quarta-feira, 4 de abril de 2012

Machado de Assis,respeitoso, e a Semana Santa

Machado,em duas oportunidades, por ocasião da  Semana Santa -- a primeira, com o poema "A morte no Calvário"(in A Marmota, 24.04.1858-- vide ao lado); a segunda, com o artigo "A Paixão de Jesus" -- expressou ,não necessariamente um,digamos,'sentimento religioso', mas um respeitoso tributo à figura (e ao significado) de Jesus .  e para quem não sabe, Machado era profundo conhecedor da Bíblia (uma das maiores citações e referências em sua obra,somente superada em incidência quantitativa por Shakespeare)

A Paixão de Jesus
                   in   Jornal do Commercio, RJ, 01.04.1904.     

Quem relê neste dia os evangelistas, por mais que os traga no coração ou de memória, acha uma comoção nova na tragédia do Calvário. A tragédia é velha; os lances que a compõem passaram, desde a prisão de Jesus até a condenação judaica e a sanção romana; as horas daquele dia acabaram com a noite de sexta-feira, mas a comoção fica sempre nova; por mais que os séculos se tenham acumulado sobre tais livros. A causa, independente da fé que acende o coração dos homens, bem se pode dizer de duas ordens.
Não é preciso falar de uma. A história daqueles que, pelos tempos adiante, vieram confessando a Jesus, padecendo e morrendo por Ele, e o grande espírito soprado do Evangelho ao mundo antigo, a força da doutrina, a fortaleza da crença, a extensão dos sacrifícios, a obra dos místicos, tudo se acumula naturalmente diante dos olhos, como efeito daquelas páginas primitivas. Não menos surge à vista o furor dos que combateram, pelos séculos fora, as máximas cristãs ouvidas, escritas e guardadas, alguma vez esquecidas, outras desentendidas, mas acabando sempre por animar as gerações fiéis. Tudo isso, porém, que será a história ulterior, é neste dia dominado pela simples narração evangélica.
A narração basta. Já lá vai a entrada de Jesus em Jerusalém, escolhida para o drama da paixão. A carreira estava acabada. Os ensinamentos do jovem profeta corriam as cidades e as aldeias, e todos se podiam dizer compendiados naquele sermão da montanha, que, por palavras simples e chãs, exprimia uma doutrina moral nova, a humildade e a resignação, o perdão das injúrias, o amor dos inimigos, a prece pelo que calunia e persegue, a esmola às escondidas, a oração secreta. Nessa prédica da montanha a lei e os profetas são confessados, mas a reforma é proclamada aos ventos da terra. Nela está a promessa do benefício aos que padecem, a consolação aos que choram, a justiça aos que dela tiverem fome e sede. Jerusalém destina-se a vê-lo morrer. Foi logo à entrada, quando gente do povo correu a receber Jesus, juncando o chão de palmas e ramos e aclamando o nome daquele que lhe vinha trazer a boa-nova, foi desde logo que os escribas e fariseus cuidaram de lhe dar perseguição e morte, não o fazendo sem demora, por medo do povo que recebia a Jesus com hosanas de amor e de alegria.
Jesus reatou então os seus atos e parábolas, mostrando o que era e o que trazia no coração. Os fariseus viram que ele expelia do templo os que lá vendiam e compravam, e ouviram que pregava no templo ou fora dele a doutrina com que vinha extirpar os pecados da terra. Alguma vez as imprecações que lhe saíam da boca, eram contra eles próprios: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, porque devorais as casas das viúvas, fazendo longas orações...” — “Ai de vós, escribas e fariseus, porque alimpais o que está por fora do copo e do prato, e por dentro estais cheios de rapinas e de imundícies...” — “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, porque rodeais o mar e a terra por fazerdes um prosélito, e depois de o terdes feito, o fazeis em dobro mais digno do inferno do que vós”. Era assim que bradava contra os que já dali tinham saído alguma vez, a outras partes, a fim de o enganar e enlear e ouviram que ele os penetrava e respondia com o que era acertado e cabido. As imprecações seguiram assim muitas e ásperas, mas de envolta com elas a alma boa e pura de Jesus voltava àquela doce e familiar metáfora contra a cidade de Jerusalém: “Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados, quantas vezes quis eu ajuntar teus filhos, do modo que uma galinha recolhe debaixo das asas os seus pintos, e tu não o quiseste!”
