher proletária, suburbana.
Nesse sentido, um dos maiores enganos – para não dizer, bobagens -- que se possam cometer é considerar Lima Barreto como contrário aos movimentos e ações emancipacionistas da mulher – não foi em hipótese alguma , realçando que “(...) Não me move nenhum ódio às mulheres, mesmo porque não tenho fome de carne branca; mas o que quero é que essa coisa de emancipação da mulher se faça claramente, após um debate livre, e não clandestinamente, por meio de pareceres de consultores e auditores, acompanhados com os berreiros de dona Berta e os escândalos de dona Daltro. É preciso que isso se faça claramente, às escâncaras. Cada um, então, que dê sua opinião.(...)”[crônica “O nosso feminismo”]
Para ele o movimento feminista de então não propunha ou lutava pela defesa da mulher, era “frágil, inconsistente, inócuo, só se preocupava com perfumarias,acessórios  e inutilidades” ; desprezava a mulher operária e  reivindicações trabalhistas e sociais, divorciava-se da questão do ensino e da educação para a  mulher ; desvinculava-se dos problemas afetivos e conjugais da mulher e da  degradação do casamento imposto pelos homens e pela sociedade ;  mantinha-se completamente omisso diante do uxoricismo.
sexo forte,sexo frágil
Lima sempre conferiu  à mulher espaço significativo em sua obra ficcional e não-ficcional – retratando e  comentando a situação da mulher perante o casamento, a moral que lhe era  imposta pelo homem e pela sociedade, a desigualdade de julgamento do adultério masculino e do feminino,  a viuvez; as oportunidades educacionais e profissionais; a prostituição; o início do movimento feminista no Brasil.Se, de um lado, no conjunto de artigos e crônicas -- quer sobre feminismo, movimento feminino, voto feminino, direitos femininos, literatura feminina, quer em especial sobre mundanismo, moda, comportamento, hábitos femininos -- Lima destila permanente ironia crítica, de outro o retrato das mulheres elaborado em seus textos ficcionais mostra-as dependentes dos homens e submissas a ‘normas’ sociais da época, sim, mas em muitíssimas  vezes –  em outras, não -- com atitude e comportamento progressistas :  são elas superiores aos homens, exemplos de Olga em Triste fim de Policarpo Quaresma; Clara e Castorina em Clara dos Anjos;   Edgarda em Numa e a ninfa ,Efigênia em O cemitério dos vivos; Cecília de Diário íntimo , Cló, Adélia, Lívia e  outras em contos. .

“tema de Carmen”

Vale ressaltar, porém, que o suposto ‘antifeminismo’ barretiano tem sua contrapartida significativa: numa série de artigos e crônicas – a que ele denominou “tema de Carmen”[sic] -- a propósito de julgamentos de crimes ditos passionais : neles, Lima Barreto  defende veementemente a mulher e ataca os homens, os advogados e juízes que “se atribuem direitos sobre a vida das mulheres, direitos reconhecidos por júris que os absolvem”,   denunciando crimes de uxoricídio nos quais homens matavam “mulheres infiéis”— e pior eram absolvidos por “legítima defesa da honra” -- e alardeando  intransigentemente os direitos da mulher “que são,como todos nós, sujeitas, às influências várias que fazem flutuar as suas inclinações, as suas amizades, os seus gostos, os seus amores".
De modo geral, Lima interpretava, denunciando, a  atitude  violenta dos ho­mens  por força de eles se sentirem donos, proprietários das mulheres com as quais se rela­cionavam, não admitindo ser preteridos.Defendia com vigor a mulher e clamava  que as deixem amar à vontade, “não as matem, pelo amor de Deus !"(crônica “Não as matem”).
Incondicionalmente sustentava que devia-se,  isto sim, “condenar o matador conjugal”, que conforme a nefasta concepção dos crimes executados “em nome de uma honra familiar,lava- a matando a  mu­lher", a qual face à opressão de que via de regra era vítima,pelo homem e pelas ‘regras’ da sociedade, tem  todo o direito de não amá-lo mais. Repudiava  veementemente este tipo de crime --  crime muito mais grave do que o adultério era o do assassinato , ato premeditado, não movido por um impulso de momento -- pois "as constantes absolvições de uxoricidas dão a en­tender que a sociedade nacional, por um dos seus mais legíti­mos órgãos, a admite como normal e necessária" – em sessões nas quais era julgada não a atitude criminosa  do homem mas a conduta sexual da mulher, que de vítima tornava-se ré : defendia-se  o uxoricida atacando a  honra feminina,acu­sada a mulher  de “desavergonhada”.Acusava essa prática que além do mais funcionava  como um estímulo para que tais crimes continuassem ocorrendo: para ele, o julgamento de cri­mes de uxoricídio deveriam ser desvinculados da apreciação da conduta sexual feminina e da ideologia dominante que exi­gia do sexo feminino a fidelidade absoluta -- o que deveria ser sentenciado era o assassínio em si.

