sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Sob um espectro vitoriano


a propósito da maratona shakespeareana em 2012 
cerca de 50 montagens de Shakespeare irão a cena no Brasil neste ano

Sob um espectro  vitoriano                       
[a compor a coletânea "Primeiros exercícios ficcionais do aprendiz Mauro Rosso"]

Em um dos corredores, antes de chegar ao caixa da delikatessen, espaçosa e  sofisticada , dotada em sua maioria de finos produtos importados, a mulher elegantemente vestida - um vistoso casaco de inverno cobrindo um corpo bem tratado, podia-se notar, muito bem conservado para a idade que realmente tinha, um belo complemento para o rosto  de feições atraentes, esteticamente maquiado, a tez acentuadamente morena – olha com atenção redobrada para os lados, certifica-se de estar segura, e disfarçadamente enfia em dos bolsos do casaco uma latinha de arenque dinamarquês defumado,em outro bolso uma barra do chocolate mais caro, e por dentro do casaco um potinho de caviar ucraniano : o clima frio de então na cidade impondo  o uso daquele tipo de casaco,cheio de bolsos grandes,  facilitava as coisas. Veio-lhe à mente o dizia aquele agiota: “Parcimônia é benção se não for roubada”.
 Certificou-se de que ninguém a vira, nenhum cliente nenhum funcionário, nem a gerente – principalmente esta: mulher é sempre mais observadora e atenta. Estava convicta de que a ação dera certo, tudo bem, o prazer de sempre em desfrutar daquelas delícias em casa...
O olhar sempre aguçado e certeiro do homem postado à frente de uma sedutora prateleira de doces viu tudo, quase que registrando a cena qual fotografia, ou vídeo; esgueirou-se sorrateiro entre outras pessoas, aproximou-se dela, e sussurrou-lhe: - para cada um deles, ceda-me um pedaço de seu corpo, não um naco qualquer de sua carne mas em peso de libras equivalente ao que tem nos bolsos.
 Mais do que o susto, a mulher aterrorizou-se em pensar no dilaceramento do corpo, que tão cuidadosa e dispendiosamente procurava preservar da implacabilidade do tempo, suprimido de pedaços do peito, ou do braço, ou da perna, ou das costas, da bunda – oh, não! - do pescoço – horror! horror!- o sangue esvaindo-se, aos borbotões, o rosto transformado numa horrenda máscara de dor e desespero, poderia até desfalecer, o sangue a jorrar pelo chão brilhante da delikatessen... "Todo mundo é capaz de dominar uma dor, exceto quem a sente." - lembrou-se que ouvira em uma peça, da qual naquele angustiante momento  esquecera  título e autor. Que maus ventos  trouxeram esse homem para cá ?
 A imagem a horrorizou, um fio gelado desceu da cabeça aos pés, por uma fração de segundos sentiu tudo rodar à sua volta, o homem segurou-lhe o braço para apoiá-la. Outro susto, sentindo-o ali, a segurá-la: vai me entregar, estarei perdida, e terei de devolver todas essas delícias, ah, não... Buscou reunir todas as forças – afinal, suas origem e ascendência vinham de seres rijos, resistentes, fortes diante das adversidades; fixou seus olhos amendoados de um castanho oriental no homem, que mantinha um leve sorriso nos lábios, ainda a apoiando, e observou-o : judeu,é judeu,conheço bem; desses saídos das páginas de Philip Roth, ou de Saul Bellow, não creio que  de Amais Oz. o que fará de mim? não  posso permitir, tenho de fazer alguma coisa.... Recuperou a cor das faces e o prumo do corpo, ajeitou  os cabelos pretos esmeradamente penteados presos numa tiara prateada. Empinou o nariz modelado pela plástica recente.
A fisionomia tranqüila e ironicamente risonha do homem não se alterou ao murmurar para ela, não mais segurando seu braço: --ingênua como uma moiçola apaixonada de clássicos romanescos vitorianos; minha cara, “devemos aceitar o que é impossível deixar de acontecer”. pelos deuses da dramaturgia, não poderá sair destas, distinta megera! eheh...”It is more worthy to leap in ourselves, Than tarry till they push us!."   
 -- Delineiam-se enredos, já se vê.
 A mulher procurou manter a serenidade – sua estirpe étnica e cultural assim preconizava, afinal. Falou ao homem da forma mais gentil – e dissimulada – possível que poderiam conversar um pouco sobre tudo aquilo em torno de um café ou de um licor, ali no coffee room do segundo andar.  O homem parecia indignar-se: “Para comer na casa que vosso profeta, o Nazareno, fez entrar o diabo por meio de exorcismos!” – posso até negociar convosco, “comprar convosco, vender convosco, falar convosco, e assim sucessivamentemas, nem comer ou beber convosco, nem orar convosco 
 Decididamente  a solução não seria,em hipótese alguma, fenecer sob o jugo desse  cretino , ter de devolver os preciosos produtos, humilhar-me perante todos – uma platéia certamente se formaria, como num teatro medieval ou renascentista, num átimo lembrou-se das temporadas no lendário Globe londrino, até a família real presente, e agora ali naquela situação,prestes à derrocada fatal,com aquele...aquele... Ah, vislumbrava agora com clareza, o judeu saíra de manuscritos mais antigos, muito mais antigos... Não, não, não, tinha de resolver aquilo de vez.
