sábado, 22 de dezembro de 2012
Natal: 2 contos e um soneto
Conto de Natal
Arthur Azevedo
I
Das janelas da sala de jantar dos
barões de Santa Bárbara, nas Laranjeiras, vi-se o interior da miserável casinha
onde morava o Alexandre, pobre –diabo desempregado e enfermo, vivendo de
expedientes confessáveis,carregando a vida com um esforço quase sobre-humano.
Fosse ele sozinho e tudo iria
pelo melhor ; mas era casado, e lhe nascera um filhinho nas proximidades
daquele Natal de 1871. Vir ao mundo uma criança, pelo Natal numa casa sem pão
nem conforto, é uma dessas ironias da sorte, que só se tolerara à força de
filosofia. O Alexandre era filósofo.
Os barões de Santa Bárbara, que
possuíam grandes cabedais,desejavam ter filhos e não os tinham. É sempre assim.
A baronesa, das janelas da sala de jantar, olhava com inveja para a mulher do
Alexandre. A mulher do Alexandre era pobre,paupérrima, quase indigente, mas
tinha o prazer e o orgulho de amamentar um filho !
Na véspera daquele Natal de 1871,
os barões de Santa Bárbara,enquanto esperavam o almoço, debruçaram-se à janela
e viram no interior de um quarto, na casinha do Alexandre, o recém-nascido
deitado numa caixa de batatas, envolvido em trapos.
O barão , que não era insensível
às misérias do próximo, encheu-se de piedade,tanto mais que, pela coincidência
do dia em que o acaso lhe deparava tão lastimoso espetáculo, parecia-lhe o
próprio Menino Jesus que ali estava deitado naqueles trapos, mas um Menino
Jesus desprezado pelos Reis Magos e pastores, um Menino Jesus com
alfazema,talvez, mas sem incenso nem mirra.
Sabia o barão que a baronesa era
muito egoísta : não gostava de praticar o bem nem mesmo por ostentação ; foi,
por isso, com certo receio que lhe propôs enviarem algum socorro aos vizinhos
pobres ; quanto mais não fosse, umas roupinhas para o bebê.
- Estás doido ! respondeu ela.
Nunca mais nos largariam a porta !
- Mas não era preciso que
soubessem de onde partia o benefício ; a nossa esmola seria anônima ...
- Qual ! deixa-te dessas idéias !
Eles precisam, é certo, mas há quem precise ainda mais e não seria justo
socorrer somente a estes ,quando não podemos acudir aos outros ! Por que esse
exclusivismo ? E depois, tu sabes lá que espécie de gente é essa ? Tu sabes se
empregaríamos bem a nossa caridade ? Deixa-te dessas idéias, homem de Deus, e vamos
almoçar, que a maionese está na mesa.
Comeram ambos o almoço triste dos
esposos que pensam diversamente um do outro, sem filhos que atenuem o que possa
ter de inconveniente e dolorosa a divergência de sentimentos e impressões.
Inteligente e sensato, o barão
não contrariava a baronesa,embora no íntimo lhe detestasse o caráter, e não
perdoasse tanto egoísmo numa criatura que lhe trouxera, quando se casou com
ele, apenas a roupa do corpo e o próprio corpo. Fazia-lhe todas as vontades.
Foi assim que comprara aquele
título ridículo de barão de Santa Bárbara, nome da fazenda onde ele nascera, e
era propriedade sua, na Província do Rio.
Todos o tinham em conta de um
marido dominado pela mulher, quando o que o dominava era apenas o desejo de
viver com ela em aparente harmonia, sem dar aos criados nem aos vizinhos,nem a
si mesmo o espetáculo mofino de um casal desunido.
O barão saiu logo depois do
almoço e foi a carro para o seu escritório da rua de São Bento.
Como a lembrança do pobre
pequenino ,deitado no caixão de batatas, o perseguisse com a insistência de um
remorso, ele chamou em particular um empregado de confiança, incumbiu-o de
comprar um berço, um enxoval completo de recém-nascido, peças de morim e de
chita, latas de leite condensado, vidros de geléia, garrafas de vinho do Porto,
etc, e mandar tudo, e mais algum dinheiro,à casa do Alexandre, sem que ninguém
soubesse nem suspeitasse a proveniência desse presente.
