sexta-feira, 7 de dezembro de 2012
Os sertões: contemporâneo da posteridade
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“Só as obras bem escritas hão de passar à posteridade" :palavras lapidares escritas por um naturalista, o conde de Buffon (mais conhecido por uma frase que se tornou famosa :’le style c'est l'homme même’), ao tomar posse na Academia Francesa, em 1753.Já se falou e escreveu __ vai-se falar e escrever sempre, ao que parece __ de sua linguagem difícil : o que não o impediu de ser o primeiro best-seller da história editorial brasileira , com três edições sucessivas no lançamento, a 2 de dezembro de 1902, (ou seja, cinco anos após o fim de Canudos), pela editora Laemmert, e de ser consensualmente considerado “o livro do Brasil”, “a obra número
O que
mais dizer de um livro que conta com mais de 30 edições em português, traduzida
em 3 idiomas, em mais de 60 países__ em
muitos deles foram feitas traduções
sucessivas, em tentativa de contínuo aprimoramento. Mas, por outro lado, é
equivocado pensar que sobre Os sertões
tudo já foi dito, lido,ouvido e escrito : muito há o que comentar, muito o que
refletir, muito até mesmo o que de críticas e ressalvas ouvir e ler, muito o
que debater e meditar.
O que fez ,e faz, Os
sertões tão célebre?
A consagração de Euclides e de sua obra se de um lado
foi, à primeira vista, um fato relâmpago e inesperado __ um anônimo engenheiro
e pouco conhecido jornalista ter se transformado no mais celebrado escritor do país, na época __ de outro está
sedimentado por dois fatores básicos: 1) a aceitação de alguns conceitos –chave
de Os sertões relacionava-se com um
longo trabalho de imposição de novas idéias e concepções e de novos valores que
vinham sendo gestados no país há pelo menos 30 anos __ o cientificismo da
‘geração 1870’ ;
2) a consagração-relâmpago foi impulsionada por alguns dos críticos literários
mais importantes do país, José Verissimo, Araripe Juniorr e depois Silvio
Romero__ além de Roquette-Pinto. Todos enalteceram , insistindo em signos de
raridade na obra, mostrando o quanto texto, tessitura, forma, estrutura e
conteúdo escapavam do comum, do
conhecido.__ e os ensaios críticos que vieram em sequência, ao longo dos anos(e
até hoje), enfatizam esse caráter de descobertas de verdades fundamentais para
o destino do país, como “a tese dos dois Brasis”, a necessidade de olhar para o
interior, para “o Brasil real”. O consenso era de que Os sertões não podia ser comparado a nenhum outro livro: era “uma
bíblia permanentemente aberta para interpretações, vindas de diversas áreas :
literatura, história, geografia, geologia, política,biografia,matemática,
engenharia”.Tanto Verissimo como Araripe sublinhavam a idéia de totalidade
encontrada no livro, resultado da soma da arte com a ciência, do épico com o
trágico e da emoção com a razão. Euclides produzira uma obra científica, uma
obra histórica, mantendo “a continuidade da emoção, sempre crescente, sempre
variada, que sopra rija, de princípio a fim, no transcurso de 634 páginas, um
livro fascinante, resultado de um conjunto de qualidades artísticas e de
preparo científico”. Eis aí uma das vertentes do aspecto ‘ fundador’ da obra,
tão mencionado pelos críticos literários ao longo do tempo.
A emoção e o espanto provocados
pela obra de Euclides emite seus ecos até hoje. Quase todos os críticos se
entusiasmaram, mas por força de seu ofício ficaram se perguntando: por quê? “É uma obra sem carteira de identidade. A
natureza de seu ser, enquanto obra literária, permanece indecifrada. É
impressionante verificar como sua realidade ontológica persiste incapturável
pela crítica literária”, admitiu o escritor Franklin de Oliveira, que fez a
si mesmo a pergunta até hoje ‘clássica’ : afinal, o que é Os sertões? É ficção, vaticinaram entre outros Tristão de Athayde e
Afrânio Coutinho, que escreveu: “Trata-se
de romance-poema-epopéia. Uma epopéia épica,narrativa heróica, da família de
Guerra e paz, e cujo antepassado mais ilustre é a Ilíada.” O professor
Leopoldo M. Bernucci , da Universidade do Colorado em Boulder,EUA, acredita que
em toda a história da literatura brasileira nenhum autor conseguiu estabelecer,
até agora, uma relação tão visceral com seus leitores como Euclides. “O sentimento do leitor é de assombro e
perplexidade. É detestado e adorado. Tem acertos e deslizes, mas não deixa
ninguém indiferente.” Entre os supostos deslizes literários, mostrando que
a posteridade não é um refúgio seguro nem para os grandes gênios, inclui-se o comentário de Joaquim Nabuco ao conferir
a Euclides a responsabilidade por um certo mau estilo das gerações que o
sucederam. Gerardo Mello Mourão,por sua vez, acha que o barroco euclidiano
degenerou “no rococó dos deslumbrados,
que produziu no Brasil uma literatura altissonante e suspeita, na qual se pode
inscrever a obra do próprio Guimarães Rosa”. Independentemente da sucesso de público e de
crítica, sua perpetuação, sustenta a antropóloga, pesquisadora e ensaísta
Regina Abreu, está relacionada a demandas sociais. Ao ser transformada em monumento,
símbolo nacional ou fenômeno cultural, uma grande obra literária extrapola suas
características iniciais, passando a desempenhar funções sociais que
ultrapassam seu valor essencialmente literário. “O coroamento de Os sertões teve o mesmo efeito de um tombamento__ como
ocorre com um bem arquitetônico”, ela explica; “ é como “semióforos”, dotados de um valor simbólico que ultrapassa
o valor de uso; considerados preciosidades, estão investidos de valor sagrado.