 Livrou-se da proximidade ameaçadora do algoz, bradou o mais alto que pôde : -- chamem a segurança! levem este homem! ele não é daqui,desta cidade, deste país, nem deste tempo! vem de longe e de um passado remoto,  sua origem é de escrita mais  antiga, ele não pode ficar entre nós ! é um impostor, e por cima cretino, queria mesmo é que todos soubessem da proposta que ele me fez, mas é tão absurda que não posso revelar em público...
 Uma platéia se formara à roda dos protagonistas, muitos gritaram, outros riram, alguns bateram palmas, uns mais entusiasmados pediram bis. Acudiram a gerente, dois funcionários, três  seguranças, afastaram os espectadores. Sob vaias, o judeu foi carregado com vigor pelos seguranças, as mãos atadas com força por trás do corpo, levado para fora.
“Palavras,palavras,palavras...”,vociferou o  homem, seguro firmemente pelos seguranças. -- ela se recusa a pagar, e usa palavras como moedas, valendo-se das claras e históricas relações  entre palavras e moedas, palavras como instrumento de troca intelectual e lingüística, moedas como instrumento de trocas financeiras e econômicas;  o teatro sempre foi usina criadora e de intercambio de palavras assim como de moedas, pois atividade comercial das mais lucrativas naquela época. A linguagem,a mais significativa moeda de todos os tempos, sempre foi  cunhada dentro do teatro.
Balançava o corpo, mesmo agarrado, e esbravejava : -- não vêem que essa mulher não passa de um Orlando,um amador, desafiando Charles, um profissional ?...
 Obviamente a maioria quase absoluta da platéia, nem os funcionários da casa, nem os seguranças entendiam o que aquele estranho homem, saído das páginas antigas como denunciara a mulher, queria dizer.  Um pouco afastados, a gerente ouviu com um isto de interesse e perplexidade; um homem, bem vestido, a seu lado, sorriu,parecendo entender tudo.
 A mulher agora quase que  gargalhava: “diz isso para justificar a usura; ou são carneiros sua prata e ouro ? Veio-lhe o gosto saboroso de vitória e de gula : já sentia o prazer quase erótico de degustar as delícias em casa, acompanhadas daquele vinho branco  especial safra 1978,ou seria melhor  a champanhe presenteada ao marido pelo príncipe da Dinamarca?. A sensação era orgástica, isso mesmo, não podia negar.
Livrei-me desse agiota de folhetim, idiota  metido a  moralista, olha só, veio parar aqui, depois do tanto que infligiu aos outros, lá em...
 -- Consolidam-se enredos, por certo.
 Viu-se de repente ladeada por três mulheres, todas jovens, bonitas, de ar europeu, porém robustas e musculosas como halterofilistas, e à esquerda por um homem bem vestido, terno bem talhado,suavemente perfumado,mas de aparência dura,sisuda, granítica,que lhe disse com genuína cortesia : -- acompanhe estas moças,por favor,com a mesma discrição com que  colocou as coisas furtadas nos bolsos de seu casaco. sou  delegado,e a senhora vai para a delegacia.
 Um delegado..vestido com fortuita autoridade, isso sim..., replicou a mulher.Conduzida para fora -- sentindo-se entre trovões e relâmpagos, com as Três Bruxas decidindo  seu próximo encontro com o thane de Cawdor e de  Glamis e rei da Escócia – diante dos aplausos de uma platéia ávida por desfechos, reclamou em voz alta : “de modo igual as nossas leis estão mortas\ a liberdade abusa da justiça. E completou : “onde vi fervilhar a corrupção\que mancha tudo ; há leis para todo crime\ mas crimes tão aceitos que essas leis\parecem regras de barbearia\que só servem para rir.”
Postada na porta, ao lado do delegado, a gerente sacudia a cabeça,  incrédula e ignorante acerca do que tanto ele quanto ela disseram, e   comentou : -- realmente há algo de podre no reino deste mundo e no círculo dos ricos e ultra-ricos : esposa de um milionário, banqueiro conhecido, mora na mansão branca a cem metros daqui,veja o carrão com  motorista que a esperava na porta,para carregar suas compras, pra quê isso ? não se trata de cleptomania,creio, porque nunca a vi fazer isso aqui. é, “a  vida não passa de uma história cheia de som e fúria contada por um louco significando nada" ,concluiu.
Mastigando uma pastilha que emanava agradável odor de hortelã, o delegado – que,seus pares e parceiros sabiam, professava admiração e conhecimento pelas letras e argots anglo-saxônicos – ironizou, como que esclarecendo a gerente, que tudo que se pronunciara ali estava a exigir um glossário, e  suspirando profundamente  : “As coisas andam fora dos eixos,infeliz fatalidade, a minha, de estar aqui para endireitar o mundo”. Arrematou - sure, my dear,”há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”....
 Ao sair, dirigindo-se ao carro preto a que a mulher fora levada pelas três policiais, olhou para a fachada e sorriu para a denominação da loja : Stratford-upon-Avon,delikatessen.
                                                                                   fim
(um glossário viria a ser oportuno...)

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