O empregado cumpriu
irrepreensivelmente as ordens do patrão, e foi com uma surpresa, manifestada
por frases impertinentes, que a baronesa viu, à tardinha, o caixão de batatas
substituído por um berço de vime e os andrajos por boa roupa.
- Vês ? disse ela ao barão.
Faríamos asneira se lhes mandássemos alguma coisa: não lhes falta nada !
Pouco tempo depois, a família do
Alexandre mudou de residência, e os barões de Santa Bárbara nunca mais tiveram
notícia dela.
II
Passaram-se muitos anos ,que
correram prósperos para o barão, grande plantador de café ; mas a lei de 13 de
Maio surpreendeu-o, como a tantos outros agricultores imprevidentes, e a sua
fortuna sofreu grandes reveses.
Depois de proclamada a República,
ele atirou-se às especulações da Bolsa ; ficou milionário durante a nevrose do
Encilhamento, e não adivinhou a catástrofe. Quando esta veio, encontrou os seus
milhões representados em ações de bancos e companhias que não valiam mais nada,
e cuja liquidação foi a ruína completa. Nada,absolutamente nada lhe deixaram
!...
Nesse doloroso transe, o infeliz
titular não ouviu da esposa uma única palavra de consolação ou de esperança que
o animasse ; pelo contrário : a baronesa desfazia-se em exprobações e
invetivas, e isto concorreu, naturalmente, para desesperá-lo.
O mísero tinha resolvido
suicidar-se, quando uma congestão pulmonar o livrou de cometer esse pecado.
Morto o barão, a baronesa,
sexagenária e enferma, ficou reduzida à miséria. Os amigos e parentes do marido
tinham já se evaporado há muito tempo, e nenhum simpatizava com ela.
A desgraçada ia ser posta na rua
por um senhorio implacável, e, para não morrer de fome, estava resolvida a
pedir que a mandassem para um asilo, quando foi procurada por um belo rapaz de
vinte e cinco anos,pouco mais ou menos, que lhe disse :
- Sra. baronesa, conheço v.ex.,
estou ao corrente de todas as desgraças que lhe sucederam, venho pedir-lhe que
aceite um lugar em nossa casa.
- Mas quem é o senhor ?
- Sou aquela criança que, na
véspera do Natal, em 1871, nas Laranjeiras, dormia num caixão de batatas, e a
quem v. ex. socorreu,mandando-lhe um berço,roupinhas e leite. Bem vê v.ex. que
não faço mais do que pagar uma dívida de gratidão.
- Mas não me lembro... não fui eu
que...
- O empregado que se encarregou
de fazer com que essa delicada esmola chegasse ao seu destino, não foi tão
discreto como lhe recomendaram. Ele disse a meu pai,confidencialmente, que a
esmola era do falecido sr.barão, mas minha mãe acudiu logo : - Não ! a
lembrança é da baronesa ! Só as mulheres são capazes destes melindres do
coração !
A baronesa não confirmou nem
desmentiu.
- Há vinte e cinco anos, continuou
o rapaz, o nome de v. ex. é repetido naquela casa como o de uma santa ! Venha,
sra. baronesa ! Meu paí é morto, mas eu ganho o suficiente para sustentar duas
mães...
Uma hora depois, a baronesa de
Santa Bárbara estava muito bem alojada na casa dos seus protetores.
___________
Soneto de Natal
Machado de Assis
Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,
Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.
Escolheu o soneto... A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca.
A pena não acode ao gesto seu.
E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"
_______________
Milagre do Natal
Lima Barreto
O bairro do Andaraí é muito
triste e muito úmido. As montanhas que enfeitam a nossa cidade, aí tomam maior
altura e ainda conservam a densa vegetação que as devia adornar com mais força
em tempos idos. O tom plúmbeo das árvores como que enegrece o horizonte e torna
triste o arrabalde.
Nas vertentes dessas mesmas
montanhas, quando dão para o mar, este quebra a monotonia
do quadro e o sol se espadana
mais livremente, obtendo as cousas humanas, minúsculas e mesquinhas, uma
garridice e uma alegria que não estão nelas, mas que sê percebem nelas. As
tacanhas casas de Botafogo se nos afigura assim; as bombásticas
"vilas" de Copacabana, também; mas, no Andaraí, tudo fica esmagado
pela alta montanha e sua sombria vegetação.
