quinta-feira, 4 de julho de 2013
a propósito da Flip --- e seu grande homenageado
um
‘libelo’ contra o futebol, início da década de 1920 [ o bolapé
então já ‘nas graças do povo’...] por um certo J. Calisto
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Traços a esmo
Pensa-se em introduzir o football
nesta terra. É uma lembrança que, certamente, será bem recebida pelo público,
que, de ordinário, adora as novidades. Vai ser, por algum tempo, a mania, a
maluqueira, a ideia fixa de muita gente. Com exceção, talvez, de um ou outro
tísico, completamente impossibilitado de aplicar o mais insignificante pontapé
a uma bola de borracha, vai haver por aí uma excitação, um furor dos demônios,
um entusiasmo de fogo de palha capaz de durar bem um mês.
Pois quê! A cultura física é
coisa que está entre nós inteiramente descurada. Temos esportes, alguns
propriamente nossos, batizados patrioticamente com bons nomes em língua de
preto, de cunho regional, mas por desgraça estão abandonados pela débil
mocidade de hoje. Além da inócua brincadeira de jogar sapatadas e de alguns
cascudos e safanões sem valor que, de boa vontade, permutamos uns com os
outros, quando somos crianças, não temos nenhum exercício. Somos, em geral,
franzinos, mirrados, fraquinhos, de uma pobreza de músculos lastimável.
A parte de nosso organismo que
mais se desenvolve é a orelha, graças aos puxões maternos, mas não está provado
que isto seja um desenvolvimento de utilidade. Para que serve ser a gente
orelhuda? O burro também possui consideráveis apêndices auriculares, o que não
impedem que o considerem, injustamente, o mais estúpido dos bichos.
Muito melhor é ser-se dono de um
braço capaz de rebentar um contendor, se ele é fraco, ou de uma perna
suficientemente ágil para fugir, numa velocidade de léguas por minuto, se o
inimigo é forte.
Ora, no estado em que nos
encontramos não só não temos energia para atacar ninguém, mas falta-nos até o
vigor necessário para recuar. O que é comum é conservar-se um pobre diabo num
lamentável estado de inércia, a sofrer tormentos com resignação, coragem, se
quiserem, mas coragem negativa, que muitas vezes não é mais que inaptidão para
evitar o perigo.
Fisicamente falando, somos uma verdadeira
miséria. Moles, bambos, murchos, tristes – uma lástima! Pálpebras caídas,
beiços caídos, braços caídos, um caimento generalizado que faz de nós o ser
desengonçado, bisonho, indolente, com ar de quem repete, desenxabido e
encolhido, a frase pulha que se tornou popular: 'Me deixa...'
Precisamos fortalecer a carne,
que a inação tornou flácida, os nervos, que excitantes estragaram, os ossos,
que o mercúrio escangalhou.
Consolidar o cérebro é bom,
embora isto seja um órgão a que, de ordinário, não temos necessidade de
recorrer. Consolidar o muque é ótimo.
Convencer um adversário com
argumentos de substância não é mau. Poder convencê-lo com um grosso punho
cerrado diante do nariz, cabeludo e ameaçador, é magnífico.
O direito é bonito. E é só o que
é, segundo penso. Mas a força é útil.
A paz de Santo Wilson, apóstolo
decadente e mártir risonho, abriu falência. Venceu a paz francesa, de
mandíbulas agressivas, e caninos à mostra, pronta a estracinhar a terra
germânica(referência ao presidente dos Estados Unidos Thomas Woodrow
Wilson(1856-1924). Ao irromper a I Guerra Mundial proclamou a neutralidade dos
EUA. Reeleito presidente, no entanto, entrou na guerra ao lado dos Aliados,
contra a Alemanha. Em 1919 apresentou à conferência de Paz o seu programa para
a resolução dos conflitos políticos europeus. Suas teses pacificadoras, porém,
perderam sentido diante das intenções revanchistas dos Aliados, sobretudo da
França. Apesar disso Wilson recebeu o Premio Nobel da Paz em 1920).
Se voltarmos o olhar para baixo,
para o microcosmo social em que vivemos, é o mesmo fenômeno. A razão está
sempre ao lado de quem tem rijeza.
Ora, entre nós é extremamente
difícil encontrar um homem forte. Somos um povo derreado. Topamos a cada passo
seres volumosos, mas raramente se nos depara uma criatura sã, robusta. O que
anda em redor de nós é gente que tropeça, gente que corcova, gente que arfa ao
peso da barriga cheia de unto. É andar um quilômetro a pé e ficar deitando a
alma pela boca.
Para chegar ao soberbo resultado
de transformar a banha em fibra, aí vem o football.
Mas por que o football?
Não seria, por ventura, melhor
exercitar-se a mocidade em jogo nacionais, sem mescla de estrangeirismo, o
murro, o cacete, a faca de ponta, por exemplo?
