segunda-feira, 19 de novembro de 2012
Machado de Assis e “consciência negra”
[a propósito do 20 novembro]
-
para
dirimir todos os equívocos acerca de uma suposta,absurda ‘alienação’ à questão da negritude
Machado
de Assis nunca deixou de exprimir seu mais absoluto horror à escravatura –
fosse como funcionário da Diretoria da
Agricultura do Ministério da Agricultura (órgão que tratava da política de
terras e da aplicação da Lei do Ventre Livre, de 1871), na qual emitiu centenas de pareceres e réplicas no
sentido de fazer cumprir a Lei e o preceito de liberdade para os filhos de
escravos nascidos , fosse em muitos artigos e crônicas e,em especial, em
romances e contos. Exatamente ao contrário da equivocada e distorcida
interpretação --que, como toda interpretação, é uma ‘leitura’,sujeita pois a
melhor avaliação e até mesmo contestação --difundida ao longo dos anos,no
sentido de não ter ele se integrado à causa abolicionista (sic) nem ter inserido o
negro, ou a negritude,ou a condição do negro, em seus escritos, nem ter nenhum
‘herói negro’ entre os protagonistas de sua ficção, como se isso fornecesse
convincente e taxativo certificado de consciência política , como se fosse
elemento imprescindível na construção de romances e contos de qualidade. Os
detratores teimam em julgar o homem com base nos raramente compreendidos e
assimilados artifícios do ficcionista e do cronista – ainda mais quando este
utiliza ad nauseam os recursos da
sutileza, do subterfúgio, da dissimulação.
Além
de tudo, não se queira exigir de Machado uma postura – a mesma, p.ex., de abolicionistas (muitos deles seus amigos) ,
de outra verve e atitude – de militância ativa, discursiva, panfletária : nada
disso fazia parte de sua natureza,e discrição aliás foi o que sempre ostentou
na vida e na própria escrita literária.
Machado
fez da escravatura objeto crítico – por vezes desenhada pelas ‘entrelinhas’,
por vezes direta, nada oblíqua ou dissimulada -- de crônicas, de poemas, de peças teatrais, de contos, além de torná-la pano de fundo de
alguns romances, tanto os primeiros como
aqueles pós-1880. Já é mais do que tempo de obrigatória releitura da
equivocadissima omissão machadiana em relação à escravidão e às relações
inter-raciais no Brasil do século XIX , de seu absurdamente propalado “aburguesamento” e de “denegação das origens” em sua obra.
A
tese da ‘alienação’ machadiana desmorona ao se examinar o naipe de cinco
contundentes contos em que a “iníqua escravidão” é exibida criticamente, nas
linhas e entrelinhas, com todos seus horrores; é solapada ao se ler,por
exemplo, 17 crônicas(em 1864, 1865,1876,1877,1878,1883,1885,1887,1888,1893,
1897); perde vigor ao se deparar com os
poemas “Sabina”(1875) e “13 de maio”(1888) , ou ao conhecer a crítica teatral à
peça “Mãe”(1860), de José de Alencar, e o texto “O teatro de José de
Alencar”(1866); além das referências,citações,comentários e verdadeiros libelos
expostos na novela Casa Velha(1885) e nos
romances Ressurreição (1872),Helena(176),Iaiá Garcia(1878),Memórias
póstumas de Brás Cubas(1881), Quincas
Borba(1891),Dom Casmurro(1899) –
observando-se o quanto o processo histórico que resultou da lei de 1871, assim
como suas conseqüências,
encontra-se no cerne da concepção
desses seis romances -- Esaú e Jacó(1904) e no derradeiro Memorial de Aires(1908) – com a
encenação da decadência e extinção da própria escravocracia, personalizada no
Barão de Santa-Pia,sob uma narrativa revestida de contundente historicidade e ,
como o condizente grand finale da obra de um portentoso escritor, finalizada pela
mensagem ressaltando o papel político da literatura como guardiã dos fatos
passados e da memória coletiva de um país
A
crônica, até mesmo por sua própria natureza de dirigir-se diretamente ao público-leitor, na verdade foi
a seara onde Machado melhor e mais clara e veementemente expressou sua implacável crítica ao
escravagismo Em algumas delas, escritas com sua peculiar ironia ácida e
cortante , evidencia-se a crítica machadiana à hipocrisia política, manifesta
naqueles parlamentares que
intitulavam-se abolicionistas mas votavam sempre a favor dos senhores – o que
exibe,sob outro viés, a inquestionável atualidade de Machado [neste particular,
aliás, convém saber – como ressalta o historiador José Murilo de Carvalho, in D. Pedro II,2007 – que os políticos de
todos os partidos ,até mesmo os liberais e os republicanos, não se opunham à escravidão].