a mulher e a sociedade

A rigor, esses textos barretianos devem ser compreendidos a partir da posição de Lima face ao casamento e ao adultério – visto este como  forma de revolta da mulher contra a sociedade que lhe apresenta um homem como dotado de predicados excepcionais;  para ele, não proveniente de  motivação física, sexual, e sim originário da concepção de casamento instituída pela sociedade, cuja  única vítima é a mulher , impossibilitada de realizar nele a sua natureza sentimental, vendo-se obrigada, fora dos canais convencionais, a procurar o homem que deseja e a realize.
Lima Barreto, convém frisar,  respeitava o  casamento  e o entendia como o meio quase único de realização plena do sexo feminino – cita o alemão Krafft-Ebbing, “a profissão da mulher é o casamento”(crônica “A amanuense”): insistia na  imperiosidade da relação franca e elevada que deveria regular a vida matrimonial --“entre os dois só deve haver a máxima lealdade, todos os dois devem entrar na sociedade conjugal com a máxima boa vontade e admiração um pelo outro”-- em prol dos valores que caminhavam para o desaparecimento ou deterioração na sociedade burguesa da época.
Não deixava, contudo, de ater-se à realidade concreta do que era o casamento nessa sociedade republicana burguesa: para o homem, uma espécie de “transação comercial”, reduzindo a mulher, em última instância, a uma “escala para subir” – como Numa Pompílio de Castro, que só se casara com d. Edgarda Cogominho para  poder ascender na carreira política, já que o pai dela era um dos proeminentes políticos no meio nacional (novela Numa e a ninfa); em contrapartida, a mulher procuraria encontrar sua realização e dedicar-se a  um ‘homem superior’ – que a sociedade definia ser o  doutor, ela via de regra se deixando levar por essa equivocada conceituação, gerando,em certos casos, a decepção, que a induzia à busca de ‘alternativas’ : ao ter a revelação da face real do marido, desiludida no casamento, decepcionada, procurava fora do matrimônio alguém ‘superior’ a quem pudesse dedicar sua natureza sentimental  insatisfeita. -- caso de d. Laura (conto “O filho de Gabriela”), casada com o conselheiro Calaça.
Lima entendia ser o amor eterno praticamente impossível, sabia ser intrínseco à condição e natureza humanas a mutação dos  sentimentos – e em especial, responsável pelas transformações sentimentais, sensoriais e afetivas femininas. Daí enxergava a temporalidade do casamento, sua ‘não eternidade’, e preconizava o direito feminino de interrompê-lo, em ter  liberdade de escolha, buscar outro amor ao ter o casamento fracassado(ao contrário de d. Laura, quem vai encontrar no amante,dr. Benevenuto, “o que lhe exigiram a imaginação e a inteligência”, o homem superior que não há no marido é  justo Edgarda, em Numa e a ninfa) e com isso praticar o adultério – não aceito e punido pela sociedade, sem merecer no entanto vir a ser assassinada....
A defesa barretiana da mulher não se limitava à explicação da raiz do adultério: ia mais além, propondo a instituição do divórcio – como nas crônicas “No ajuste de contas”  e “Como budistas....” -- e uma reformulação jurídica da instituição do casamento , com propostas que, convertidas em lei, atingiriam no cerne todas as deformações implícitas no matrimônio, propiciariam a libertação da mulher do estado degradante que lhe era imposto e eliminariam o direito consuetudinário e quase legal de o marido poder praticar o uxoricídio em caso de adultério.
                               
