quarta-feira, 14 de novembro de 2012
República , 123 anos - os intelectuais e o militante
O mês de novembro registra duas efemérides dignas de registro – no dia 15, a instalação da
República, fato de fundamental importância política, institucional e social na
história brasileira, em 1889 ; e no dia 1º.,em 1922, a morte de Lima
Barreto, um dos maiores escritores que o País já teve em seu cenário cultural.
Dois acontecimentos extremamente significativos, separados por 33 anos,
mas irremediavelmente entrelaçados e integrados – até porque Lima Barreto, ao
contrário dos intelectuais da época, foi o mais veemente e intransigente
crítico do novo regime e da pretensa ‘modernização’ anunciada.
República, 123 anos, e 90 anos sem Lima Barreto depois, ambos os eventos
propiciam estimulantes reflexões, não apenas sobre a política e a literatura brasileiras
mas em especial sobre a própria
institucionalidade do País.
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A República, os intelectuais , a literatura
militante de Lima Barreto
Embora
não tenha produzido correntes ideológicas próprias ou novas concepções
estéticas, a geração de intelectuais solidamente arraigada nas teorias
cientificistas de 1870 e no espírito
progressista da época parecia estar com a República, apoiada pela maçonaria,
pelo positivismo e pelas correntes que se julgavam “desassombradas de
preconceitos”: as idéias circulavam
então mais livremente, num ambiente que
Evaristo de Moraes [Da Monarquia para
a República ; s.ed., Rio de Janeiro,
1936 ]
qualificou de “porre ideológico”, um verdadeiro
mosaico no qual era predominante o liberalismo - manifestando-se
especialmente entre os republicanos ‘históricos’ como Benjamin Constant, José
do Patrocínio, Silva Jardim, Lopes Trovão, Alberto Sales, Joaquim Serra – mas
que abrigava alguma voga de anarquismo
em Elisio de Carvalho (até escrever o Five
o’clock), Curvelo de Mendonça,Fabio Luz, Afonso Schmidt, simpatias
explícitas ao socialismo em
Martins Fontes , Olavo Bilac, e até anti-racismo declarado em Alberto Torres e
Manuel Bonfim.
Sob os princípios genéricos do liberalismo, o grupo intelectual definira
a tarefa que lhes cabia: contribuir e propugnar por uma ampla, profunda ação
conjunta para construir a nação —no campo da produção intelectual intensificaram estudos da realidade
brasileira (as obras de Euclides da Cunha, Alberto Torres, Manuel
Bonfim,Oliveira Vianna são documentos exemplares) e se empenharam no ‘criar um
saber próprio sobre o Brasil’( enfatizava José Veríssimo em “Um estudioso
pernambucano”, artigo na revista Kosmos,n.1,Rio de Janeiro,1907) — e
remodelar e fortalecer o Estado (o que
obviamente punha em confrontação a ambigüidade de sua ideologia baseada no
liberalismo....).
Já no dia 15 de novembro de 1889 os
intelectuais registraram sua total adesão : numeroso grupo de
republicanos,junto com gente da rua, tendo à frente José do Patrocínio,Aníbal Falcão, João Clapp,Campos da Paz, Olavo Bilac, Luis
Murat e Pardal Mallet -- estes três pela primeira vez movidos à ação política
concreta-- dirigiu-se à sede da Câmara, aos gritos de viva à República, e
redigiram moção de apoio aos chefes da insurreição militar nestes termos : “Os
abaixo assinados,órgãos espontâneos do povo do Rio de Janeiro, representam o
governo provisório,instituído após gloriosa revolução que ipso facto extinguiu
a monarquia no Brasil,a necessidade urgente da proclamação da República.
Excelentíssimos srs. representantes supremos das classes militares do
Brasil, marechal Deodoro da Fonseca,chefe de divisão Wandenkolk e
tenente-coronel dr. Benjamin Constant.
O povo do Rio de Janeiro, reunido em massa no edifício da Câmara
Municipal, tem a honra de comunicar-vos que, por meio de diversos órgãos
espontaneamente surgidos e pelo seu representante legal, proclamou como nova forma de governo nacional a
República.
Esperam os abaixo assinados,representantes do povo do Rio de Janeiro,
que o patriótico governo provisório sancione o ato pelo qual,instituindo a
República, se pretende satisfazer a íntima aspiração do povo brasileiro. Viva a
República Brasileira ! Vivam o Exército e a Armada nacionais ! Viva o povo do
Brasil !”
