domingo, 29 de abril de 2012

Euclydes da Cunha e o 1º. de Maio


Euclydes da Cunha foi essencialmente um ser político – um pensador,a princípio convicto militante republicano, depois,desiludido com o regime, crítico vigoroso,por fim (em essência, depois de Canudos) presumivelmente socialista ( com efeito,se achegou,por influência do  amigo Francisco Escobar, ao grupo socialista de São José do Rio Pardo ,onde deu forma final ao texto de Os sertões ) --o que, na verdade, delineara-se,configurara-se e consolidara-se gradativamente  em todas as fases e  estágios de seu espectro político-ideológico. 
Haja vista, a expressar e comprovar com clareza absoluta a postura euclidiana face à questão social e ao socialismo, três  textos em três períodos distintos  todos datados de 1º. de maio : um artigo de 1892; o texto,de 1899, do programa de O Proletário, órgão do “Clube Internacional Os Filhos do Trabalho”,em São José do Rio Pardo; o artigo,de 1904, intitulado  “Um velho problema” – este, o mais avançado de sua lavra e um dos mais radicais de seu tempo

o estado  de  S. Paulo,  1º. maio  1892

Extraordinário amanhecer o de hoje nas velhas capitais da Europa...
Como que assaltada por uma síncope, subitamente, se paralisa a complicadíssima vida da mais alta civilização; todo o movimento das grandes sociedades, toda a espantosa atividade de um século e a admirável continuidade dessa existência moderna tão poderosa e tão vasta, se extinguem, aparentemente, esvaindo-se em vinte e quatro horas de inatividade sistemática.
Abandonam o cérebro dos políticos os interesses nacionais mais urgentes; desaparecem por um dia todas as fronteiras; reconciliam-se incorrigíveis ódios seculares de governos - e aqueles exércitos formidáveis, que a todo o instante ameaçam abalar a civilização, num espantoso duelo, formam silenciosos, pela primeira vez, sob uma mesma bandeira...
Tudo isto porque o anônimo extraordinário que é o maior colaborador da história, o Povo que trabalha e que sofre - sempre obscuro - entende, nessa festiva entrada da primavera, deixar por momentos as ásperas ferramentas e sonhar também como os felizes, pensar, ele que só tem um passado, no futuro.
O escravo antigo, que ia nos circos romanos distrair o humor tigrino dos reis, num pugilato desigual e trágico com as feras; o servo da gleba, o vilão cobarde que atravessou a idade média, à sombra dos castelos sob a guante do feudalismo; que tem alimentado com o sangue a alma destruidora das guerras; ele - a matéria prima de todas as hecatombes, seguindo sempre acurvado a todos os jugos - transfigura-se realmente, alentado por uma aspiração grandiosa e apresenta esta novidade à história - pensa!
Deu todas as energias ao progresso humano, sempre inconsciente da própria força, e quando no fim do século XVIII, uma grande aura libertadora perpassou a terra, ele se alevantou, aparentemente apenas - para trazer às costas, até os nossos dias - a burguesia triunfante.
Cansado de escutar todas as teorias dos filósofos ou os devaneios dos sonhadores, que de há muito, intentam-lhe a regeneração - desde os exageros de Proudhon às utopias de Luis Blanc - ele inicia por si o próprio levantamento.
E para abalar a terra inteira basta-lhe um ato simplíssimo - cruzar os braços.
E que triste e desoladora perspectiva esta - de vastas oficinas e ruidosas fábricas desertas, sem mais a movimentação fecunda do trabalho - e as profundas minas, abandonadas, abrindo para os céus as gargantas escuras - num tenebroso bocejo...

