terça-feira, 1 de outubro de 2013

A República e os literatos

 
A propósito de 1889, o (excelente) livro de Laurentino Gomes – como também o são,dele, 1808 e 182
Vale saber – ou rever (para quem já conhecia) – a relação de literatos brasileiros, em geral, com a República; e particularmente a postura de três grandes escritores, epígonos literários,intelectuais e –sim- políticos, de suas épocas.
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Embora não tenha produzido correntes ideológicas próprias ou novas concepções estéticas, a geração de intelectuais, solidamente arraigados nas teorias cientificistas de 1870, e todo o espírito progressista da época pareciam estar com a República, apoiada pela maçonaria, pelo positivismo e pelas correntes que se julgavam "desassombradas de preconceitos", as idéias circulando mais livremente num ambiente que Evaristo de Moraes qualificou de "porre ideológico" , um verdadeiro mosaico no qual era predominante o liberalismo,mas que abrigava alguma voga de anarquismo e simpatias explícitas ao socialismo. Sob os princípios genéricos do liberalismo, o grupo intelectual definira a tarefa que lhes cabia ; contribuir e propugnar por uma ampla, profunda ação conjunta para construir a nação e remodelar e fortalecer o Estado.

Já no 15 de novembro de 1889 registraram sua total adesão : numeroso grupo de republicanos,junto com gente da rua, tendo à frente José do Patrocínio,Aníbal Falcão, João Clapp,Campos da Paz, Olavo Bilac, Luis Murat e Pardal Mallet - estes três pela primeira vez movidos à ação política concreta-- dirigiu-se à sede da Câmara, aos gritos de viva à República, e redigiram moção de apoio aos chefes da insurreição militar nestes termos :
"Os abaixo assinados,órgãos espontâneos do povo do Rio de Janeiro, representam o governo provisório,instituído após gloriosa revolução que ipso facto extinguiu a monarquia no Brasil,a necessidade urgente da proclamação da República
Excelentíssimos srs. representantes supremos das classes militares do Brasil, marechal Deodoro da Fonseca,chefe de divisão Wandenkolk e tenente-coronel dr. Benjamin Constant.
O povo do Rio de Janeiro, reunido em massa no edifício da Câmara Municipal, tem a honra de comunicar-vos que, por meio de diversos órgãos espontaneamente surgidos e pelo seu representante legal, proclamou como nova forma de governo nacional a República.
Esperam os abaixo assinados,representantes do povo do Rio de Janeiro, que o patriótico governo provisório sancione o ato pelo qual,instituindo a República, se pretende satisfazer a íntima aspiração do povo brasileiro. Viva a República Brasileira ! Vivam o Exército e a Armada nacionais ! Viva o povo do Brasil !"
O entusiasmo adesista dos intelectuais era generalizado; em outro manifesto, dirigido ao Governo Provisório instalado a 16 de novembro, assinado por alguns homens de letras em 22 de novembro :
"O povo, e quando dizemos povo referimo-nos àquela grande parte da nação que os aristocratas de todos os tempos chamaram desdenhosamente o terceiro e quarto estado, donde, reparai bem, em sua maioria saiu sempre o nosso glorioso Exército; os homens de letras, e quando dizemos os homens de letras referimo-nos a todos aqueles que tomando a si os encargos intelectuais da pátria foram, no curso de quatro séculos, os fatores mais enérgicos e mais desinteressados de nosso progresso; plebe e pensadores, sempre estas duas forças caminharam aqui unidas !... Agora mesmo no fato extraordinário que é o espanto da Europa e o júbilo da América na proclamação da República,as duas grandes forças lá estão ungidas uma a outra... A era das grandes lutas da política responsável abriu-se definitivamente para os brasileiros... A pátria abriu as largas asas em direitura à região constelada do progresso; a literatura vai desprender também o vôo para acompanhá-la de perto. Ao futuro ! ao futuro,modeladores de povos,construtores de nações !