A diferença que vai desta fala grave e dura àquele sermão da montanha, em que Jesus incluiu a primeira e ingênua oração da futura igreja, claramente mostra o desespero do jovem profeta de Nazaré. Não havia esperar de homens que a tal ponto abusavam do templo e da lei, e, em nome de ambos, afivelavam a máscara de piedade para atrair os que buscavam as doutrinas antigas de Israel. Sabendo que tinha de morrer às mãos deles, não lhes quis certamente negar o perdão que viessem a merecer, mas condenar neles a obra da iniqüidade e da perdição. Todo o mal recente de Israel estava nos que se davam falsamente por defensores do bem antigo.
A comoção nova que achamos na narração evangélica abrange o espaço contado da ceia à morte de Jesus. Judeus futuros, ainda de hoje, ao passo que negam a culpa da sua raça, confessam não poder ler sem mágoa essa página sombria. Em verdade, a melancolia do drama é grande, não menor que a do próprio Cristo, quando declara ter a alma mortalmente triste. Era já depois da ceia, naquele horto de Gethsemani, a sós com Pedro e mais dois, enquanto os outros discípulos dormiam, foi ali que ele confessou aquela profunda aflição. Tinha já predito a proximidade da morte. A aversão dos escribas e fariseus, indo a crescer com o poder moral do Nazareno, punha em ação o desejo de o levar ao julgamento e ao suplício, e cumprir assim o prenúncio do jovem Mestre. Tudo foi realizado: a noite não acabou sem que, pela traição de Iscariotes, Jesus fosse levado à casa de Anás e Caifás e, pela negação de Pedro, se visse abandonado dos seus amigos. Ele predissera os dois atos, que um pagou pelo suicídio e o outro pelas lágrimas do arrependimento.
Talvez ambos pudessem ser dispensados, não menos o primeiro que o segundo, por mais que o grupo dos discípulos escondesse o Mestre aos olhos dos inimigos. Se assim fosse, o suplício seria igualmente certo, mas a tragédia divina não teria aquela nota humana. Nem tudo é lealdade, nem tudo é resistência na mesma família.
A parte humana nasceu ainda, não já naqueles que deviam amor a Jesus, se não nos que o perseguiam; tal foi esse processo de poucas horas. Jesus ouviu o interrogatório dos seus atos religiosos e políticos. Era acusado de querer destruir a lei de Moisés e não aceitar a dominação romana, fazendo-se Rei dos Judeus. “Mestre, devemos pagar o imposto a César?”, tinham-lhe perguntado antes, para arrastá-lo a alguma palavra de rebelião. A resposta (uma de tantas palavras que passaram daqueles livros às línguas dos homens) foi que era preciso dar a César o que era de César e a Deus o que era de Deus. Caifás e o Conselho acabaram pela condenação; para o crime político e para a pena de morte era preciso Pilatos. Segundo o sacerdote da lei, era preciso que um homem morresse pelo povo.
Pilatos foi ainda a nota humana, e acaso mais humana que todas. Esse magistrado romano, que, depois de interrogar a Cristo, não lhe acha delito nenhum; que, ainda querendo salvá-lo da morte, pensa em soltá-lo pelo direito que lhe cabia em tal ocasião, mas consulta ao povo, e ouve deste que solte Barrabás, e condene a Jesus; que obedece ao clamor público, e faz a única ressalva de lavar as mãos inocentes de tal sangue; esse homem não finge sequer a convicção. A consciência brada contra o crime que lhe querem impor, mas a fraqueza cede aos que lho pedem, e entrega o acusado à morte.
A morte, fecho da Paixão, termo de uma vida breve e cheia, foi cercada de todos os elementos que a podiam fazer mais trágica. O riso deu as mãos à ferocidade, e o açoite alternou com a coroa de espinhos. Fizeram do profeta um rei de praça, com a púrpura aos ombros e a vara na mão. Vieram injúrias por atos e palavras, agravação do suplício dado entre dois ladrões; mas ainda nos falta alguma coisa para completar a parte humana daquela cena última.
As mulheres vieram rodear o instrumento do suplício. Com outro ânimo que faltou alguma vez aos homens, elas trouxeram a consolação e a paciência aos pés do crucificado. Nenhum egoísmo as conservou longe, nenhum tremor as fez estremecer de susto. A piedade era como alma nova incutida naqueles corpos feitos para ela. Com os olhos nos derradeiros lampejos de vida, que estavam a sair daquele corpo, aguardavam que este fosse amortalhado e sepultado para lhe darem os bálsamos e os aromas.
Tal foi a última nota humana, docemente humana, que completou o drama da estreita Jerusalém. Ela, e o mais que se passou entre a noite de um dia e a tarde de outro completaram o prefácio dos tempos. A doutrina produzirá os seus efeitos, a história será deduzida de uma lei, superior ao conselho dos homens. Quando nada houvesse ou nenhuma fosse, a simples crise da Paixão era de sobra para dar uma comoção nova aos que lêem neste dia os evangelistas.
                                                                                             

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