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Se entrarmos na análise dos cambiantes que tem assumido o socialismo, temo-lo como uma ideia vencedora.
O Quarto Estado adquirirá, por fim, um lugar bem definido na vida universal.
Nem se lhe faz para isto preciso agitar o horror da anarquia ou fazer saltar a burguesia a explosões de dinamite. Fala todas as línguas e é de todas as pátrias.
Toda a sua força está nessa notável arregimentação, que ora desponta à luz de uma aspiração comum; a anarquia é justamente o seu ponto vulnerável - quer se defina por um caso notável de histeria - Luiza Michel, ou por um caso vulgar de estupidez - Ravachol.
Não existe, talvez, um só político proeminente hoje, que se não tenha preocupado com esse grave problema - e o mais elevado deles, o menos inglês dos pensadores britânicos, Gladstone, cedendo à causa dos home-rulers o espírito robusto - é, verdadeiramente, um socialista de primeira ordem.
Realmente, a vitória do socialismo bem entendido, exprime a incorporação à felicidade humana dos que foram sempre dela afastados. Em nossa pátria - moça e rica - chegamos as vezes a não o compreender - transportando-nos porém aos grandes centros populosos, observando todas as dificuldades que assoberbam a vida ali, sentimos quão criminosa tem sido a exploração do trabalho. Ali, aonde o operário mal adquire para a base material da vida, a falsíssima lei de Malthus parece se exemplificar ampla e desoladora. Preso a longas horas de uma agitação automática e além disto cerceado da existência civil, o rude trabalhador é muito menos que um homem e pouco mais que uma máquina.
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Os governos da Europa hão de transigir porém; hão de entabular os preliminares da paz, pelas concessões justas e inevitáveis que terão de fazer.
Nós assistimos ao espetáculo maravilhoso da grande regeneração humana.
Pela segunda vez se patenteia na História, o fato de povos que se fundem num sentimento comum - e não sabemos qual mais grandioso, se o quadro medieval das Cruzadas ou se esta admirável cruzada para o futuro.
Seja qual for este regime porvir, traduza-se ele pela proteção constante do indivíduo pela sociedade, como pensa Spencer ou pelas inúmeras repúblicas, em que se diferenciará o mundo, segundo acredita Augusto Comte - ele será, antes de tudo, perfeitamente civilizador.
Que se passe sem lutas este dia notável. O socialismo, que tem hoje uma tribuna em todos os parlamentos, não precisa de se despejar nas revoltas desmoralizadas da anarquia.
Que saia às ruas das grandes capitais a legião vencedora e pacífica; e levante altares à esperança, nessa entrada iluminada de primavera, sem que se torne preciso ao glorioso vencido - o Exército - abandonar a penumbra em que lentamente emerge à medida que sobe a consciência humana.
E.C.
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o proletário,1º. maio  1899

Programa
I. Proibição do trabalho das crianças de qualquer dos sexos até a idade de 14 ou 15 anos.
II. Escolas gratuitas, com o ensino leigo e obrigatório para todas as crianças, sem distinção de sexo, de cor e de nacionalidade, tendo as crianças pobres todo o necessário para freqüentar as escolas: roupa, comida, cuidados médicos, farmácias, etc, etc.
III. Estabelecimentos apropriados para recolher os inválidos do trabalho, pobres, velhos e defeituosos, dando-lhes com abundância roupa, comida, médico, farmácia, etc., para não irem morrer nas enxergas dos hospitais e nos adros das igrejas, ou nas calçadas das ruas, implorando aviltadora caridade, ministrada pelos ricos, e remédios.
IV. Emancipação da mulher, reconhecendo-se-lhes iguais direitos e iguais deveres: aos do homem, inclusive o de votar e ser votadas.
V. Impostos diretos e pesadíssimos sobre a renda.
VI.Substituição das Forças Armadas pelo povo armado.
VII. Organização do trabalho por ser o único fator de riqueza.
VIII. Estabelecimento de bolsas de trabalho.
 IX. Proporcionar a preços módicos a cada família uma casa confortável para sua residência.
X. Fornecer água e luz grátis a todos em geral.
XI. Tribunais arbitrais obrigatórios para as questões internacionais.
XII. Justiça gratuita para todos.
XIII. Supressão dos empréstimos internos e externos.
XIV. Tribunais arbitrais para decidir as questões entre patrões e operários.
XV. Decretar leis de oito horas de trabalho e a proibição do trabalho à noite para os assalariados.
XVI. Leis repressivas contra os usurários, estabelecendo uma só taxa de juros para todos os negócios.
XVII. Nacionalização do crédito.
XVIII. Leis reguladoras da venda de bebidas, para acabar com o alcoolismo.
XIX. Leis que estabeleçam o divórcio, dando à mulher as mesmas garantias que ao homem.
XX. Pensão aos inválidos do trabalho.
XXI. Reivindicação dos bens do clero para a comunhão social.
                                                     A mensagem
Festa  exclusivamente popular, ela se destina a preparar o advento da mais nobre e fecunda das aspirações humanas : a reabilitação do proletariado pela exata distribuição da justiça, cuja fórmula suprema consiste em dar cada um o que cada um merece. Daí a abolição dos privilégios derivados quer do nascimento, quer da fortuna, quer da força. Para esse fim é mister promover a solidariedade entre todos os que formam a imensa maioria dos oprimidos sobre que pesam as grandes injustiças das instituições e preconceitos sociais da atualidade, destinados a desaparecer para que reine a paz e felicidade entre os povos civilizados. Promovendo, entre nós, a comemoração de uma data tão notável, o Clube "Filhos do Trabalho" promoverá a divulgação dos princípios essenciais do programa socialista, empenhando –se em difundi-los entre todas as classes sociais.