No clamor pela ampliação da atuação do Estado sobre a sociedade aliavam-se a homens públicos, políticos, jornalistas, até mesmo cafeicultores e industriais ,e a esse grupo juntar-se-ia os grupos militares defensores e sequiosos de maior participação dos militares na política— o que mais tarde não causaria surpresas quando do progressivo e acentuado fortalecimento dos governos republicanos a partir de Floriano Peixoto. As reformas que preconizavam, no entanto, perderam-se no processo político republicano. Na consolidação do novo regime ,dando-se por meio de um processo caótico e dramático, malograram-se seus esforços cientificistas ,reformadores, inovadores na criação daquele ‘saber sobre o brasil’. Cedo, muito cedo, já nos primeiros anos do século XX desiludiam-se : "Está tudo mudado: Abolição, República... Como isso mudou ! Então, de uns tempos para cá parece que essa gente está doida", vaticina Isaias Caminha , sob a pena de Lima Barreto. José Veríssimo, em "Vida literária" (revista Kosmos, n. 7,1904) , descreve : "Todos se presumiam e diziam republicanos,na crença ingênua de que a República, para eles palavra mágica que bastava à solução de problemas de cuja dificuldade e complexidade não desconfiavam sequer, não fosse na prática perfeitamente compatível com todos os males da organização social, cuja injustiça os revoltava". Ainda em outubro de 1890, antes do primeiro aniversário do 15 de novembro, desencantava-se Silva Jardim, lamentando em carta a Rangel Pestana : "Comunico-lhe que parto para a Europa, a demorar-me o tempo preciso a que esta País atravesse o período revolucionário de ditadura tirânica e de anarquia..." . "Esta não é a República de meus sonhos". lamentou-se Lopes Trovão, um dos próceres do movimento republicano. "Foi para isso então que fizeram a República ?", protestou Farias Brito.
Difícil de manter uma convivência pacífica entre a República política e a ‘Republica das letras’, agravado pela crescente insatisfação popular com o novo regime, exposta em agitações de rua, episódios violentos, revoltas e movimentos de protesto – e mais ainda com os novos costumes e práticas de desenfreada especulação financeira, a busca de enriquecimento a qualquer custo,o advento de um capitalismo predatório levando ao encilhamento, a escandalizar Taunay que via "uma degradação da alma nacional" e a decepcionar republicanos ardorosos como Raul Pompéia ("A república discute-se consubstanciada no Banco da República").
No campo político, até que mantiveram-se passivos diante da "ditadura tirânica" e aceitaram as coligações de Deodoro da Fonseca com as forças mais conservadoras do Brasil agrário, mas as esperanças esfacelaram-se diante da índole e prática repressoras do governo Floriano Peixoto , quando se deu um cisma profundo entre os literatos e alguns dos antigos entusiastas da República tiveram de fugir do Rio de Janeiro para evitar a prisão, como Olavo Bilac e Guimarães Passos. Passado o momento inicial de esperança, desfeito o caminho almejado da democratização do País prometida em comícios, conferências públicas,na imprensa radical, consolidada a vitória da ideologia reforçadora do poder oligárquico, derrotados,desapontaram-se as elites, desapontaram-se os trabalhadores e o povo, desapontaram-se os intelectuais , que desistiram da política militante e se concentraram na literatura.

Nesse cenário, cabe examinar três grandes escritores – dos maiores de toda a historiografia literária brasileira e dos mais importantes exatamente do crucial período de transição da Monarquia para a República.
Machado de Assis

"Quanto às minhas opiniões
políticas tenho duas, uma impossível outra realizada. A realizada é o sistema representativo e é sobretudo como brasileiro que me agrada essa opinião, e eu peço aos deuses (também creio nos deuses) que afastem do Brasil o sistema republicano porque esse seria o do nascimento da mais insolente aristocracia que o sol jamais alumiou". . Certamente pelo uso do subterfúgio, da dissimulação, da sutileza, do disfarce e do enigma – ‘arte’ da qual era mestre e artífice -- Machado de Assis recebeu indevidamente, numa das mais equivocadas avaliações da literatura brasileira, a pecha de "despolitizado", "apolítico", "alheio às questões políticas e sociais de seu tempo".
Ledo, puro e absurdo engano ! Machado de Assis foi um lúcido ‘relator’ da história brasileira e um crítico atento e severo da sociedade e das instituições do País .Quem ler suas preciosas crônicas , escritas durante mais de quatro décadas em diversas publicações, verá que Machado não era um ‘alienado’ na visão e discernimento para as coisas da política,muito menos,conforme alegam seus detratores, para a o escravismo. Machado de Assis tinha opiniões políticas — pode-se dizer ter sido um monarquista liberal, não apoiava a República e repudiava os desmandos e desalinhos que se deram logo em sua primeira década de implantação, e por meio de sua obra é possível observar a política brasileira de sua época através do olhar literário : em se tratando do observar a política,olhar sempre direto,claro,transparente – raramente oblíquo, arrevesado, enviezado,muito menos dissimulado.
Olhar,lente e pena machadianos que se dedicaram a retratar,relatar,comentar,criticar ou parodiar, ironizar ou protestar, repudiar ou gracejar tanto os acontecimentos principais como os secundários ,tanto os macro como os micro- eventos,tanto a história\vida pública quanto a história\vida privada – conferindo a ambos a mesma importância e a mesma ‘grandeza’ nas linhas e entrelinhas de suas quase quatro centenas de crônicas tratando de fatos,homens e coisas da política, de que a ele pouco, muito pouco escapou. Seu testemunho croniquesco sobre a vida política do II Reinado e início da República ,de tão precioso e valioso , pode ser dado como indispensável para o conhecimento e interpretação do Brasil .
Ao olhar machadiano para a política e a História,sempre acurado,lúcido,claro, nítido ,direto -- obliquo ou dissimulado , por vezes ambíguo e periclitante, parece ser apenas seu olhar para os erros,contradições e incongruências do regime monárquico: ele,um monarquista liberal, que muito simpatizava e respeitava o imperador Pedro II -- nada escapou dos fatos e assuntos de qualquer natureza de seu tempo ,passando por seu aguçado crivo , trocas de ministros, quedas de gabinetes, substituições de autoridades, falcatruas parlamentares, fraudes e cambalachos eleitorais, corrupção,a extinção da escravidão,o fim da Monarquia,o advento da República; além de, na seara da economia, à qual também destilou sua verve crítica, as mazelas gerados pelos tempos novos de uma ciranda financeira e sua plêiade de emissões, crédito luxuriante, jogatina, falências em cadeia , passando também por sua pena precisa e afiada quebras de bancos , a crise financeira inerente à Guerra do Paraguai, os problemas da conjuntura econômica envolvendo companhias,bancos e entidades nos anos finais do Império.
 