Tornam-se um culto”.
Na consagração de Os
sertões, menciona-se o aspecto “fundador” da obra. Em que consiste essa
fundação ? por inovar , por renovar, por revolucionar.... por tornar-se enfim um clássico, em meio
a elementos
histórico-político-sociológicos e literário-culturais específicos de um período
de fortes mudanças no país__ não apenas pela substituição da monarquia pela
república, que seria aliás interpretado como um dos motivadores da ‘rebelião
de Canudos’.
Euclides da Cunha nasceu e se criou na sociedade
brasileira da segunda metade do século XIX __ uma sociedade monárquica dominada
por grandes proprietários de terra e de escravos, em que vigorava o espírito da
“sociedade de corte”.Na seara literária,
era época da incipiência do naturalismo/realismo__ de um naturalismo com cunho
cientificista __ ascendente sobre o
romantismo(então representado sobretudo por Machado de Assis e José de
Alencar); tempo ainda da proliferação da temática do sertão e do interior, de
profusão de ‘escritores sertanejos’__ e nesse contexto, por força desse vetor, Os sertões encontrou ‘campo fértil’ de
aceitação e, face à sua qualidade excepcional,
de celebração definitiva.
Sobre
o episódio de Canudos outros autores escreveram, à época : Afonso Arinos, que já era conhecido
por focalizar o tema dos sertões e contar histórias de sertanejos, com Os jagunços _ novela sertaneja ; Manoel
Benício, com O rei dos jagunços; até
Artur Azevedo criou uma peça, “O jagunço” , encenada no Rio de Janeiro em 1897
; e Machado de Assis (ele mesmo), escreveu oito artigos entre 1894 e
1897(22/7/94;13/9/96;06/12/96;27/12/96;31/01.97;07/02/97;14/02/97;11/11/97) em
sua coluna “A Semana”, publicada no jornal Gazeta
de Notícias, do Rio de Janeiro .
Mas Euclides, diferentemente da maior parte desses
autores que escreveram sobre Canudos,
preferiu não editar suas anotações escritas no ‘calor da hora’ dos
acontecimentos, registradas no Diário de
campanha e nos esboços do livro que a princípio intitulara “Batalhas dos
soldados de São Paulo”, para amadurecê-las à base de seu arraigado cientificismo
e à luz de novas leituras de trabalhos científicos: o recolhimento em São José do Rio Preto
deu-lhe as condições necessárias a esse amadurecimento. Assim, “antecipou um comportamento que seria tônica
entre os cientistas sociais, inaugurando de certa forma o ‘trabalho de campo’
seguido da postura de distanciamento e de reflexão teórica sobre o material
recolhido”, segundo o crítico e ensaísta José Guilherme Merquior.
Por
outro viés, o momento de consagração de Os
sertões, no início do século XX, pode ser considerado o coroamento de uma
invenção que já vinha se processando há anos, ‘a invenção do sertão’. O sucesso
da obra de Euclides veio afirmar __ e
por ela foi ativada__ a positivação da temática sertaneja , do interior,
entranhada na cultura literária
brasileira. Os sertões, de resto, se
inserem numa tradição literária privilegiante do rural e incentivou,insuflou e
consolidou uma vertente que iria gerar o ciclo do romance regionalista da
década de 1930.