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O estado de s. paulo,  1º. maio  1904

                                                          Um velho problema

Li há tempos alentada dissertação sobre um singularíssimo direito expresso em velhas leis consuetudinárias da Borgonha. Direito de roubos...
Recordo-me que, surpreendido com tal antinomia, tão revolucionária, sobretudo para aquela época, ainda mais alarmado fiquei notando que a patrocinava o maior dos teólogos, S. Thomaz de Aquino; e com tal brilho e cópia de argumentos, que a perigosa tese repontava com a estrutura inteiriça de um princípio positivo. Realmente a repassava uma nobre e incomparável piedade, fazendo que aquela extravagância resumisse e espelhasse um dos aspectos mais impressionadores da justiça.
Tratava-se, ao parecer, de um código da indigência; e os graves doutores, no avantajarem-se tanto, rompendo com nobre rebeldia as barreiras da moral comum, para advogarem a causa da enorme maioria de espoliados, chegavam à conclusão de que a opulência dos ricos se traduzia como um delitum legale, um crime legalizado. Impressionava-os o problema formidável da miséria na sua feição dupla - material e filosófica - pois é talvez menos doloroso refletido nos andrajos das populações vitimadas, que na triste inopia de elementos da civilização para o resolver.
E como lhes faleciam, mais do que hoje nos falecem, elementos para a extinção do mal, justificavam aos desvalidos num crudelíssimo título de posse a todos os bens - a fome.
O indigente tornava-se um privilegiado afrontando impune toda a ortodoxia econômica. O roubo transmudava-se, do mesmo passo, num direito natural de legítima defesa contra a Morte e num dever imperioso para com a Vida.
Mas não foram além deste expediente, e dessas declamações, os piedosos doutores. Tolhia-os, senão a situação mental da Idade Média imprópria a uma apreciação exata do conjunto do progresso humano, a mesma ditadura espiritual do catolicismo, na plenitude de força, e para o qual a miséria - eloqüentíssima expressão concreta do dogma do pecado original - era sempre um horroroso e necessário capital negativo, avolumando-se com as provações e com os martírios para a posse anelada da bem-aventurança, nos céus...
Por outro lado, os pensadores leigos do tempo, e os que os encalçaram até ao século XVIII, não partiram esta tonalidade sentimental Mais sonhadores que filósofos, o que os atraía era o lado estético do infortúnio, a visão empolgante do sofrimento humano, a que nos associamos sempre pela piedade. Os seus livros, pelos próprios títulos hiperbólicos, à maneira dos das novelas do tempo, retratam uma intervenção brilhante e imaginosa, mas inútil. São como títulos de poemas. De fato, na Utopia de Thomaz Morus, na Oceana de Hallis, ou na Basilidade de Morelly, a perspectiva de uma existência melhor, oriunda da riqueza eqüitativamente distribuída e dos privilégios extintos, irrompe :num fervor de ditirambos, aos quais não faltam, para maior destaque, prólogos arrepiadores de agruras e tormentas indescritíveis...
As medidas propostas raiam pelos exageros máximos da fantasia: do nivelamento absoluto de João Libburne, ao platonismo adorável de Fontenelle e ao niilismo religioso de Diderot; e para lhes não faltar grotesco, esse cruel e antilógico grotesco imanente às mais trágicas situações, culmina-as o desvairado comunismo de Campanella com os seus trezentos monges, trezentos ascetas barbudos e melancólicos, tentando uma república igualitária que seria o desabamento de todas as conquistas do progresso.
Ora, tudo isto caracteriza bem o completo desequilíbrio das almas rudemente trabalhadas pelas doutrinas opostas e de todo desapercebidas, então, de uma síntese filosófica que ao mesmo passo as emancipasse do apego tradicional ao catolicismo, cuja missão findara, e dos impulsos demolidores da metafísica triunfante.
Assim, ao arrebentar a crise decisiva de 1789, não é de estranhar ficasse inapercebido, e talvez sacrificado, o grande problema que desde Pitágoras e Platão vinha agitando os espíritos. E que a grande revolução, inspirada pela filosofia social do século XVIII, oferece o espetáculo singular de repudiar, desde os seus primeiros atos, os seus próprios criadores. A consideração de Guizot é profunda: nunca uma filosofia aspirou tanto ao governo do mundo e nunca foi tão despida do império.
Os filósofos foram, de pronto, suplantados, na agitação revolta dos panfletos e da retórica explosiva dessa literatura política sempre efêmera, com ser modelada pelos desvarios repentinos da multidão. A sólida estrutura mental de um d’Alembert antepôs-se o espírito imaginoso e pueril de um Vergniaud, e aos sonhos desmedidos de Mably e excesso de objetivismo do trágico casquilho que passeou pelas ruas de Paris :a deusa da Razão...
De sorte que a última pancada do antigo regime - já longamente solapado e prestes a cair por si mesmo - se fez com excesso de energias que atirou sobre os destroços da ordem antiga as ruínas da ordem nova planeada. Exclusivamente atraída pelo programa, que se lhe afigurava enorme e pouco valia, de derruir as classes privilegiadas, a Revolução firmou, nos "direito:; do homem", um duro individualismo que na ordem espiritual significava a negação dos seus melhores princípios e na ordem prática equivalia a destruir as corporações populares, isto é, a única criação democrática da Idade Média.