Da República, foi crítico ‘sofrido e perplexo’– "(...)eu peço aos deuses (também creio nos deuses) que afastem do Brasil o sistema republicano porque esse seria o do nascimento da mais insolente aristocracia que o sol jamais alumiou(...)", escreveu ---fazendo-o sentir-se especialmente na década de 1890 desalentado, desgostoso,em estado da mais completa desilusão com os rumos da República e as endêmicas manifestações de um cenário de corrupção, inerente ,para Machado,ao próprio regime republicano e seus projetos ‘modernizadores’.
Crônicas e política, crônica e História, crônica e sociedade, não-ficção e realidade : elos,laços e fulcros marcantes na obra de Machado de Assis. Na maior parte dela,em seu âmago e essência, cerne e conteúdo, é oferecida ao leitor uma interpretação lúcida, consciente, instigante, por vezes contundente -- mas também irônica, alegórica -- das diversas fases do II Reinado, da derrocada do Império e da eclosão da República, desnundando mitos e certezas, aparências e disfarces, dilemas e mentiras -- sob o mesmo clamor crítico-satírico de um olhar direto e transparente, nada oblíquo ou dissimulado, feito testemunho incomparável e imprescindível da vida política e institucional brasileira do século XIX.
Revelando também a insofismável atualidade de Machado de Assis com relação ao Brasil de hoje...

