quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

réquiem a Niemeyer : AS CIDADES - II



Espelhos : o Rio de Janeiro por quatro escritores
 Um quarteto espetacular de escritores; quatro obras excepcionais, canônicas -- Memórias de um sargento de milícias,, de Manuel Antonio de Almeida; Casa Velha, de Machado de Assis; Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto; A alma encantadora das ruas,, de João do Rio – verdadeiros,exuberantes  retratos,espelhados entre si e com a cidade, do Rio de Janeiro.
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        Caso exemplar de simbioses  –  magníficas criações literárias de grandes escritores, a propiciar estimulantes possibilidades de  formulação de estudos e reflexões sobre    interações entre  as peças . A rigor, mostra muito mais do que o geográfico-urbano-espacial elo comum entre o Rio e notáveis literatos: traz outros elementos de relações, encadeamentos e ilações -- estas tanto de identificação quanto de  contraposição -- entre as quatro obras, seus autores e... seus  personagens.
        Qual  espelhos que ao mesmo tempo em que refletem ‘invertem’ imagens, as obras em tela guardam e mantêm entre si identidades e contraposições, similaridades e contrapontos,intertextualidades e cotejamentos.(teriam os idealizadores deste conjunto inicial da Coleção vislumbrado essas interações de atores e obras, e o concebido  sob esse approach ?....)
         Primeiramente, vale observar que, sob a órbita do cenário carioca da segunda metade do século XIX e duas primeiras décadas do século XX  brasileira, os quatro livros  guardam,entre cada um dos escritores de cada uma das obras, o importante vínculo de encadeamento sequencial de ciclos cruciais da  historiografia literária brasileira , a saber:  Memórias de um sargento de milícias  como exemplar do Romantismo ( abalizadas análises projetem a obra de  Manuel Antonio de Almeida  na verdade como um antecipador do Realismo) ; Casa Velha,  como (especial) representante do Realismo (malgrado,não apenas  Machado de Assis poder ser considerado, e o é,acima de todos os ciclos e rótulos e chancelas, como ainda a interpretação  deflagrada pela crítica e ensaísta Lucia Miguel-Pereira em Machado de Assis: Casa Velha,1944, interpretação equivocada e depois revisada e corrigida, de ter sido a obra escrita muito antes de 1885, quando foi concretamente publicada).; Triste fim de Policarpo Quaresma,romance expoente do Prémodernismo,de que Lima Barreto foi inconteste epígono, de resto ciclo que também abrigou João do Rio e sua ode à "alma encantadora das ruas"-- obra que assume  papel bastante peculiar,qual  uma 'apresentadora' do cenário urbano onde se desenrolam as histórias e tramas narradas  nas  outras três obras.
       A par de ilações concretas de cunho intelectual e literário entre os escritores e as obras em tela,  mencionemos  a existência efetiva de relações de ordem pessoal – amistosas, num caso; de franca antipatia  mútua,em outro : enquanto Manuel Antonio de Almeida e Machado de Assis guardavam excelente relacionamento e até afinidades  afetivas entre si (mas também marcantes ilações literárias, como se verá)– Almeida,.além de ter sido  chefe de Machado na oficina da Imprensa Nacional,iniciando-o na arte e atividade de tipografia,  introduziu-o  na Sociedade Petalógica e no seleto círculo intelectual em torno de Paula Brito e foi seu grande incentivador para o fazer literatura; Machado, inclusive,dedicou a ele o (importantíssimo) artigo “O jornal e o livro”, publicado em janeiro 1859 (ele, com menos de 19 anos e meio) no Correio Mercantil  –  de outro lado, Lima Barreto e João do Rio se antegonizavam, nutriam forte animosidade um pelo outro.E entre Machado e João do Rio deu-se  curiosa episódio : Machado nunca respondeu ao questionário que,em 1899, João lhe submetera  para a coletânea, de entrevistas com diversos escritores, O momento literário, e acabou não aparecendo – não se sabe até hoje porque – na obra, publicada em 1904..