"Os direitos do homem... No entanto, a fórmula superior daquela filosofia, visava, de preferência, através da solidariedade humana crescente, exatamente o contrário - os deveres do homem". Mas era exigir muito à loucura política do momento. Fazia-se mister, antes de tudo, que as franquias recém-adquiridas tivessem um traço incisivamente antiaristocrático. Que o camponês, absolutamente livre, fosse absolutamente dono da quadra de terra onde nascera e onde tanto tempo jazera aguilhoado à gleba feudal; enquanto o burguês das cidades pudesse agir libérrimo, dispondo a bel-prazer de todos os seus bens, despeado do liame das jurandes.
E o trono vazio dos Capetos teve em roda a concorrência tumultuária de não sei quantos milhões de liliputinianos reis...
Despojados o clero e a aristocracia de suas propriedades (não raro precárias como privilégios sujeitos aos caprichos do poder monárquico) ficou em seu lugar - intangível, absoluta e sacratíssima - a propriedade burguesa, para a qual o ilustre Condorcet não encontrara limites no texto que forneceu à Convenção.
Por isto, a breve trecho, se patenteou a inanidade das reformas executadas; ao invés de um número restrito de privilegiados, nos quais o egoísmo se atenuava com as tradições cavalheirescas da nobreza, um outro, maior e formado pela burguesia vitoriosa, mais inapta ainda a compreender a missão social da propriedade,. .ávida por dominar na arena livre que se lhe abria, e tornando maior o contraste entre a sua opulência recente e a situação inalterável do proletariado sem voto naquele tumulto e destinada apenas a colaborar anonimamente na epopéia napoleônica, quando em breve, culminando a catástrofe revolucionária, o mais pequenino dos grandes homens surgisse, concretizando a reação disfarçada do antigo regime, e fosse restaurar, entre os fulgores de uma glória odiosa, o anacronismo da atividade militar.
Destruída desta maneira a obra memorável da Convenção, vê-se, contudo, que ela tinha latentes e aguardando apenas um meio propício, os princípios de uma distribuição mais eqüitativa da fortuna. Para o rígido Camus a propriedade "não era um direito natural, era um direito social"; acompanhava-o neste conceito o romântico Saint Just; e sobre todos, mais incisivamente, num dizer claríssimo que lhe dá as honras de um precursor do coletivismo moderno, o incomparável Mirabeau atirava na anarquia das assembléias estas palavras singularmente austeras: "Le proprietarie n’est lui-même que le premier des salariés. Ce que nous appelons vulgairement la proprieté n’est autre chose que le prix qui lui paye la societé pour les distribuitions qu’il est chergé de faire aux autres individus par ses consommations et ses depenses. Les proprietaires sont les agents, les economes du corps social".
Estas frases admiráveis, porém, que ainda hoje, transcorridos cento e tantos anos, são a síntese de todo o programa econômico de socialismo, ninguém as escutou. De modo que à massa infelicíssima do povo, a quem a revolução libertara para a morte despeando-a da gleba para jungi-la ao carro triunfal de um alucinado, restavam ainda, como nos velhos tempos, apenas as fórmulas enérgicas, mas inócuas, de alguns doutores canonizados; e em pleno repontar do século XIX - quando a filosofia natural já aparelhara o homem para transfigurar a terra um triste, um repugnante, um deplorável, e um horroroso direito: o direito do roubo
Mas esta filosofia natural, tão crescentemente revigorada e favorecendo tanto, no século que passou, o ascendente industrial, era por si mesma - isolada no campo das suas investigações - inapta à verdadeira solução do problema. Dizem-no os insucessos de todos os que o consideraram esteando-se nela, das estupendas utopias de Saint-Simon e dos seus extraordinários discípulos, às alienações de Proudhon, às tentativas bizarras de Fourier e ao soçobro completo da política de Luiz Blanc.
Fora logo acompanhá-los. Se o fizéssemos, veríamos que, malgrado todos os recursos das ciências, eles pouco se avantajaram aos sonhadores medievais: o mesmo agitar de medidas fantásticas, e tão radicais, algumas, abalando tanto os fundamentos da sociedade, a começar pela organização da família, que acarretavam ante novos elementos perturbadores e novas faces à questão, dando-lhe um caráter por igual revolucionário e complexo capaz de a tornar  perpetuamente insolúvel.
Assim ela chegou até meados do último século - até Karl Marx - pois foi, realmente, com este inflexível adversário de Proudhon que o socialismo científico começou a usar uma linguagem firme, compreensível e positiva.
Nada de idealizações: fatos; e induções inabaláveis resultantes de uma análise rigorosa dos materiais objetivos; e a experiência e a observação, adestradas em lúcido tirocínio ao través das ciências inferiores; e a lógica inflexível dos acontecimentos; e essa terrível argumentação terra-a-terra, sem tortuosidades de silogismos, sem o idiotismo transcendental da velha dialética, mas toda feita de axiomas, de verdadeiros truísmos, por maneira a não exigir dos espíritos o mínimo esforço para a alcançarem, porque ela é quem os alcança independentemente da vontade, e os domina e os arrasta com a fortaleza da própria simplicidade.