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Eu
clydes da cunha A política desde cedo exerceu irresistível atração em Euclydes, sua biografia e sua bibliografia se confundem com a própria história social e política brasileira do final do século XIX e início do século XX. Euclydes tratou de política sob as mais variadas formas e expressões, entre artigos publicados originalmente em jornais , em textos e ensaios integrados às coletâneas ,até mesmo na poesia,bem como em conferências e discursos, em cartas a amigos e correligionários, nas marcantes correspondências com o sogro Sólon Ribeiro, e especificamente quando de sua vivência (1898-1901) em São José do Rio Pardo, no programa do jornal O Proletário(1899) e o manifesto de 1º de maio de 1899 .
A ‘devoção’ de Euclydes à República (no estágio primeiro) tem como essência ‘medular’ o cientificismo, que forneceu seu conceito da República, para ele uma forma de organização social, mais do que um simples regime de governo, lastreada numa ‘filtragem’ democrática dos talentos ‘superiores’ nas várias camadas sociais, o sistema por excelência dos mais bem dotados intelectualmente, das grandes capacidades: só uma "elite justa e esclarecida" poderia conduzir adequada e competentemente os destinos do país – não pelo poder em si, mas para fazer o País superar seus problemas e diferenças sociais, esta a maior de suas preocupações e empenho na busca de soluções, ao menos a nível intelectual. Uma ‘elite dotada, justa e esclarecida’ formada e proveniente da Escola Militar : só esse contingente social condensaria os atributos políticos, científicos, racionais, culturais e morais para cumprir sua missão. Convém observar, neste particular, que Euclydes não foi um militante na campanha republicana pré-1889, como tantos intelectuais e literatos seus contemporâneos (e amigos): da mesma forma quanto à Abolição.
O propagandismo republicano que engendrou e praticou - pelo menos até o final da década de 1890 - era para Euclydes, antes e acima de tudo, irrevogavelmente convicto da superioridade da ciência sobre todas as demais formas do saber. A par desse duplo propagandismo, propugnava pelos ideais de uma sociedade humanitária, justa, democrática, moderna e civilizada – seu projeto de "Pátria humana", como resultado possível e desejável do progresso material e científico engendrado no século XIX, a intensificar-se no século XX – sob uma evolução, sustentava ele, contínua, linear, conjugando o industrialismo com a edificação de uma sociedade progressista, justa .Para ele, somente o progresso, gerador do crescimento material, econômico, tecnológico, seria capaz de propiciar e garantir o equilíbrio e a justiça social – e somente um regime de cientistas e técnicos o poderia prover.
A posterior desilusão com a República foi muito mais e antes de tudo o desalento com o fracasso do ideário de liberalismo social e a certeza da não-consecução do projeto político-ideológico-científico. Talvez na sensibilização anos depois, com as teses socialistas visse nelas o suporte ideológico, não o socialismo per se, que propiciasse a realização daquele ideário – em comum, o elo humanitário e o ideal de justiça social.
Euclydes passou da militância pela República à descrença com os rumos do novo regime - distanciamento gradativamente se revelando na seqüência de artigos que publicou, entre 1890 e 1892, em diversas cartas, a primeira ao pai, em junho de 1890 - expressando sua avaliação de que o país estava entrando em um "desmoralizado regime da especulação, em que se pensava em tudo, menos na Pátria" – depois ao sogro, major (à época) Sólon Ribeiro, em 1895 – dizendo que "a situação é justamente de espertos, daí o grande desânimo que me atinge. (...) Às vezes creio que a nossa Republica atravessa os piores dias" - a João Luís Alves, em maio 1897, poucos meses antes de seguir para Canudos - como uma espécie de testamento de pessimismo, lamentando "esse descalabro assustador, ante essa tristíssima ruinaria de ideais longamente acalentados (...), a República agora paraíso dos medíocres, nela o triunfo das mediocridades e preferência dos atributos inferiores." O que mais o inconformava era o desvirtuamento dos ideais republicanos – que tinha ao fundo e na essência, não custa reiterar, a frustração no que tange às proposições inerentes ao liberalismo social.
Não obstante os primeiros questionamentos e as primeiras desilusões participou, ainda que de forma secundária, do contragolpe de Floriano Peixoto, em 23 de novembro de 1891 : defendia pela imprensa a legalidade do governo de Floriano, vendo na permanência de Floriano no poder a possibilidade de consolidação da República. Mas seu idealismo republicano diluiu-se ao longo dos anos subseqüentes, e sua crítica aos desvios da política republicana radicalizou-se a partir de 1898 (já em São José do Rio Pardo,depois de voltar de Canudos) : discutia a fundação da República por meio de um golpe militar e os problemas que tal origem trouxeram ao novo regime, criticava de forma aguda quer o militarismo dos primeiros governos, quer o liberalismo artificial de uma Constituição que as elites civis violentavam por meio de fraudes e manipulações eleitorais: o Estado, ‘tomado’ e manipulado ostensivamente pelas oligarquias políticas e econômicas, o arrivismo financeiro desenfreado pelos especuladores, o empresariado e cafeicultores valendo-se acintosamente dos recursos públicos, deputados e senadores valendo-se da distribuição de cargos e sinecuras para familiares, amigos, protegidos e cabos eleitorais.  