         Em outro viés – aqui de natureza digamos ‘filosófica’ -- em Machado de Assis e Lima Barreto as diferenças e divergências entre ambos escondem proximidades e até mesmo identidades bastante significativas (veiculei  estudo a respeito, exatamente com esse título,  “Diferentes, divergentes, mas próximos muito próximos, no qual promulgo Lima Barreto e Machado de Assis como verdadeiros, natos, ‘parentes literários’. Ainda que bastante diferentes, ambos muito próximos de várias maneiras – essencialmente semelhantes em concepções filosóficas, temas, influências, pontos de vista,mesmo que sob formas,modos e discursos distintos. De modo convergente, mas de forma  divergente, analisaram os cenários políticos, históricos,institucionais,sociais,culturais de suas épocas e a existência do homem --: Machado, privilegiando as nuances, dissecando-o em sua essência,revelando sutilezas, contradições e ambigüidades psicológicas; Lima, sem linhas e focos enviezados, desnudando suas fraquezas, insuficiências, submissões, condições sociais. Se Machado inaugurou o psicologismo na ficção brasileira, Lima introduziu o tema da incomunicabilidade, do isolamento existencial e social.)
       Por outro lado, notáveis – e sem o serem inusitadas ou surpreendentes - são as  intertextualidades, quer de interações quer  de contraposições, explícitas ou=implícitas, entre as quatro obras e os quatro autores. ’Sob um viés, Memórias de um sargento de milícias irradia genericamente para Casa Velha e para Triste fim de Policarpo Quaresma um vetor de estado e posturas de autoritarismo, concreto ou latente: o autoritarismo ditatorial de Vidigal, em Memórias...  é do mesmo naipe do de Floriano,como tratado em Policarpo Quaresma – de que aliás é o personagem principal, sem dúvida – e de outro tom no autoritarismo doméstico,familiar de d. Antonia em Casa Velha.
        Leonardo Filho, Lalau e Policarpo Quaresma, cada um a seus modo, feitio e circunstâncias, são personagens que reagem a pressões, por vezes intoleráveis, de uma sociedade dominadora, patriarcal, ou de um ambiente matriarcal(como em Casa Velha) – de resto, também  o que se dá com os personagens de Lima Barreto, no geral de sua ficção : Leonardo Filho e Policarpo agem, mas sofrem as sanções da sociedade e do sistema político -- para o primeiro,ainda colonial; para o outro, já republicano -- que os sufocam e ferem; Lalau, de um imperial âmbito  familiar,doméstico, e de  esfera social.
Quer em Memórias de um sargento de milícias, em Casa Velha, quer em Triste fim de Policarpo Quaresma, personagens, situações,tramas – e os autores – ‘subjugados’ ao Estado,onipresente, seja “no tempo do rei”, seja ‘sob o manto imperial’(em 1839),seja sob a ‘mão pesada da República’.
        Não chego a dizer e sustentar que Memórias de um sargento de milícias e Manuel Antonio de Almeida sejam a obra e o autor capitais, centrais, deste conjunto, mas podem ser vistos como um pólo gerador de eixos de ilações e recorrências com as demais obras e autores. Antonio de Almeida e sua obra --  emblemática  de uma inflexão temática, tramática e estilística no romantismo literário brasileiro -- ‘interagem’ com Machado de Assis  não só na antecipação do Realismo, mas também, e especificamente,no que Memórias de um sargento de milícias --‘anárquica’, ‘picaresca’(conotação, na verdade, cunhada por  Mario de Andrade , é questionada por Antonio Candido,em seu primoroso ensaio “Dialética da malandragem”, para quem Leonardo  Filho antes de ser um ‘pícaro’ é, sim, o primeiro malandro da literatura brasileira . No entanto, para ‘simplificar’ e evitar estender o que não é propósito deste comentário, aceitemos e adotemos essa  designação mesmo.) -- prenuncia Memórias póstumas de Brás Cubas (1881)– ‘inovadora’, ‘revolucionária’, marco da inflexão machadiana e de rito de passagem para o Realismo literário brasileiro,e da qual – convém notar - Casa Velha(1885),na produção romanesca machadiana,  é seqüente.