Era numa rua desse bairro que
morava Feliciano Campossolo Nunes, chefe de secção do Tesouro Nacional, ou
antes e melhor: subdiretor. A casa era própria e tinha na cimalha este dístico
pretensioso: "Vila Sebastiana". O gosto da fachada, as proporções da
casa não precisam ser descritas: todos conhecem um e as outras. Na frente,
havia um jardinzinho que se estendia para a esquerda, oitenta centímetros a um
metro, além da fachada. Era o vão que correspondia à varanda lateral, quase a
correr todo o prédio.
Campossolo era um homem grave,
ventrudo, calvo, de mãos polpudas e dedos curtos. Não largava a pasta de
marroquim em que trazia para a casa os papéis da repartição com o fito de não
lê -los; e também o guarda-chuva de castão de ouro e forro de seda.Pesado e de
pernas curtas, era com grande dificuldade que ele vencia os dois degraus dos
"Minas Gerais" da Light, atrapalhado com semelhantes cangalhas: a
pasta e o guarda chuva de " ouro".
Usava chapéu de coco e
cavanhaque.
Morava ali com sua mulher mais a
filha solteira e única, a Mariazinha.A mulher, Dona Sebastiana, que batizara a
vila e com cujo dinheiro a fizeram, era mais alta do que ele e não tinha nenhum
relevo de fisionomia, senão um artificial, um aposto. Consistia num pequeno
pince-nez de aros de ouro, preso, por detrás da orelha, com trancelim de seda.
Não nascera
com ele, mas era como se tivesse
nascido, pois jamais alguém havia visto Dona Sebastiana sem aquele adendo,
acavalado no nariz. fosse de dia, fosse de noite. Ela, quando queria olhar
alguém ou alguma cousa com jeito e perfeição, erguia bem a cabeça e toda Dona
Sebastiana tomava um entono de magistrado severo.
Era baiana, como o marido, e a
Única queixa que tinha do Rio cifrava-se em não haver aqui
bons temperos para as moquecas, carurus
e outras comidas da Bahia, que ela sabia preparar com perfeição, auxiliada pela
preta Inácia, que, com eles. viera do Salvador, quando o marido foi transferido
para São Sebastião. Se se oferecia portador, mandava-os buscar; e. quando, aqui
chegavam e ela preparava uma boa moqueca, esquecia -se de tudo, até que estará
muito longe da sua querida cidade de Tomé de Sousa.
Sua filha, a Mariazinha, não era
assim e até se esquecera que por lá nascera: cariocara-se inteiramente. Era uma
moça de vinte anos, fina de talhe, poucas carnes, mais alta que o pai,
entestando com a mãe, bonita e
vulgar. O seu traço de beleza eram os seus olhos de topázio com estilhas
negras. Nela, não havia nem invento, nem novidade como - as outras.
Eram estes os habitantes da
"Vila Sebastiana" , além de um molecote que nunca era o mesmo. De
dous em dous meses, por isso ou por aquilo, era substituído por outro, mais
claro ou mais escuro, conforme a sorte calhava.
Em certos domingos, o Senhor
Campossolo convidava alguns dos seus subordinados a irem almoçar ou jantar com
eles. Não era um qualquer. Ele os escolhia com acerto e sabedoria. Tinha uma
filha solteira e não podia pôr dentro de casa um qualquer, mesmo que fosse
empregado de fazenda. Aos que mais constantemente convidava, eram os terceiros
escriturários Fortunato Guaicuru e Simplício Fontes, os seus braços direitos na
secção. Aquele era bacharel em Direito e espécie de seu secretário e consultor
em assuntos difíceis; e o último chefe do protocolo da sua secção, cargo de
extrema responsabilidade, para que não houvesse extravio de processos e se
acoimasse a sua subdiretoria de relaxada e desidiosa. Eram eles dous os seus
mais constantes comensais, nos seus bons domingos de efusões familiares.
Demais, ele tinha uma filha a casar e era bom que...