O entusiasmo adesista dos intelectuais era generalizado; em outro
manifesto, dirigido ao Governo Provisório instalado a 16 de novembro, assinado
por alguns homens de letras em 22 de novembro : “O povo, e quando dizemos povo referimo-nos àquela grande
parte da nação que os aristocratas de todos os tempos chamaram desdenhosamente
o terceiro e quarto estado, donde, reparai bem, em sua maioria saiu sempre o
nosso glorioso Exército; os homens de letras, e quando dizemos os homens de
letras referimo-nos a todos aqueles que tomando a si os encargos intelectuais
da pátria foram, no curso de quatro séculos, os fatores mais enérgicos e mais desinteressados de
nosso progresso; plebe e pensadores, sempre estas duas forças caminharam aqui
unidas !... Agora mesmo no fato extraordinário que é o espanto da Europa e o
júbilo da América na proclamação da República,as duas grandes forças lá estão
ungidas uma a outra... A era das grandes lutas da política responsável abriu-se
definitivamente para os brasileiros... A pátria abriu as largas asas em
direitura à região constelada do progresso; a literatura vai desprender também
o vôo para acompanhá-la de perto. Ao futuro ! ao futuro,modeladores de
povos,construtores de nações ! [cf.
Silvio
Romero,Novos estudos de literatura contemporâneas ; s.ed., Rio de Janeiro, 1898 ].
No clamor pela ampliação da atuação do Estado sobre a sociedade
aliavam-se a homens públicos, políticos, jornalistas, até mesmo cafeicultores e
industriais,e a esse grupo juntar-se-ia os grupos militares defensores e
sequiosos de maior participação na
política— o que mais tarde não causaria
surpresas quando do progressivo e acentuado
fortalecimento dos governos republicanos a partir de Floriano Peixoto.
As reformas que preconizavam, no entanto, perderam-se no processo
político republicano. Na consolidação do novo regime ,que se deu por meio de um processo caótico e dramático,
malograram-se seus esforços cientificistas,reformadores, inovadores na criação
daquele ‘saber sobre o Brasil’. Cedo, muito cedo, já nos primeiros anos do
século XX desiludiam-se : “Está tudo
mudado: Abolição, República... Como isso mudou ! Então, de uns tempos para cá
parece que essa gente está doida”, vaticina Isaias Caminha , sob a pena
de Lima Barreto. José Veríssimo, no
artigo“Vida literária” (revista Kosmos, n. 7,1904), descreve: “Todos
se presumiam e diziam republicanos,na crença ingênua de que a República, para
eles palavra mágica que bastava à solução de problemas de cuja dificuldade e
complexidade não desconfiavam sequer, não fosse na prática perfeitamente
compatível com todos os males da organização social, cuja injustiça os
revoltava”. Ainda em outubro de 1890, antes do primeiro aniversário do15 de
novembro, desencantava-se Silva Jardim, lamentando em carta a Rangel Pestana: “Comunico-lhe
que parto para a Europa, a demorar-me o tempo preciso a que esta País atravesse
o período revolucionário de ditadura tirânica e de anarquia...” . “Esta não é a República de meus sonhos”.
lamentou-se Lopes Trovão, um dos próceres do movimento republicano. “Foi para isso então que fizeram a República
?”, protestou Farias Brito.
No campo político,os intelectuais até que mantiveram-se passivos diante da
“ditadura tirânica” e aceitaram as coligações de Deodoro da Fonseca com as
forças mais conservadoras do Brasil
agrário, mas as esperanças esfacelaram-se diante da índole e prática
repressoras do governo Floriano Peixoto , quando e alguns dos antigos entusiastas da República
tiveram de fugir do Rio de Janeiro para evitar a prisão, como Olavo Bilac e
Guimarães Passos.
Passado o momento inicial de esperança, desfeito o caminho almejado da
democratização do País prometida em comícios, conferências públicas ,na
imprensa radical, consolidada a vitória da ideologia reforçadora do poder
oligárquico, derrotados ,desapontaram-se as elites, desapontaram-se os
trabalhadores e o povo, desapontaram-se os
intelectuais , que desistiram da política militante e se concentraram na
literatura,aceitando postos ,mesmo decorativos, na burocracia especialmente no
Itamaraty de Rio Branco, que atraíra em torno de si -- eficiente Rui Barbosa nesse
trabalho de ‘cooptação’ -- o grupo de
intelectuais, representantes da intelligentsia do novo regime ,
constituindo o que à época se auto-denominaram “República dos Conselheiros”.