A fonte única da produção e do seu corolário imediato, o valor, é o trabalho. Nem a terra, nem as má quinas, nem o capital, ainda coligados, as produzem sem o braço do operário. Daí uma conclusão irredutível: a riqueza produzida deve pertencer toda aos que trabalham. E um conceito dedutivo: o capital é uma espoliação.
Não se pode negar a segurança do raciocínio.
De efeito, desbancada a lei de Malthus, ante a qual nem se explicaria a civilização, e demonstrada a que se lhe contrapõe consistindo em que "cada homem produz sempre mais do que consome persistindo os frutos do seu esforço além do tempo necessário à sua reprodução" - põe-se de manifesto o traço injusto da organização econômica do nosso tempo.
A exploração capitalista é assombrosamente clara, colocando o trabalhador num nível inferior ao da máquina. De fato, esta, na permanente passividade da matéria, é conservada pelo dono; impõe-lhe constantes resguardos no trazê-la íntegra e brunida, corrigindo-lhe os desarranjos; e quando morre - digamos assim - fulminada pela pletora de força de uma explosão ou debilitada pelas vibrações que lhe granulam a musculatura de ferro, origina a mágoa real de um desfalque, a tristeza de um decréscimo da fortuna, o luto inconsolável de um dano. Ao passo que o operário, adstrito a salários escassos demais à sua subsistência, é a máquina que se conserva por si, e mal; as suas dores recalca-as forçadamente estóico; as suas moléstias, que, por uma cruel ironia, crescem com o desenvolvimento industrial - o fosforismo, o saturnismo, o hidrargirismo, o oxicarborismo - cura-as como pode, quando pode; e quando morre, afinal, às vezes subitamente triturado nas engrenagens da sua sinistra sócia mais bem aquinhoada, ou lentamente- esverdinhado pelos sais de cobre e de zinco, paralítico delirante pelo chumbo, inchado pelos compostos de mercúrio, asfixiado pelo óxido de carbônico, ulcerado pelos cáusticos dos pós-arsenicais, devastado pela terrível embriaguez petrólica ou fulminado por um coup de plomb - quando se extingue, ninguém lhe dá pela falta na grande massa anônima e taciturna, que enxurra todas as manhãs à porta das oficinas.
Neste confronto se expõe a pecaminosa injustiça que o egoísmo capitalista agrava, não permitindo, mercê do salário insuficiente, que se conserve tão bem como os seus aparelhos metálicos, os seus aparelhos de músculos e nervos; e está em grande parte a justificativa dos socialistas no chegarem todos ao duplo princípio fundamental:
             Socialização dos meios de produção e circulação;
             Posse individual somente dos objetos de uso.