A literatura
sertaneja constituida na virada do século já era tradição consolidada. O sertão
era considerado o lugar da pureza e da autenticidade, o“lugar da nacionalidade
autêntica”. Antonio Candido, por exemplo, sentenciara que “o cânone da
literatura brasileira é rural, e não urbano” e já sinalizara nessa direção ao
constatar que “desde o início de nosso
romance ,[o regionalismo] constitui
uma das vias de autodefinição da consciência local, com José de Alencar,
Bernardo Guimarães, Franklin Távora, Taunay” . O ‘conto sertanejo’ tratava
o homem rural do ângulo pitoresco, sentimental e jocoso : “era a banalidade dessorada de Catulo da Paixão Cearense, a ingenuidade
de Cornelio Pires, o pretencioso exotismo de Waldomiro Silveira ou de Coelho
Neto de Sertão, é toda a aluvião sertaneja que desabou sobre o país entre 1900
e 1930” , observava
Candido, enfatizando que “a publicação de Os sertões contribuiu
certamente para esse movimento de valorização do interior”.
Só que
subvertendo toda uma visão “pitoresca, sentimental e jocosa’” do homem rural,
rejeitando toda ‘banalidade, pretencioso exotismo, ingenuidade’__ e mostrando o
sertanejo como “antes de tudo um forte... a rocha viva de nossa
nacionalidade”.(vale notar que essa visão ‘dicotômica’ do sertanejo, ora como um
ingênuo, frágil ora como um forte , veio na década de 1910 a permear a
interpretação de Monteiro Lobato com relação ao Jeca Tatu, desenhado sob três
perfis distintos ao longo de sua ‘trajetória literária’)
Euclides também se
distinguiu dos demais escritores da ‘voga sertaneja’ por vir apoiado em
discurso científico, novidade na época, que deu ao livro ‘autoridade’ superior
(ao mesmo tempo ‘legitimadora’ das demais obras sertanejas) e forneceu
condições para que idéias e conceitos emitidos apenas como impressão ou opinião
ganhassem estatuto de fatos ‘cientificamente’. O sertão tornou-se via
privilegiada para uma leitura do Brasil tanto do ponto de vista literário e
artístico quanto da tradição de estudos de etmografia e folclore : na esteira
dessa via vieram Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Guimarães Rosa , até
mesmo Glauber Rocha no cinema e Mestre Vitalino na arte popular artesanal.
A grande novidade foi justamente “o começo da análise
científica aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade brasileira”, o
que coloca Euclides no lugar de “pai
fundador da sociologia no Brasil”, pois segundo Antonio Candido “toda a onda [da voga sertaneja] vem quebrar em Os sertões, típico exemplo de
fusão, livro posto entre a literatura e a sociologia naturalista, que assinala
um fim e um começo: o fim do imperialismo literário, o começo da análise
científica aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade brasileira, no
caso as contradições contidas na diferença de cultura entre as regiões
litorâneas e o interior”.
É com Euclides da Cunha que se perfaz a revelação
intelectual e afetiva do sertão, do “Brasil oculto e verdadeiro”. Os sertões emblematiza ainda a
retratação do cientifismo de Euclides, de seu determinismo geográfico e racial,
emprestado do darwinismo social __ antes convencido da inferioridade das “raças
fracas”, mas rendido à descoberta de que ser o sertanejo ‘um forte, uma rocha viva’...Não poderia
deixar de ser, nem ser de outra forma : o contexto apontava para isso. O cientificismo de
Euclides __ de resto, comum a toda sua geração __ era emprestado do ‘darwinismo
social’(gerado pela publicação do livro A
origem das espécies, de Charles Darwin em 1859) , propugnante da tese de
superioridade de raça ,o conceito de raça ultrapassando o campo da biologia, se
estendendo à cultura e à política, desvirtuando ou ‘adaptando’ as teorias
darwinistas no que fosse mais
conveniente, utilizando o que combinava e descartando o que era problemático
para a construção de um argumento racial no país. A vertente cientificista
buscava encontrar as leis que organizavam a sociedade brasileira, que
determinavam a formação do gênio, do espírito e do caráter do povo ; recorrendo
à leis e métodos gerais, seria possível encontrar as especificidades da
evolução brasileira e, assim, deduzir seu rumo. Ao lado da influência de Comte,
o evolucionismo de Darwin e de Spencer
dispôs Euclides a aceitar, com excessiva confiança, as "leis"
sobre os caracteres morais das raças que tanto acabariam pesando na elaboração
de Os sertões.
O naturalismo/realismo era acima de tudo “uma extensão
literária da mentalidade cientificista em que o espírito positivista, ‘a
glorificação do fato’, dominava o cenário intelectual, eliminados os últimos
resquícios da educação humanística, dando livre curso à religião da ciência.