Difícil de manter uma
convivência pacífica entre a República política e a ‘Republica das letras’,
agravado pela crescente insatisfação popular com o novo regime, exposta em
agitações de rua,episódios violentos, revoltas e movimentos de protesto – e
mais ainda com os novos costumes e práticas de desenfreada especulação
financeira, a busca de enriquecimento a
qualquer custo,o advento de um capitalismo predatório levando ao Encilhamento, a
escandalizar Taunay que via “uma degradação da alma nacional”[Visconde de Taunay,
O Encilhamento] e
decepcionar republicanos ardorosos como Raul Pompéia ( “A república discute-se consubstanciada no
Banco da República” ).A par do afastamento repressor promovido pelo poder,
viram-se compelidos a submeter sua produção literária ao “valor do mercado” —
(...) neste século de danação social, em que o Dinheiro logrou a tiara de
pontífice ubíquo, para reinar discricionariamente sobre todas as coisas..”,
registrava Augusto dos Anjos em palestra pública.
O certo é que a decepção com a República e o
‘espírito’ inerente ao novo século, “o século da modernização e do progresso”, trouxeram
novas formas e modos de o escritor se relacionar com a literatura, sob um
processo algo ‘compulsório’ de aburguesamento e ‘mundanismo’, acarretando, por
uma razão ou outra , a necessidade de adesão quase maciça dos literatos ao jornalismo — que se constituiu no fenômeno
cultural mais marcante dos primeiros tempos do século XX. O significativo desenvolvimento dos meios
técnicos da imprensa, iniciado na verdade em meados do século XIX, permitiu o
crescimento e melhoria qualitativa dos jornais e o nascimento de muitas
revistas ilustradas , ambos incluindo matérias literárias.
A rigor, quer no âmbito do jornalismo quer mormente da literatura, os
escritores, sob pena de caírem em ostracismo cultural e profissional e
financeiro tiveram de em maior ou menor grau se submeter à preferência ou gosto
dos leitores da época : a necessidade de se expressaram no mesmo diapasão da
cidade contagiada pelos anseios de modernização e marcada pela ânsia do
enriquecimento rápido fizeram-no adotar estilo, linguagem , forma e conteúdo
mais superficiais e mesmo descartáveis, “adequados ao gosto do consumidor
pequeno-burguês formado pela República”.
No
lado oposto, além da ferrenha oposição à escrita aristocrática predominante ,
destoando e substancialmente contrário aos estilos vigentes, estava Lima
Barreto – por essa época já respeitado como articulista e cronista e
reconhecido como excepcional escritor mercê dos elogiados romances publicados Recordações do escrivão Isaias Caminha(1909)
e Triste fim de Policarpo Quaresma
(1915)—que rejeitava terminantemente fazer de tanto de seu trabalho
jornalístico como de sua obra literária, fosse ficcional ou não-ficcional,
“instrumento de propaganda do sonho republicano de falso progresso e falsa
civilização”. Sustentavaele que fazia “uma
literatura militante, de obras que se ocupam com o debate das questões da época
(...), por oposição às letras que,
limitando-se às preocupações da forma, dos casos sentimentais e amorosos e da
idealização da natureza” [Impressões de leitura ; ed. Mérito ,Rio de Janeiro, 1953].
Lima Barreto impôs — com sua escrita simples,
direta e objetiva , que feria o convencionalismo literário da época, impregnado
de falsas concepções estéticas, floreios , etc
— os prenúncios do Modernismo logo depois rompante na cultura brasileira[curioso notar
que Lima Barreto morreu no mesmo ano de 1922, em que eclodiu o movimento],
cujos primeiros elementos e formas apareceram justamente pela linguagem típica
da escrita barretiana. Não à toa
despertou interesse e respeito por parte de Mario de Andrade, do alto de
sua ‘autoridade’ de contista e teórico da construção ficcional, e levou p. ex. Sergio Milliet a escrever “(...) O que mais nos espantava então era o estilo direto,
a precisão descritiva da frase, a atitude antiliterária, a limpeza de sua
prosa, objetivos que os modernistas também visavam. Mas admirávamos por outro
lado sua irreverência fria, a quase crueldade científica com que analisava uma
personagem, a ironia mordaz, a agudeza que revelava na marcação dos caracteres”[artigo
“Noticiário’, in O Estado de S.Paulo, 11.11.1948] : nas páginas da então incipiente
revista Klaxon (1921), os modernistas paulistas se propunham também a
‘descoelhonetizar’[ref. a Coelho Neto,então epígono da escrita rebuscada e
cheia de floreios retóricos] a literatura brasileira, rompendo com os cânones
acadêmicos., objetivos bastante semelhantes da
revista Floreal, que Lima criara em 1907 e só durou quatro
números.