        Memórias de um sargento de milícias  contrasta com a ficção brasileira do tempo – como Casa Velha difere, no enfoque e no tom e timbre, da ficção realista de sua época e inclusive, e em especial, das obras romanescas de Machado de Assis a partir da década de 1880 (Memórias póstumas de Brás Cubas; Quincas Borba; Dom Casmurro; Esaú e Jacó; Memorial de Ayres)

“O tempo do rei’, i.e. de d. João VI, em que se dá a história de Memórias de um sargento de milícias,  é citado e adquire significância especial em  Casa Velha, no que determina como fulcro inicial  na dinâmica da trama a intenção do padre-narrador em escrever a história de Pedro I, inspirado  numa Memória de d. João VI,de autoria do pde. Luís Gonçalves dos Santos, o pde.Perereca. Vale dizer, a obra que o cônego em Casa Velha  propõe-se a escrever é,no âmbito ficcional, ‘decorrente’ da vivência no tempo em que decorre Memórias de um sargento de milícias.: nesta, a estrutura da trama, inerente a história política entre 1808 e 1822, faz o  pano de fundo histórico da obra de Manuel Antonio de Almeida  terminar onde começa o da obra de Machado de Assis.
         Mais do que ‘picaresca’[sic] ou outra conotação que se lhe atribua,  Memórias... é antes de tudo, um romance social – como aliás são os de Lima Barreto.  Mas é também uma história do amor de Leonardo Filho por Luisinha – esta, ao contrário, de Lalau, de Casa Velha, e de certo modo de Olga, de Policarpo Quaresma,  é mocinha burguesa, com herança e meneios dissimulados. A obra de Antonio de Almeida também retrata uma família – Leonardo Filho, seu pai e sua mãe, aliás  o núcleo central do elenco de protagonistas, como o são em Casa Velha d. Antonia,Lalau e Félix. Na obra de Machado de Assis há a contraposição ao mundo patriarcal representada pela figura de d. Antonia, e em dada escala por Lalau, não de todo submissa às regras sociais (embora de comportamento dentro da ‘ordem’); em Memórias de um sargento de milícias personalizada essa contraposição,e confrontante com a ordem estabelecida, por Leonardo Filho: ele e Lalau são dotados, cada um per se, de elementos simbólicos, como  personagens –representantes das classes não-dirigentes [e caberia aqui uma especulação- claro que numa escala ‘surreal’ : Lalau  poderia se interessar,e vice-versa, por Leonardo?...]
        Por sua vez, tanto Memórias de um sargento de milícias quanto Triste fim de Policarpo Quaresma, talvez com sinais invertidos, representam metáforas sobre o destino do Brasil  como Nação. A impressão de realidade comunicada pelas obras decorre de uma visão mais profunda, embora instintiva, da função, ou "destino" das pessoas naquelas sociedades;  Manuel Antônio, guardadas as devidas proporções, mantém em  comum com os autores realistas: a capacidade de intuir, além dos fragmentos descritos, certos princípios constitutivos da sociedade --exatamente como Lima Barreto..
           Ambas as obras e seus protagonistas  como veículos de hilariantes sátiras sócio-políticas, das instituições, Policarpo Quaresma como uma espécie de  Leonardo Filho ao contrário : se aquele  é modelo do patriota, este é o antipatriota. Enquanto Leonardo Filho sofre a repressão de uma sociedade forte,preocupada com a ordem pública,  Policarpo convence-se da necessidade de um governo forte -- o que o leva a apelar ao poder de Floriano Peixoto e alistar-se no exército florianista.
           No geral e em essência, o universo dos personagens da obra de Antonio de Almeida – empregados, subempregados, desempregados, biscateiros; destituídos, marginalizados, etc – é o universo ficcional de toda a obra de Lima Barreto.Os dois autores, ‘contestadores’ da ordem – não apenas numa,digamos, ideologia de suas respectivas tramas e temas ficcionais, mas também  na forma literária: as escrita e linguagem ficcional imprimidas em Memórias.guarda identidades com as escrita,estilo e linguagem literária de Lima Barreto, ambas coloquiais,despojadas,fluentes,lastreadas na oralidade.(“antinefelibatas”, segundo Lima).