Repudiando em bloco o espiritualismo da fase romântica, a ‘geração de 1870’ adere em massa ao
empirismo materialista __ e Euclides é dessa geração; nela nasceu, nela viveu e
por ela foi formado __ daí ser o romance
realista uma “narrativa de tese”, uma narrativa que comprova o
encadeamento causal dos acontecimentos, exibindo sua dependência de fatores
biológicos ou ecológicos.
É preciso no entanto saber que por volta de 1894,
Euclides já entregara-se com fervor aos estudos brasileiros, passando da
geologia à botânica, da toponímia à etnologia: o acervo de conhecimentos que
então carreou formaria a base científica de Os
sertões. Foram anos de estudo intenso e variado :ao lado das ciências
naturais, da geografia e história brasileiras, Euclides embebia-se dos clássicos
portugueses cuja. sintaxe e vocabulário
deixariam não poucos sinais em Os
sertões.Foram também anos de interesse pelas ideologias renovadoras que já
encontravam eco em um Brasil
em fase inicial de industrialização. Sabe-se que Euclides se achegou ao grupo
socialista de São José do Rio Pardo, mas teria sido antes um observador
simpático do que um militante convicto: o que importa, porém, é a assimilação
de critérios progressistas na gênese de sua obra __ já denotado em Os sertões __ principalmente nos últimos escritos, dentre os quais é texto
exemplar o artigo "Um velho problema", de 1904, página candente de
“repúdio à exploração da classe operária”.
***
Euclides da Cunha, embora Os sertões fosse o seu primeiro livro, já havia atingido um alto
estágio de amadurecimento, revelando nessa obra um perfeito domínio da língua e
uma clara consciência da sua arte : o crítico
Wilson Martins, por exemplo, reconhece que todos os elementos que formam
o estilo euclidiano , e que em qualquer outro escritor” poderiam resultar em
desastre”, salvam-se graças ao “poder transfigurador do grande artista da
palavra que nele preexistia”. O crítico
e ensaísta Alfredo Bosi sustenta que pode-se ler a obra principal de Euclides
aproximando-a da prosa do seu tempo: naturalista no espírito, acadêmica no
estilo”.Bosi argumenta ainda que Euclides não se teria tornado um dos nomes
centrais da cultura brasileira pelo determinismo estreito das idéias nem pelo rebuscado
da linguagem : Euclides implementou “uma
consistência nova em nossas letras: o estatuto da contradição , expressa no
livro em forma de opostos inconciliáveis”. Contradição e jogo de opostos,
dicotomia tese/antítese que de resto constituem a essência mesma de toda a obra
euclidiana __ os ‘contrastes e confrontos’(que deram título, aliás, a uma
delas)
A questão de originalidade e autenticidade de Os sertões em última análise nada mais
seria do que reflexo da personalidade de Euclides. Se o estilo é natural e
original, “ele escreve o que vem de dentro, como sente”, nas palavras de José
Verissimo, diferencia-se do escritor guiado apenas por sua subjetividade, pois
examina a realidade exterior com as lentes da ciência, procurando o
distanciamento __ outra das características apontadas pelos críticos: o
ecletismo,o jogo de oposições, de tese e antítese( na melhor acepção da
filosofia‘hegeliana’),de ‘contrastes e confrontos’,
presente da primeira obra a todos os escritos posteriorede Euclides , em que
trata de “assuntos mais opostos, psicologia, socialismo, religião, política,
envoltos em problemas de história, pátria, imigração, povoamento, indústria,
engenharia”, como chamou a atenção Araripe Junior.
“Os sertões permanece atual, desafiando o tempo”,sustenta a ensaísta Walnice
Nogueira Galvão. “O papel de Euclides da
Cunha na construção da memória da Guerra de Canudos é fundador”, reitera; “Os
sertões narra a conversão de
Euclides, que foi para lá levar a civilização e o progresso e, quando viu,
estava levando o massacre dos pobres; o livro fez por uma insurreição popular o
que nenhum outro foi capaz de fazer, no país: alçou-a a tragédia paradigmática,
mediante o louvor à coragem do sertanejo”. E dessa maneira, sentencia
Walnice, “legou seu libelo à posteridade”.
José Guilherme Merquior
ressaltou “uma eletricidade
abertamente monumentalizante” nas páginas de Os sertões__ obra que para ele era antes de mais nada “uma retratação”, no caso uma dupla
retratação: retratação do republicano que condenara dogmaticamente, sem
procurar a princípio entender o fenômeno, o “obscurantismo reacionário dos
jagunços de Antônio Conselheiro”, e que em contato direto com a realidade, o
ambiente, o hinterland, foi levado a reconhecer “o heroismo anônimo das
populações seretanejas”.