Assim, na contrapartida ao aristocratismo da
escrita de então, aos nefelibatas da linguagem, tinha-se em Lima Barreto um
registro da língua ‘brasileira’ do
início do século XX e um ritmo genuinamente nacional que prenunciava a linguagem modernista. Contrariamente à maioria de seus
contemporâneos, praticantes da escrita floreada e vazia, aristocrática e fútil,
verdadeiros instrumentos literários do “sorriso da sociedade” apregoado por
Afrânio Peixoto, Lima Barreto conferia à sua obra ficcional o sentido militante
de uma “missão social, de contribuir para a felicidade de um povo ,de uma
nação, da humanidade” Em sua concepção, a literatura tinha de ser “militante”,
com objetivo concreto e definido, como sentencia em entrevista a A Época,18.02.1916
: “(...)não desejamos mais uma literatura contemplativa, cheia de ênfase e
arrebiques ,falsa e sem finalidade, o que raramente ela foi; não é mais uma
literatura plástica que queremos, a encontrar beleza em deuses para sempre
mortos, manequins atualmente, pois a alma que os animava já se evolou com a
morte dos que os adoravam; digamos não a uma
literatura puramente contemplativa, estilizante sem cogitações outras
que não as da arte poética, consagrada no círculo dos grandes burgueses
embotados pelo dinheiro, de amplo emprego por pretensos intelectuais,bacharéis
e políticos” (...) “a obra
de arte tem por fim dizer o que os simples fatos não dizem. Este é meu escopo.
Vim para a literatura com todo o desinteresse e toda coragem. As letras são o
fim da minha vida. Eu não peço delas senão aquilo que elas me podem dar:
glória!”
Dono de obra ficcional e não-ficcional com
vigoroso fulcro ideológico, Lima Barreto buscava na politização da literatura
um sentido sobretudo ético.Marginalizado
por suas origens e condição social, execrado por ser ‘passadista e contrário à
modernização’, Lima Barreto enfrentou as marcas de seu tempo e da sociedade
brasileira que lhe foi contemporânea . Seu projeto era um projeto para uma vida
inteira de militância literária contra o preconceito, mas também “contra os
falsos intelectuais, contra um academismo espelhado no modelo europeu, contra
uma literatura só de deleite, como ornamento”. Para ele, a literatura era uma
verdadeira missão. A pretensa beleza estilística, os atributos externos formais
de perfeição, de forma, de estilo, de vocabulário, não poderiam prescindir da “exteriorização de um certo e determinado
pensamento de interesse humano, que fale do problema angustioso do nosso
destino em face do Infinito e do Mistério que nos cerca, e aluda às questões de
nossa conduta na vida” [Bagatelas ; Empresa de Romances Populares, Rio de Janeiro,1923].
Esse ideal, entendia ser impossível
cumprir sob a égide acadêmica, como expõe taxativamente naquela entrevista à
A Época, em fevereiro de 1916 : “Vim para a literatura com
todo o interesse e com toda coragem... Não quero ser deputado, não quero ser
senador, não quero ser mais nada senão literato. Não peço às letras conquistas
fáceis, não lhes peço glórias, peço-lhes coisa sólida e duradoura... Eu
abandonei tudo por elas; e a minha esperança é que elas vão me dar muita
coisa...”
Tanto nos romances e contos como
nas crônicas e artigos, Lima Barreto
exerceu sempre uma crítica à cultura da modernidade contra a opressão
social e a hipocrisia política — tal como se revelaram na implementação da República
. A opção por uma literatura militante determinou o caráter marginal (e
‘revolucionário’, para muitos estudiosos) de sua obra : sua visão crítica da
sociedade, da política e da cultura, renderam-lhe frutos amargos — desprezo do
público, penúria econômica, alcoolismo e doença, internação em manicômio — mas
nada o fez submeter-se aos ditames da moda e dos valores culturais da
República. A “esperança”
mencionada por Lima Barreto na entrevista de 1916 alimentava-se na verdade da
recusa impassível em transigir com o que demandava popularidade — o
aburguesamento do escritor, por via da adesão aos temas da moda, que
fortaleciam os interesses políticos, econômicos, sociais e culturais da
República. Nada porém o fez submeter-se a esses valores.
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