feminismo

Casamento, adultério feminino, divórcio, uxoricídio constituem pressupostos à suposta - e equivocada - posição ‘anti-feminista’ de Lima Barreto. Opunha-se, isso sim, às forma,métodos,práticas e posturas do movimento feminista da época.
O movimento feminista brasileiro, iniciado no fim da década de dez séculos, antes de surgir como um bloco coeso, dividiu-se já em suas origens em algumas ramificações cada uma delas com líderes próprios e com algumas reivindicações idênticas e outras particulares, verdadeiras bandeiras das facções ou, como dizia  Lima Barreto, das “igrejas” ou “seitas”. Eram quatro: a de Mme Chrysanthème que “quer, para a mulher, a plena liberdade do seu coração, dos seus afetos, enfim dos seus sentimentos” (crônica “No ajuste de contas”); a liderada por Leolinda Daltro, denominada “Partido Republicano Feminino”, propugnando pelo direito da mulher; a de Berta Lutz, sob o nome de  “Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher Brasileira” que tinha como bandeira a luta pelo ingresso da mulher na burocracia; e a facção conhecida por “Legião da Mulher Brasileira” que nomeara como presidente de honra a esposa do Presidente da República, d. Mary Saião Pessoa, contando também com o apoio da Igreja Católica. A principal reivindicação que as unia era a extensão do direito de voto à mulher.
Lima Barreto reduzia as facções a duas: o feminismo sufragista e o feminismo burocrático; o primeiro de “propriedade” de  Leolinda Daltro (que aparece como Deolinda nas crônicas; e na novela Numa e a ninfa, como a personagem  Florinda Seixas)  e o segundo de Berta Lutz ; à entidade de Mme Chrysanthème não dava muita importância e quanto à “Legião da Mulher Brasileira” se restringia a ironizar o caráter oficial da entidade.
Leolinda (ou Deolinda) Daltro e  Adalberta Lutz, que capitaneavam as posições feministas da época, eram os maiores objetos das críticas – contundentes, irreversíveis – de Lima. Com tais ‘lideranças’, dizia Lima,  as reivindicações feministas de sua entidade não estavam a propugnar por uma elevação da mulher, mas voltadas unicamente para elas,preocupadas apenas em  pleitear o direito de voto  para que uma faixa da elite pudesse usufruir das vantagens que estavam limitadas à cúpula política masculina. Até porque Lima não via no voto um elemento por meio do qual pudesse ser reformada a situação na Republica Velha – portanto o que as feministas pleiteavam pouco significava, era  mera acomodação ao sistema montado, ao qual ele nunca deixou de se opor. A denúncia de Lima contra o movimento feminista centrava-se em sua conivência com as práticas políticas de então, em termos de  corrupção, favorecimento, clientelismo, oportunismo.
Além do mais,e isso para Lima constituía questão crucial, o feminismo, como então praticado, esquecia-se totalmente da mulher pobre e da mulher negra – ambas, aliás, observava ele, tendo já conquistado lugar de operária, sem movimentos feminista, nas fábricas de tecidos e nas livrarias como empacotadoras de livros.(“Pergunto: esta mulher [uma velha negra] precisou do feminismo burocrata para trabalhar, e não trabalha ainda, apesar de sua adiantada velhice?”- crônica “Voto feminino”).
Neste particular, vale realçar que Lima  não só acatava a profissionalização da mulher -- mas causava-lhe  aversão ser ela realizada com intuitos interesseiros, circunscrita a benefícios para poucos e  no  proteger os já privilegiados; acusava “a maneira irregular e ilegal que tem presidido o provimento desses cargos,por moças e senhoras” (crônica “Voto feminino”)  -- não lhe negando  capacidade e condições de exercer um cargo público, por exemplo; como também propunha o aumento do número de Escolas Normais para que as mulheres tenham melhor educação e com isso pudessem  desempenhar papel importante na formação da criança, quer na escola, quer em casa (cf. crônicas do grupo “Educação feminina” e em “A poliantéia das burocratas”)..
Desse modo, segundo ele, as proposições profissionalizantes e eleitoreiras dos movimentos feministas apenas tinham em vista dar possibilidades de realização aos atributos menos importantes da mulher e  como bandeira a aspiração do menos elevado, fazendo a mulher simplesmente obter igualdade aos medíocres que compunham o sistema.Para Lima,  e sua concepção tão elevada da mulher, ela atuando junto ao homem, as exigências do feminismo só podiam ser encaradas como rebaixamento da condição feminina, portanto, censuráveis.
Em outro viés, enfatizando a deterioração do casamento como motivo do aviltamento da mulher, só reconheceria grandeza no movimento feminista da época se atacasse esse problema central: não o fazia,  ignorava-o. – “(...) contra tão desgraçada situação de nossa mulher, edificada com a estupidez burguesa e a superstição religiosa, não se insurgem os borra-botas feministas que há por aí (...).-crônica “Voto feminino”).
Lima Barreto  não via no movimento feminista nada de grandioso, de heróico, de superior, mas sim uma articulação feminina burguesa para meramente conseguir, por meios não legais, cargos públicos, onde a mulher, em lugar de realizar a sua natureza mais nobre, iria ter a possibilidade de exercitar o seu lado, segundo ele, mais vulgar. Via o movimento como eminentemente elitista, que nada mais buscava além de estender às mulheres os privilégios de que gozavam os medíocres que compunham o sistema. Sem o mínimo pendor social, limitava-se tão somente a reivindicar  direito a voto e a cargos públicos, constituía-se em aglutinação para tentar obter a extensão às mulheres das regalias de que gozavam os membros masculinos dos grupos dominantes.
De notável e inquestionável consciência social, avesso a qualquer forma de autoritarismo, intransigente  denunciante do drama das minorias no Brasil do final do século XIX --  negros e mestiços excluídos do mercado de trabalho no período pós-abolição, a exploração dos operários – Lima Barreto tratou com vigor a opressão contra as mulheres, não as que ele chamava “burguesa republicana alienada”,mas principalmente as humildes, pobres, algumas delas mulatas, submetidas a uma sociedade machista e injusta, submissas a pais ou padrastos ou irmãos, ou maridos ou noivos ou namorados dominadores e agressivos, a patrões e senhores exploradores,e em especial carentes de oportunidades de educação e limitadas a formação educacional e cultural insuficiente, alijadas de círculos sociais.