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Lima Barreto
Na essência de sua literatura, Lima Barreto sempre tratou mais de política do que qualquer outro tema. Ninguém como ele, em seu tempo, escreveu tanto sobre o tema e, por extensão, sobre questões sociais. Sua ‘literatura militante’, assim por ele definida, determina o caráter marginal de sua obra: sua visão crítica da sociedade o fez enveredar concreta e irreversivelmente no caminho da luta social; nos jornais e revistas investiu contra todos os signos do poder, nos textos ficcionais denunciou as profundas injustiças da sociedade brasileira.
Toda a obra barretiana desenvolve-se a partir e em torno de um tema nuclear: o poder e seus efeitos discricionários — o poder visto e descrito por ele como "o variado conjunto de elementos, vetores e procedimentos encadeados no interior da sociedade, compondo grandes e pequenas cadeias, visíveis e invisíveis, tendentes a restringir e constringir o pensamento dos homens, coibindo-lhes as possibilidades de afirmação, pessoal, cultural, profissional, social, e a justa inserção social". Tinha a visão verticalizada, analisando desde as estruturas políticas como o governo e as ideologias, e as instituições culturais como a imprensa e a ciência, até os modelos determinantes do comportamento coletivo e do relacionamento cotidiano.
Crítico implacável da pretensa modernidade que se queria implementar com a República, avesso a todas as formas de assimilação de valores estrangeiros (no bojo ,p. ex. de sua resistência ao futebol, ao cinema e à cultura importada ), defensor ,por vezes intransigente, de uma brasilidade que sustentava devia permear a "autêntica língua nacional", foi no entanto opositor ativo do nacionalismo ufanista surgido no final do séc. XIX e início do XX,a começar por questionar as imagens errôneas que o Brasil fazia de si mesmo, levando ad absurdum os clichês e mitos nacionalistas e os desmascarando um a um.(no romance Triste fim de Policarpo Quaresma parodia implicitamente o opúsculo patrioteiro de Afonso Celso, filho de seu protetor, intitulado Por que me ufano do meu país (1901), livro muito popular no começo do século XX, que deu origem ao termo ufanismo. Lima Barreto inclusive alertava para o que denominava "um dos mitos mais perigosos,o do patriotismo : no fundo, os patriotas grandiloqüentes de plantão não passam de traidores da pátria, pois a usam para a sua própria autopromoção e enriquecimento (...), a sociedade de classes e o Estado a instrumentalizarem o patriotismo e o nacionalismo em favor do interesse das elites.".. Na contrapartida, procurou esboçar um patriotismo social, com consciência histórica e respeito pela cidadania, ancorado na cultura própria, resistente ao cosmopolitismo e de reconhecimento da mestiçagem – étnica,social e cultural --no Brasil.
Para ele, a nova sociedade ,caracterizada pelo binômio cosmopolitismo, inspirador das ações da elite do país , e bovarismo, "atitude mistificatória de o homem se conceber outro que não é, entre o que é e o que acredita ser", era um sistema que premiava o egoísmo, o banal, a decadência dos costumes, o preconceito, lastreada nos valores máximos da elite – a fruição do conforto material, os privilégios, a superioridade, gerando discriminação e sectarismo. "A nossa República se transformou no domínio de um feroz sindicato de argentários cúpidos, com os quais só se pode lutar com armas na mão. Deles saem todas as autoridades, deles são os grandes jornais, deles saem as graças e os privilégios; e sobre a Nação eles teceram uma rede de malhas estreitas, por onde não passa senão aquilo que lhes convém"
Muitos contos e crônicas -– em especial aqueles escritos entre 1915 e 1922, um período histórico conturbado, durante os sucessivos governos de Hermes da Fonseca, Venceslau Brás e Epitácio Pessoa, em sete dos mais cruciais anos de plena sedimentação do regime republicano,de resto um processo de altíssima ebulição política, convulsionante e transformadora. --- constituem exemplares insofismáveis da veemente oposição de Lima Barreto à República, da ferrenha crítica aos governos republicanos ,notoriamente o ‘hermismo’ ( a Hermes da Fonseca) , já objetos de críticas exacerbadas em inúmeros artigos e crônicas e também na novela Numa e a ninfa e no memorialístico Diário íntimo , e expressão do intransigente e obstinado repúdio para as coisas da política, aos políticos , aos conchavos partidários,às oligarquias.
Por essa época , apenas Lima Barreto (Euclydes da Cunha morrera em 1909) mantinha , entre os escritores, uma postura participativa – de natureza crítica -- nas coisas da política , uma vez que os demais literatos se afastaram do envolvimento e da militância a que se entregaram ainda durante as campanhas abolicionista e republicana, nas últimas décadas do século XIX e início do século XX : frustrados a expectativa e o entusiasmo iniciais despertados pela República , os intelectuais desistiram da participação política ativa, militante, que muitos tiveram no advento do novo regime e passaram a se concentrar na literatura e em parte no jornalismo ‘croniquesco’, dedicando-se a produzir uma literatura de linguagem empolada, o ‘clássico’ calcado em expressões cediças e de figuras de efeito, cheia de arabescos estilísticos — uma literatura impregnada de vocábulos garimpados do virtuosismo lingüístico e verborrágico,expressão da frivolidade dominante. Uma literatura como "o sorriso da sociedade" de que falava Afrânio Peixoto e contra a qual Lima Barreto até o fim de sua vida lutou com denodo.


 
 



 

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