Os senhores devem ter verificado
que os pais sempre procuram casar as filhas na classe que
pertencem: os negociantes com
negociantes ou caixeiros; os militares com outros militares; os médicos com
outros médicos e assim por diante. Não é de estranhar, portanto, que o chefe
Campossolo quisesse casar sua filha com um funcionário público que fosse da sua
repartição e até da sua própria secção.
Guaicuru era de Mato Grosso.
Tinha um tipo acentuadamente índio. Malares salientes, face
curta, mento largo e duro,
bigodes de cerdas de javali, testa fugidia e as pernas um tanto arqueadas.
Nomeado para a alfândega de Corumbá, transferira-se para a delegacia fiscal de
Goiás. Aí, passou três ou quatro anos, formando-se, na respectiva faculdade de
Direito, porque não há cidade do Brasil, capital ou não, em que não haja uma.
Obtido o título, passou-se para a Casa da Moeda e,desta repartição, para o
Tesouro. Nunca se esquecia de trazer o anel de rubi, à mostra. Era um rapaz
forte, de ombros largos e direitos; ao contrário de Simplício que era franzino,
peito pouco saliente, pálido, com uns doces e grandes olhos negros e de uma
timidez de donzela.Era carioca e obtivera o seu lugar direitinho, quase sem
pistolão e sem nenhuma intromissão de políticos na sua nomeação.
Mais ilustrado, não direi; mas
muito mais instruído que Guaicuru, a audácia deste o superava, não no coração
de Mariazinha, mas no interesse que tinha a mãe desta no casamento da filha. Na
mesa, todas as atenções tinha Dona Sebastiana pelo hipotético bacharel:
- Porque não advoga? perguntou
Dona Sebastiana, rindo, com seu quádruplo olhar altaneiro, da filha ao caboclo
que, na sua frente e a seu mando, se sentavam juntos.
- Minha senhora, não tenho
tempo...
- Como não tem tempo? O
Felicianinho consentiria - não é Felicianinho? Campossolo fazia solenemente :
- Como não, estou sempre disposto
a auxiliar a progressividade dos colegas.
Simplício, à esquerda de Dona
Sebastiana, olhava distraído para a fruteira e nada dizia. Guaicuru, que não
queria dizer que a verdadeira . razão estava em não ser a tal faculdade
"reconhecida", negaceava:
- Os colegas podiam reclamar.
Dona Sebastiana acudia com
vivacidade :
- Qual o que . O senhor
reclamava, Senhor Simplício?
Ao ouvir o seu nome, o pobre
rapaz tirava os olhos da fruteira e perguntava com espanto:
- O que, Dona Sebastiana ?
- O senhor reclamaria se
Felicianinho consentisse que o Guaicuru saísse, para ir advogar?
- Não.
E voltava a olhar a fruteira,
encontrando-se rapidamente com os olhos de topázio de Mariazinha. Campossolo
continuava a comer e Dona Sebastiana insistia:
- Eu, se fosse o senhor ia
advogar.
- Não posso. Não é só a
repartição que me toma o tempo. Trabalho em um livro de grandes proporções.
Todos se espantaram. Mariazinha
olhou Guaicuru; Dona Sebastiana levantou mais a cabeça
com pince-nez e tudo; Simplício
que, agora, contemplava esse quadro célebre nas salas burguesas,representando
uma ave, dependurada pelas pernas e faz pendant com a ceia do Senhor -
Simplício,dizia, cravou resolutamente o olhar sobre o colega, e Campossolo
perguntou:
- Sobre o que trata?
- Direito administrativo
brasileiro.
Campossolo observou:
- Deve ser uma obra de peso.
- Espero.
Simplício continuava espantado,
quase estúpido a olhar Guaicuru. Percebendo isto, o matogrossense apressou-se:
- Você vai ver o plano. Quer
ouvi-lo ?
Todos, menos Mariazinha,
responderam, quase a um tempo só:
- Quero.
O bacharel de Goiás endireitou o
busto curto na cadeira e começou:
- Vou entroncar o nosso Direito
administrativo no antigo Direito administrativo português.
