domingo, 19 de maio de 2013

-- a significância de "Clara dos Anjos" na obra e na 'ideologia literária' barretiana

ainda pela 'Semana LIMA BARRETO (13.05.1881)'
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-Inflexão e definição de rumo literário de Lima Barreto : intextualidades entre "Clara dos Anjos", Isaias Caminha e Gonzaga de Sá

"Clara dos Anjos" é, per se, uma das mais importantes obras de Lima, de relevância ímpar – não (apenas) por ser sua primeira obra ficcional, mas por simplesmente representar, emblematizar e sintetizar a própria evolução literária barretiana (também o há em Lima—‘a la’ Machado,- nada sendo estanque ou isolado em sua produção ficcional, uma obra se sucedendo e integrando a outra,temática e tramaticamente :no caso específico, “Clara dos Anjos” no epicentro,em torno dela gravitando os romances seguintes) e constituir  um marco a determinar o rumo imprimido à sua ficção .
“Clara dos Anjos” aparece na obra ficcional de Lima Barreto, sob o mesmo título, em três versões, defasadas no tempo, e distintas entre si,nem tanto pelo enredo em si,este mantido essencialmente o mesmo (a mulata, de família humilde, no subúrbio do Rio de Janeiro,seduzida pelo homem branco e depois abandonada) mas pelos focos e enfoques temáticos que Lima imprimiu ao longo do tempo. A primeira versão é de 1904, um romance inacabado, com apenas quatro capítulos, inserido em Diário íntimo (depois da sedução, Clara, desonrada, é explorada por vários homens); a segunda, um conto publicado em 1919 e incluído na coletânea Histórias e sonhos (depois de seduzida, Clara assume sua desonra e leva a vida melancólica e pobre); a terceira, um romance ‘acabado’ (a narrativa centraliza-se nos mínimos detalhes da sedução), escrito entre dezembro 1921  e janeiro 1922, veiculado postumamente em 1923-34, em folhetins na Revista Souza Cruz.e publicado em livro somente em 1947 – sua derradeira obra fechando assim o ciclo ficcional do escritor.
As diferenças marcantes e importantes de uma versão para outra residem nos desvios de enfoques adotados por Lima – o que aponta mudanças em seu pensamento e sua ‘estética literária’ no decorrer dos anos: do foco sobre a situação dos negros na cidade do Rio,em 1904, ao foco menos projetado sobre a questão racial e mais enfático à miséria e injustiça social como um todo,independente de raça, sob cunho ‘romanesco’, o autor ressaltando os aspectos e o teor trágico que aflige indistintamente homens e mulheres desgraçados pela miséria, em 1921-22 – valendo observar,nesse sentido, uma diferença no tratamento dado por Lima ao trágico, sempre recusado por ele ,e assumido na obra derradeira. Da conotação eminentemente social-racial do primeiro texto a múltiplas conotações social,econômico e psicológico no último -- ainda que discriminação e preconceito raciais sejam elementos constantes em toda sua ficção.
“Clara dos Anjos” em suas três versões expressa crucial desvio de uma intenção inicial de enfoque temático nas questões de negritude e situação do negro no país – a concepção inicial da novela e o projeto historicista de elaboração de uma “História da escravidão no Brasil” -- para o romanesco,mas de cunho político,com foco no cenário institucional e na sociedade brasileiros (assim foi nos romances que vieram depois e nos contos).
Guinada que já se manifesta, de resto, em "Recordações do escrivão Isaias Caminha", também elaborado em 1904, e finalizado em 1905 -- assim como no romance "Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá",cuja composição se deu em paralelo, durante o mesmo período, ambos carregados de muitas intertextualidades temáticas (e filosófico-ideológicas). Lima [por razões que ora eu estudo] preferiu priorizar a publicação de "Isaias Caminha" , somente publicando "Gonzaga de Sá" em 1919(inclusive por insistência de Monteiro Lobato, que o editou ); vale dizer: Lima abandonou o projeto de romance histórico sobre a escravidão no Brasil para assumir a observação crítica, demolidora, da vida política e institucional inerentes à República – dela tornando-se ‘arqui-crítico’: o romance inacabado de 1904 (“Clara dos Anjos”)como que prepara os romances de 1905 (Isaias Caminha e Gonzaga de Sá) – no primeiro, da idéia inicial de obra sobre preconceito racial a obra psicológica,existencial, de obra denunciadora de discriminação social-racial a obra crítica-satírica ao mundo jornalístico e literário (trata-se na verdade de exemplo típico da “falácia intencional”,conforme o conceito cunhado pelo crítico francês Pierre Macherey em sua obra Pour une théorie de la production littéraire : intenções e decisões preliminares e apriorísticas do autor ao conceber uma obra podem não prevalecer e serem alteradas na confecção mesma da narrativa – como que o autor ‘descobrisse’ sua história ; na construção ficcional tanto de “Clara dos Anjos”, em suas três versões, como de "Isaias Caminha" --- e de" Gonzaga de Sá" -- Lima ‘descobriu’ o caminho a seguir em sua ficção.).O desvio da concepção original de “Clara dos Anjos para a narrativa que iria preponderar em Isaias Caminha e em Gonzaga de Sá forma o caminho que seguiria a partir daí até o fim da (curta) vida literária.
“Clara dos Anjos” (e em sua ‘esteira’, "Isaias Caminha" e "Gonzaga de Sá"),mais do que a evolução literária sintetiza a própria evolução filosófico-ideológica de Lima Barreto -- e aqui, essencialmente no desvio do foco étnico em favor do mundo romanesco,sem no entanto valer-se da superficialidade ou da “palavra oca,inócua”, deve-se apor a esse processo a insofismável conotação tolstoiana (de Tolstoi,e seu célebre ensaio "O que é a Arte ?", e a percepção religiosa da arte), de resto a maior,e crucial, influência absorvida por Lima do começo ao fim de sua obra,em especial no que tange à transformação de ideais literários e o imprimir de um novo rumo à sua temática ficcional, e a seus conceito e pregação da “literatura como missão” : mas isso faz parte de outra história...ou outro texto).

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