Seriam contradições, sustentava Merquior, que por mais
que turvem a coerência da visão cientificista de Euclides, depõem em favor de
sua honestidade intelectual, enriquecem em especial a significação sociológica
e estética de sua saga sertaneja. O alcance épico da rebelião que ele pintou em
cores ‘poéticas e literárias’, fruto de sua própria transfiguração artística,
teria sido basicamente o que levou a crítica a comentar “o romance que pulsa
sob Os sertões” __ sob a bitola da
“linguagem rutilante, da ornamentação verbal”. Mas em Euclides há mais
esplendor verbal do que simples ‘ornamentação’, afirmou Merquior.
Para Merquior, “Os
sertões. é o clássico do ensaio de ciências humanas no Brasil”, numa época,
enfatiza, em que os estudos sociológicos ainda conservavam muitas afinidades
com a formação humanística. É exemplo notável de uma “intelectualização da
literatura”, num livro meio científico meio literário que abordou “alguns temas
atualissimos da pesquisa antropológica”: um deles, da mística do advento do
Reino de Deus por intermédio do messias Conselheiro __ e aqui surge o tema do
messianismo e do sebastianismo ( dos mais polêmicos : no que tange ao caso de
Canudos, guarde-se as devidas cautelas
acerca das peculiaridades e acepções que “a mais famosa, dramática e peculiar
manifestação messiânica brasileira , simbolizada pela figura de Antônio
Conselheiro , afirmando ou negando o índice messiânico daquela comunidade);
outro, “o fato de Euclides da Cunha ter
sentido muito lucidamente o problema da definição sociológica de certas formas
de anormalidade mental”, escreveu Merquior. Ao reconhecer o entrosamento dos aspectos irracionais da personalidade do
‘profeta de Canudos’ com as aspirações e carências de uma comunidade rústica,
sufocada por flagelos naturais e indiferença das camadas dominantes, Euclides
“intuiu brilhantemente a natureza psicossocial da noção de loucura, dessa ‘zona
mental onde se acotovelam gênios e degenerados’; sobre Antônio Conselheiro,
cujo delírio místico traduzia o desespero de uma sociedade, Euclides afirmou
que ‘foi para a História como poderia ter ido para o hospício’. Vale dizer, “o
positivista Euclides suspeitava da existência de uma ‘sociologia do psiquismo’,
do mesmo modo que o darwinista social constatara a força titânica das ‘raças
inferiores’. Fulgurante pela transbordante energia poética de seu estilo
narrativo, Os sertões sobrevive ad eternum também por seus inovadores
vislumbres sociológicos __ inéditos e ‘revolucionários’ para a época,
absolutamente válidos e instigantes hoje”, sublinhou Merquior.
Berthold
Zilly, professor no Instituto Latino-americano da Freie Universität Berlin e o
tradutor alemão de Os sertões , registra: “Euclides
da Cunha chamou a atenção para os excluídos em obra fundadora da nacionalidade”.
E observa que “o escritor é mais
clarividente do que o pensador. O ideólogo republicano e cientificista Euclides
da Cunha cada vez mais cede lugar ao patriota e homem cheio de empatia e de
compaixão do mesmo nome, que se considera ´narrador sincero´, representando a
realidade através de um ´consórcio’ da ciência e da arte”.Zilly destaca que
entre as suas visões inovadoras merece destaque a valorização da mestiçagem
como processo fundamental para a formação da sociedade sertaneja e brasileira.
“Na história do pensamento social do país, Euclides, com sua elevação do
sertanejo a herói nacional, constitui importante elo de ligação entre o
viajante alemão Martius , que no seu tratado ‘Como se deve escrever a história
do Brasil’, publicado em 1844, reinterpretou a mestiçagem como processo
necessário e positivo para a constituição do Brasil como nação , e o sociólogo
Gilberto Freyre, com seu ensaio clássico Casa-Grande
e senzala” . A glória e a atualidade de Os
sertões , registra Zilly, nem tanto se devem às informações e às reflexões
sobre a guerra e o sertão, que se encontram em numerosos outros escritos da
época, mas principalmente “à sua arte
encenatória, sugestiva e plástica, à sua força imagética, à sua prosa altamente
retórica e poética, entre sarcástica e sublime, à sua teatralização do meio,
dos eventos e dos personagens; o caráter sagrado do sertão, na visão dos
canudenses, passa para a obra, o assunto santifica o texto. Raramente na
história da literatura a identificação entre uma realidade e a sua representação
é tão intensa quanto em Os sertões”.Segundo Zilly, é isso que explicaria o
extraordinário êxito junto ao público letrado, à opinião pública, aos críticos
literários e aos próprios historiadores,
“ justamente, o caráter abrangente da obra, que pode ser encarada como
summa, e ainda sua indefinição, ou
melhor, a multiplicidade de gêneros literários que condensa, sua capacidade de
congregar as mais variadas informações, atitudes, formas de enunciação —
relatos, poemas, pichações de paredes, artigos e livros sobre a guerra —
incorporando, portanto, vários tipos de texto: crônica, lenda, depoimento,
diário, tratado geográfico, etnográfico e historiográfico, formas populares
simples e ainda romance, ensaio, discurso forense e político, oração fúnebre, tudo
amalgamado num estilo relativamente coeso, próprio, inconfundível”.