Há muita gente que pensa que no
antigo regime não havia um Direito administrativo. Havia. Vou estudar o
mecanismo do Estado nessa época, no que toca a Portugal. V ou ver as funções
dos ministros e dos seus subordinados, por intermédio de letra-morta dos
alvarás, portarias, cartas régias e mostrarei então como a engrenagem do Estado
funcionava; depois, verei como esse curioso Direito público se transformou, ao
influxo de concepções liberais; e, como ele transportado para aqui com Dom João
VI, se adaptou ao nosso meio, modificando-se aqui ainda, sob o influxo das
idéias da Revolução.
Simplício, ouvindo-o falar assim
dizia com os seus botões: "Quem teria ensinado isto a ele?"
Guaicuru, porém, continuava:
- Não será uma seca enumeração de
datas e de transcrição de alvarás, portarias, etc. Será uma cousa inédita. Será
coisa viva.
Por aí, parou e Campossolo com
toda a gravidade disse:
- V ai ser uma obra de peso.
- Já tenho editor!
- Quem é? perguntou o Simplício.
- É o Jacinto. Você sabe que vou
lá todo o dia, procurar livros a respeito.
- Sei; é a livraria dos
advogados, disse Simplício sem querer sorrir.
- Quando pretende publicar a sua
obra, doutor? perguntou Dona Sebastiana.
- Queria publicar antes do Natal.
porque as promoções serão feitas antes do Natal, mas...
- Então há mesmo promoções antes
do Natal, Felicianinho ?
O marido respondeu:
- Creio que sim. O gabinete já
pediu as propostas e eu já dei as minhas ao diretor.
- Devias ter-me dito, ralhou-lhe
a mulher.
- Essas coisas não se dizem às nossas
mulheres; são segredos de Estado, sentenciou Campossolo.
O jantar foi. acabando triste,
com essa história de promoções para o Natal.
Dona Sebastiana quis ainda animar
a conversa, dirigindo-se ao marido:
- Não queria que me dissesses os
nomes, mas pode acontecer que seja o promovido o doutor Fortunato ou... O
"Seu" Simplício, e eu estaria prevenida para a uma
"festinha".Foi pior. A tristeza tornou-se mais densa e quase calados
tomaram café.Levantaram-se todos com o semblante anuviado, exceto a boa Mariazinha,
que procurava dar corda à conversa. Na sala de visitas, Simplício ainda pôde
olhar mais duas vezes furtivamente os olhos topazinos de Mariazinha, que tinha
um sossegado sorriso a banhar-lhe a face toda; e se foi.
O colega Fortunato ficou, mas
tudo estava tão morno e triste que, em breve, se foi também
Guaicuru.
No bonde, Simplício pensava
unicamente em duas coisas: no Natal próximo e no "Direito"
de Guaicuru. Quando pensava nesta
.' perguntava de si para si: "Quem lhe ensinou aquilo tudo?
Guaicuru é absolutamente
ignorante" Quando pensava naquilo, implorava: "Ah! Se Nosso Senhor
Jesus Cristo quisesse..."
Vieram afinal as promoções.
Simplício foi promovido porque era muito mais antigo na classe que Guaicuru. O
Ministro não atendera a pistolões nem a títulos de Goiás. Ninguém foi
preterido; mas Guaicuru que tinha em gestação a obra de um outro, ficou furioso
sem nada dizer.
Dona Sebastiana deu uma consoada
à moda do Norte. Na hora da ceia, Guaicuru, como de
hábito, ia sentar-se ao lado de
Mariazinha, quando Dona Sebastiana, com pince-nez e cabeça, tudo muito bem
erguido, chamou-o:
- Sente-se aqui a meu lado,
doutor, aí vai sentar-se o "Seu" Simplício.
Casaram-se dentro de um ano; e,
até hoje, depois de um lustro de casados ainda teimam.
Ele diz:
- Foi Nosso Senhor Jesus Cristo
que nos casou.
Ela obtempera:
- Foi a promoção.
Fosse uma coisa ou outra, ou
ambas, o certo é que se casaram. É um fato. A obra de
Guaicuru, porém, é que até hoje
não saiu...
Careta, 24-12-1921.
[* o último Natal (e dezembro) de Lima : morreria em 1º. nov 1922]
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