          Em Triste fim de Policarpo  Quaresma – como de resto nos demais romances  e novelas barretianos (Recordações do escrivão Isaias Caminha e Morte e vida de M.J. Gonzaga de Sá; em Clara dos Anjos) – há um pathos trágico, da derrota final de Policarpo; em Memórias de um sargento de milícias , ao contrário, dá-se um aparente pathos ‘épico’, de vitória, Leonardo Filho feito por fim sargento de milícias. Se Leonardo Filho é um ‘herói atuante’, picaresco [ sic : conservemos a conotação ‘picaresca’,vá lá...] , ‘thorminiano’ (de Lazarillo de Thormes), Policarpo (bem como Isaias Caminha – e similarmente ao machadiano  ‘homem de espírito’) é um autêntico ‘herói carlyleano’,um ‘herói solitário’, ‘intelectual’ lyleano’– per se  um flâneur. Incorporado de Carlyle (uma das maiores influências intelectuais em Lima),  o flâneur  barretiano – foi Lima  o introdutor desta figura na literatura brasileira – que é um  flâneur dramático,debilitado, andarilho decadente, está no flaneurismo ,de perfil e atuação completamente contrários, de João do Rio, em seus freqüentar e retratar as ruas da cidade.
       Identificação e ‘entrocamento’ entre Lima e João – não obstante as antipatia  e animosidade de um pelo outro no campo pessoal --  que não se dá apenas nesse terreno subjetivo de comportamento social mas também em vívidos aspectos comuns da realidade de origem e de vivência de cada um.
         Ambos  naturais e falecidos no mesmo Rio de Janeiro – João do Rio nascido em 1880, Lima Barreto em 1881(aliás, ano de publicação de Brás Cubas,marco ficcional machadiano); João, morto em 1921, Lima em 1922 : um ano a separá-los em seus nascimentos e mortes – Lima oriundo de família modesta, de funcionário público empregado pela Monarquia, amante de seus ‘adoráveis subúrbios’,rebelde e automarginalizado; João, de família de classe média, abolicionista,positivista, republicana, dândi  integrando-se  gradativamente às altas esferas da sociedade e às  elites ;  os dois vividos na mesma cidade,então em ebulição, pela pretensa modernização, ambos sob a mesma República, João, entusiasta incondicional, Lima, crítico visceral.
          João do Rio, sempre atuando na ‘imprensa burguesa’, em grandes jornais,prestigiado e famoso, foi até mesmo empresário jornalístico;; Lima Barreto, embora iniciando no portentoso e  poderoso Correio da Manhã (acida e demolidoramente criticado em Recordações do escrivão Isaias Caminha—aliás, também João do Rio, impiedosamente satirizado pela “futilidade de sua pose”), sempre preferiu a  imprensa libertária, alternativa, contestadora.. O João cronista, autêntico seguidor da ‘arte das transições’ e da ‘circularidade na crônica’ de Machado de Assis (espécie de marca registrada, entre outras características marcantes, a “arte das transições” faz parte da  própria forma narrativa,,  unindo tópicos aparentemente distintos, um parecendo não ter nada a ver com outro, mas que justapostos oferecem um resultado  surpreendente,cujo trajeto é ‘amenizado’ para os leitor , primeiro desviando-o do tema principal, depois retornando e reintegrando-o,numa espiral  muitas vezes nem percebida de todo) : Lima, praticante consciente de  um novo estilo, contundente, fomentador,para não dizer criador, da crônica contemporânea. João do Rio, criador do colunismo social, um olhar no mundanismo, antagoniza e confronta Lima Barreto, comentarista político, sempre no debruçar nos aspectos  sociais.
         Mas, embora dotados de ideologias, posturas, visões e interpretações nada convergentes, ambos profundamente interessados na cidade e no seu habitante. É nesse sentido e com essa índole que João do Rio registra, apregoa, expõe, dissemina e exalta a  “alma encantadora das ruas” da cidade – que por sua vez está também nos becos,ruelas,ladeiras, por onde Leonardo Filho e os personagens transitam ‘picarescamente’[sic] na obra de Manuel Antonio de Almeida e onde Lima Barreto constrói e ambienta todas suas tramas ficcionais. Os mesmos  contingentes sociais da cidade povoam literariamente as obras dos três escritores.




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