Enfatiza que o livro reúne as três
formas básicas da literatura — a epopéia, o drama e a lírica — “um
livro-síntese de temas, pontos de vista, métodos de pesquisa e ideologias,
quase uma enciclopédia do sertão, que ‘digere’ todo tipo de texto anterior
sobre o assunto, obra polissêmica, por isso mesmo sugestiva, instigadora da
imaginação do leitor, radicaliza suas contradições, exacerba os paradoxos. Os sertões são muitos livros em um só”
Por outro lado, um certo viés de reticência oferece
o ensaísta Roberto Ventura . Em texto ainda inédito, ressalta que “Os sertões é obra híbrida que transita entre a literatura,
a história e a ciência, ao unir a perspectiva científica, de base naturalista e
evolucionista, à construção literária, marcada pelo fatalismo trágico e por uma
visão romântica da natureza. Euclides da Cunha recorreu a formas de ficção,
como a tragédia e a epopéia, para estilizar a guerra de Canudos e inserir os
fatos em um enredo capaz de ultrapassar a sua significação particular”, mas
defendia a tese de que “Euclides
interpretou a Guerra de Canudos a partir de fontes orais, como os poemas
populares e as profecias religiosas encontrados em papéis e cadernos nas ruínas
da comunidade. Baseou-se em profecias apocalípticas, que julgou serem da
autoria de Antônio Conselheiro, para criar, em Os sertões, um retrato sombrio
do líder da comunidade”.
Segundo Ventura, os sermões de Antônio Conselheiro,
recolhidos em dois volumes manuscritos a que Euclides não teve acesso (as
prédicas e discursos de Conselheiro
constam de um caderno manuscrito encontrado em Canudos, após o fim da luta, por
João de Sousa Pondé, médico que participou da campanha como cirurgião da última
e vencedora expedição militar ;o
escritor baiano Afrânio Peixoto , por sua vez, passou-os a Euclides da Cunha,
quando Os sertões já estavam
publicados. Euclides morreu poucos meses depois e não se sabe se teve tempo de
folhear os manuscritos do Conselheiro) mostram um líder religioso muito
diferente do fanático místico ou do profeta milenarista : revelam um sertanejo
letrado, capaz de exprimir, de forma articulada, suas concepções políticas e
religiosas, que se vinculavam a um catolicismo tradicional, corrente na Igreja
do século XIX.
Ventura
aponta que a leitura dos textos de Antônio Conselheiro traz uma surpresa
instigadora: têm um nível considerável de organização, com uma distribuição e
uma seqüência lógica dos assuntos; são gramaticalmente bem estruturados e seu conteúdo religioso, longe de qualquer
aberração, é equilibrado e bastante próximo do texto bíblico.No discurso
"Sobre a República" ,por exemplo, estão expostas as idéias de Antônio
Conselheiro em que “se pode observar um conteúdo mais político, embora sempre
determinado pela religião. A premissa fundamental do texto é a de que a
República deseja acabar com a religião e por isso é nociva ao povo sertanejo; a
República é criticada como ‘assunto que tem sido o assombro e o abalo dos
fiéis’. Vista como grande mal para o Brasil, sua implantação é debitada à
‘incredulidade do homem’. Na ótica do Conselheiro, a deposição do monarca
contrariava a vontade divina, pois ‘todo poder legítimo é emanação da
Onipotência eterna de Deus’. “Tratava-se, portanto, de uma questão de princípio
sustentada por um dogma religioso que fundamentava sua posição contrária ao
regime republicano. Para ele, combater a República era defender a religião”,
escreveu Ventura.