Não é que me repugne a introdução
de coisas exóticas entre nós. Mas gosto de indagar se elas serão assimiláveis
ou não.
No caso afirmativo, seja muito
bem-vinda a instituição alheia, fecundemo-la, arranjemos nela um filtro híbrido
que possa viver cá em casa.
De outro modo, resignemo-nos às broncas tradições dos
sertanejos e dos matutos. Ora, parece-me que o football não se adapta a estas
boas paragens do cangaço. É roupa de empréstimos, que não nos serve.
Para que um costume intruso possa
estabelecer-se definitivamente em um país, é necessário não só que se harmonize
com a índole do povo que o vai receber, mas que o lugar a ocupar não esteja
tomado por outro mais antigo, de cunho indígena. É preciso, pois, que vá
preencher uma lacuna, como diz o chavão.
O do football não preenche coisa
nenhuma, pois já temos a muito conhecida bola de palha de milho(bola de milho,
peteca), que nossos amadores mambembes jogam com uma perícia que deixaria o
mais experimentado sportman britânico de queixo caído.
Os campeões brasileiros não
teriam feito a figura triste que fizeram em Antuérpia se a bola figurasse nos
programas das Olimpíadas e estivessem a disputá-la quatro sujeitos de
pulso(jogo de peteca). Apenas um representante nosso conseguiu ali
distinguir-se, no tiro de revólver(medalha de ouro conquistada pelo Brasil nas
Olimpíadas de 1920, em Antuérpia, na modalidade de revólver de precisão), o que
é pouco lisonjeiro para a vaidade de um país em que se fala tanto. Aqui seria
muito mais fácil o indivíduo salientar-se no tiro de espingarda umbiguda,
emboscado atrás de um pau.
Temos esportes em quantidade. Para
que metermos o bedelho em coisas estrangeiras?
O football não pega, tenham a
certeza. Não vale o argumento de que ele tem ganho terreno nas capitais de
importância. Não confundamos.
As grandes cidades estão no litoral;
isto aqui é diferente, é o sertão.
As cidades regurgitam de gente de
outras raças ou que pretende ser de outras raças; nós somos mais ou menos
botocudos, com laivos de sangue cabinda e galego.
Nas cidades os viciados elegantes
absorvem o ópio, a cocaína, a morfina; por aqui há pessoas que ainda fumam
liamba.
Nas cidades assiste-se,
cochilando, à representação de peças que poucos entendem, mas que todos
aplaudem, ao sinal da claque; entre nós há criaturas que nunca viram um gringo.
Nas cidades há o maxixe, o tango,
o foxtrote, o one-step(dança de salão em compasso binário) e outras danças de
nomes atrapalhados; nós ainda dançamos o samba.
Estrangeirices não entram
facilmente na terra do espinho. O futebol, o boxe, o turfe, nada pega.
Desenvolvam os músculos, rapazes,
ganhem força, desempenem a coluna vertebral. Mas não é necessário ir longe, em
procura de esquisitices que têm nomes que vocês nem sabem pronunciar.
Reabilitem os esportes regionais,
que aí estão abandonados: o porrete, o cachação, a queda-de-braço, a corrida a
pé, tão útil a um cidadão que se dedica ao arriscado ofício de furtar galinhas,
a pega de bois, o salto, a cavalhada, e, melhor que tudo, o cambapé, a
rasteira.
A rasteira! Este, sim, é o
esporte nacional por excelência!
Todos nós vivemos mais ou menos a
atirar rasteira uns nos outros. Logo na aula primária habituamo-nos a apelar
para as pernas quando nos falta a confiança no cérebro – e a rasteira nos
salva. Na vida prática, é claro que aumenta a natural tend6encia que possuímos
para nos utilizarmos eficientemente da canela. No comércio, na indústria, nas
letras e nas artes, no jornalismo, no teatro, nas cavações, a rasteira triunfa.
Cultivem a rasteira, amigos!
E se algum de vocês tiver vocação
para a política, então sim, é a certeza plena de vencer com o auxílio dela. É
aí que ela culmina. Não há político que a não pratique. Desde S. Exa. o Senhor
Presidente da República até o mais pançudo e beócio coronel da roça, desses que
usam sapatos de trança, bochechas moles e espadagão da Guarda Nacional, todos
os salvadores da pátria têm a habilidade de arrastar o pé no momento oportuno.
Muito útil, sim senhor.
Dediquem-se à rasteira, rapazes.
J. Calisto
[ in O Índio, Palmeira dos
Índios, AL, 10.04.1921]
J.Calisto, que assinava
regularmente a coluna “Traços a esmo”,
era... GRACILIANO RAMOS – que 10 anos depois seria o prefeito da
“princesa do sertão’ (assim era tida Palmeira dos Índios).
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