Na
verdade, e sob o espectro mais geral, Machado foi um crítico contundente da
sociedade e das instituições brasileiras, e escreveu muito sobre política, e
até mesmo sobre economia. Tinha,sim senhor,
opiniões políticas — era um monarquista liberal, não apoiava a República
-- e é possível observar a política
brasileira de sua época através de seu olhar literário. Raymundo Faoro (em A pirâmide e o trapézio) sentencia que
pode -se vislumbrar toda a sociedade brasileira do século XIX na obra de Machado : tanto na ficção quanto na
não-ficção, arrancou da História a própria substância de suas narrativas e
textos , utilizando uma série de elementos políticos -- escravidão, liberdade,
golpe de Estado, censura,aparelho policial, autocracia
absolutista,totalitarismo, etc – na elaboração,em sua escritura literária, de uma crítica da ideologia brasileira e de uma
teoria política avançada, a qual no
campo dos estudos literários não foi adequadamente percebida pelos especialistas.
Há de se enfatizar ainda que, a par de outros aspectos, uma das grandes
preocupações de Machado, uma espécie de linha-mestra, fulcro e fio condutor
de sua produção não-ficcional
centrava-se na questão da identidade
nacional — preocupação expressa claramente nos
ensaios “O passado, o presente e o futuro da literatura” (ainda em
1858), “Instinto de nacionalidade”(de
1873) e “Nova geração”(1879) e na essência de seus artigos e crônicas.
Em
outro viés, justamente os recursos da
ficção literária, sempre propícia a esse fim, foram os instrumentos que lhe
permitiram expressar com nitidez seu total e visceral repúdio ao sistema
escravocrata do Brasil do século XIX. Por meio de alguns de seus contos, é
possível observar as relações inter-raciais de sua época através do olhar
literário, abordando as tensas
relações,inclusive as de ordem afetiva e sexual, entre os membros da família
patriarcal típica do século XIX e seus criados negros e abrigando
trama,ambiência, personagens e ‘ideologia’ inerentes à questão escravagista.
Importante
notar que se o tema é pouco, ou apenas ‘tangencialmente’ e superficialmente
tratado nas obras do período pré-Abolição, depois adquire tamanho vigor
temático, tramático, narrativo e de linguagem , que induzem a considerar uma espécie
de ‘desforra’ de Machado quanto a uma
questão que não pudera até então abordar como merecia, e como ele almejava. Com
efeito, no período pós-1888, vale dizer já implementada a Abolição, as coisas podiam ser ditas mais clara e
contundentemente, e a tal, Machado – com sua plena consciência
histórica,política e ideológica -- não se furtou.
Ficção e
realidade, ficção e história, ficção e sociedade brasileira constituem fulcros
sempre presentes na obra machadiana. Em boa parte de sua ficção e da não-ficção Machado oferece
ao leitor uma interpretação satírica, por vezes alegórica, desnudando mitos e certezas, aparências e
disfarces, dilemas e mentiras -- sob o mesmo clamor crítico-satírico de seu
olhar ,por vezes direto e transparente,por vezes machadianamente oblíquo e
dissimulado, feito testemunho
incomparável sobre a vida política e
institucional brasileira do século XIX.
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