Dessa forma, a visão de Euclides acerca de Canudos
torna-se complexa e problemática. Segundo o ensaísta, o discurso de Euclides da Cunha é ambíguo,”
marcado por um torneio retórico de antíteses, em que Antônio Conselheiro ,
seus seguidores e Canudos emergem da análise num jogo de contradições, ora
positivados e admirados, ora negativados e execrados. Isso mostra o impasse de
Euclides diante da realidade observada, diante da dimensão humana do conflito e
diante das limitações do seu método de análise. Todavia, pode-se considerar que
o seu distanciamento cultural se mantém em todo o percurso do livro”. Todavia,
ressalvou Ventura, “Euclides fixa a consciência de que os canudenses não
representavam uma ameaça real à instituição republicana, pois não constituíam
um movimento político organizado na tentativa de restaurar objetivamente a
Monarquia, e assim procura mostrar que as idéias contrárias à República eram
resultantes do atraso civilizatório, do estado de ‘ignorância’ em que se
encontrava a população sertaneja. Sob essa ótica, a luta necessária não seria
feita através da força militar e dos canhões, mas sim da educação, das letras, das luzes, no
processo de introdução dos sertanejos ao progresso, incorporando-os à
nacionalidade”. E Roberto Ventura concluía
:”Esta constatação abre o caminho para a autocrítica e para a revisão de idéias
anteriores, como a de que Canudos era ‘A nossa Vendéia’. A partir disso,
Euclides interpreta a intervenção militar como um erro histórico, como um
‘crime da nacionalidade’ contra patrícios, de que seu livro se oferece como
denúncia e libelo.” Em sua interpretação , Euclides foi além da narração da
guerra, ao construir uma teoria do Brasil cuja história seria movida pelo
choque de etnias e culturas, e lançou seu brado de alerta: ‘estamos condenados
à civilização. Ou progredimos, ou desaparecemos.’
Desse modo, independentemente da perda de sua vitalidade
conceitual, a permanência e a atualidade de Os
sertões se devem à veemência de sua denúncia, à sua pertinência histórica e
à sua excelência literária, o que o sustenta como um marco fundamental da cultura
brasileira. Por todas suas implicações, significações, interpretações e
nuances, um livro enfim que veio afirmar
novos valores e novos temas de literatura e ciência, obra com a rara qualidade
de possibilitar aproximação plural e múltiplas leituras __ entre elas uma
reinterpretação do Brasil, renovado com a descoberta dos sertões.
Os sertões
recebem, de Gilberto Freyre, uma interpretação que sublinham seu caráter
‘fundador e canônico’. O autor de Casa
grande & senzala apontava “a eternidade e incolumidade” da obra diante
de um movimento cada vez mais radical de mudança de eixo para interpretação dos
fenômenos sociais: o conceito de raça, pelos idos de 1940, como explicativo
para o social, estava sendo derrubado, e as ciências sociais proclamavam sua
autonomia frente às ciências da natureza. “Como
então Os sertões, que tinha em grande medida como quadro conceitual as ciências
da natureza, mantinha-se [e mantém-se]
atual, glorificado em edições e mais edições, traduções ? Como resistiu ao movimento de releitura da
raça como fator de inferioridade, explicativo da sua gênese ?”, indaga
Freyre, para ele mesmo responder : “porque
Euclides da Cunha, ainda que resvale no
pessimismo dos descrentes da capacidade dos povos de meio-sangue para se
afirmarem em sociedades equilibradas e organizações sólidas, uma descrença
lastreada no fatalismo da raça, no determinismo biológico,ao tentar compreender
a psicologia do sertanejo, fez um ensaio revelador sobre a formação do homem
brasileiro. Desmistificou o pensamento vigente entre as elites do período, de
que somente os brancos de origem européia eram legítimos representantes da
nação. Mostrou que não existe no país raça branca pura, mas uma infinidade de
combinações multirraciais. Previu um destino trágico para o Brasil, se o país
continuasse a não levar em conta as diversas raças que o formaram. Mostrou que
o Brasil tinha contradições e diferenças étnicas e culturais extremas. Concluiu
que havia uma necessidade imperiosa de se inventar uma raça. Caso contrário, o
Brasil seria candidato a desaparecer”.
Apesar de imerso num contexto intelectual e sociológico
onde predominava o determinismo biológico, Euclides teve, no entender de
Freyre, a lucidez de perceber que “o
movimento do Conselheiro foi principalmente um choque violento de culturas: a
do litoral modernizado, urbanizado, europeizado, com a arcaica, pastoril e
parada dos sertões. E esse sentido social e amplamente cultural do drama, ele
percebeu-o lucidamente, embora os preconceitos cientificistas, principalmente o
da raça, lhe tivessem perturbado a análise e interpretação de alguns dos fatos
de formação do Brasil que seus olhos agudos souberam enxergar, ao procurarem as
raízes de Canudos". Ao tecer o perfil de Euclides da Cunha como
escritor além de seu tempo, intuindo o primado do fator cultural no estudo das
sociedades num ambiente intelectual, sociológico e antropológico em que
predominava a noção de raça como elemento explicativo do social, Gilberto
Freyre propõe nova atualidade para o autor de Os sertões.