educação da mulher 

Especial era o olhar que Lima dedicava à  formação escolar da mulher e ao processo educativo a elas estabelecido. Foi acerbado crítico da carência de oportunidades educacionais às mulheres, e veemente defensor da obrigatoriedade de serem a elas conferidas melhores possibilidades de educação – o que, de resto, apenas confirmava a posição analítico-reflexiva que dispensava à mulher em sua ficção e nãoficção .
Na verdade, a maioria das mulheres do início do sécu­lo  via a educação simplesmente como um meio para se faze­rem mais agradáveis a seus companheiros ; não buscavam por uma emancipação intelectual – o que justamente levava  Lima a propugnar  por melhores oportunidades educacionais para o sexo feminino. As mulheres,via de regra, mantinham-se circunscritas à es­fera do lar, refletindo os padrões culturais da época:  predominava  o conceito de ser a mulher mais sentimental e amorosa do que intelectiva e filosófica. Segundo Lima, era essa essencialmente a causa de infelicidade existencial e conjugal da mulher. Além disso, estudavam ,em sua maioria, em colégios religiosos, o que era acentuadamente criticado por ele, sugerindo para as mulheres uma educação mais aberta, mais completa, mais eficiente.
Lima sustentava que somente por meio de uma instrução mais aprimorada a mulher, como ‘alicerce da família’, poderia abrir seus horizontes e dispor da  competência necessária para educar os filhos com discernimento. Para ele, a instrução feminina contribuía de forma decisiva para a do homem e seu engrandecimento enquanto ci­dadão: da educação dada aos filhos dependia o destino das gerações e conseqüentemente da sociedade.

mr


































                                 




























































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