A atualidade e modernidade de Os sertões __ mais: sua ‘eternidade’ __ está em ser entendido como
verdadeiro fenômeno cultural, inserido no cenário de constituição e
transformação do pensamento social sobre o Brasil. “Euclides da Cunha é o
intelectual brasileiro que mais se interessou em conhecer mesmo o Brasil por dentro”, vaticina o crítico e ensaísta
Luiz Costa Lima. ”Os sertões deixou
um retrato, um cenário que não pode nunca ser esquecido”, completa .
Costa Lima sustenta ser “Os sertões obra de estranhamento e paradoxos” , e especula : “pode
uma obra ser ao mesmo tempo ficcional e não-ficcional? pode , na medida em que
recicla e faz repensar o papel desempenhado pelo discurso científico e pelo
discurso literário”. Lima argumenta que Euclides constrói na verdade ”uma dupla
inscrição, uma estrutura narrativa que supõe o ajuste de um centro tematizado
com bordas e molduras”. Nisso residiria exatamente o ‘estranhamento’ ,
porquanto “o texto se desgarra do centro férreo __ ‘cientificista’__ e se
mostra sob a forma de ‘ilhas’, nas bordas em que uma espécie de
representatividade teatral vence a intencionalidade autoral”. O que , no
entender de Lima, entre muitos outros
aspectos torna a obra absolutamente genial.
Euclides
da Cunha mostra-se sempre um intelectual preocupado em "pensar" o
Brasil dentro de um momento histórico
e complexo processo de formação de uma sociedade que
fosse capaz de integrar os diversos grupos humanos (litoral e sertão) na
definição da identidade nacional. Com toda justiça passou a ser reverenciado
como o primeiro autor a escrever um ‘clássico’ no Brasil, uma obra de peso,
científica, densa, consistente, vigorosa, que até então só podia ser encontrada
em autores e livros estrangeiros. E ter um ‘clássico nacional’ adquiria valor
especial : igualava-nos às nações civilizadas do mundo moderno da época.
A criação de Os
sertões faz parte do rol dos ‘grandes momentos’ da história do Brasil, e
não é por acaso que tenha atravessado um século como obra mater, ‘bíblia da nacionalidade’
e seja fadado à posteridade.
***
No lastro da
posteridade, porque Os sertões,
simbiose entre jornalismo,literatura,história, ensaismo, ciência, geografia,
sociologia, antropologia, geologia, é obra
de múltiplos atributos primordiais: factualidade, perenidade,
atualidade.
* Factualidade, por ser antes de tudo de uma obra
jornalística (mas tão grandiosa que abriga outras características), livro de um
jornalista, “o maior feito jornalístico das letras brasileiras ou o maior feito
literário do jornalismo brasileiro”, ao retratar um dos episódios mais
marcantes da história republicana, registrar o conflito “elite x povo”, “sertão
x litoral”, “monarquia x república”, e sobretudo expor condições e situações
sociais e culturais de contingentes populacionais, obra que é “uma epifania de brasilidade, uma
fala do Brasil”.
* Perenidade,
em sendo um cânone literário, por constituir-se uma das obras fundadoras da
nacionalidade, “a mais representativa da cultura brasileira de todas as
épocas”, capaz de expressar importantes dilemas nacionais que extrapolam a
própria narrativa da tragédia de Canudos; obra incluída entre os textos
fundadores, fontes da historiografia
literária : Euclides, ao lado de Manuel Bonfim e Gilberto Freyre, como um dos
pioneiros grandes intérpretes do Brasil ; um dos textos básicos de “história e
construção do pensamento brasileiro” , um acervo formado por obras de Gonçalves
de Magalhães, Francisco Varnhagen, Marquês de Maricá, Joaquim Norberto de Souza
e Silva , José do Patrocínio. Perenidade, ainda, por ser inovadora de uma
literatura-denúncia;
* Atualidade por “chamar a atenção para os excluídos”,
denunciar uma questão social, expor mazelas e injustiças, a miséria, a fome,
registrar “tendências conflituosas da sociedade brasileira”, enfocar “um Brasil
injusto e dividido”, anotar a religiosidade, a crendice, o misticismo e o messianismo __ algo sempre latente no cenário
político brasileiro (a eterna expectativa pelo ‘pai da Pátria’, pelo ‘salvador
da Pátria’).
Sobretudo,
a atualidade da obra deve-se à
inquietação que seu caráter de denúncia
provoca, um livro que oferece a oportunidade de ,a partir de Canudos,
ter uma visão clara de questões de origens sociais.
Os sertões diz muito de um drama da
história brasileira, e também de dramas dos tempos atuais.
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