Este princípio,  unanimemente aceito, domina toda a heterodoxia socialista - de sorte que as cisões, e são numerosas, existentes entre eles, consistem apenas nos meios de atingir-se aquele objetivo. Para alguns, e citam-se apenas João Ligg e Ed. Vaillant, os privilégios econômicos e políticos devem cair ao choque de uma revolução violenta. É o socialismo demolidor que, entretanto, menos aterroriza a sociedade burguesa. Outros, como Emílio Vendervelde, se colocam numa atitude expectante: as reformas serão violentas ou não, segundo o grau de resistência da burguesia. Finalmente, outros ainda - os mais tranqüilos e mais perigosos - como Ferri e Colajanni, corretamente evolucionistas, reconhecendo a carência de um plano já feito de organização social capaz de substituir, em bloco, num dia, a ordem atual das coisas, relegam a segundo plano as medidas violentas, sempre infecundas e só aceitáveis transitoriamente, de passagem, num ou noutro ponto, para abrirem caminho à própria evolução.
Ferri, em belíssimo paralelo entre o desenvolvimento social e o terrestre, mostra como os imaginosos cataclismos de Cuvier, perturbaram, sem efeito, a geologia para explicarem transformações que se realizam sob o nosso olhar, sendo os grandes resultados, que mal compreendemos no estreito círculo da vida individual, uma soma de efeitos parcelados acumulando-se na amplitude das idades do globo. Deslocando à sociedade este conceito, aponta-nos o processo normal das reformas lentas, operando-se na consciência coletiva e refletindo-se pouco a pouco na prática, nos costumes e na legislação escrita, continuamente melhoradas.
Nada mais límpido. Realmente, as catástrofes sociais só podem provocá-las as próprias classes dominantes, as tímidas classes conservadoras, opondo-se a marcha das reformas - como a barragem contraposta a uma corrente tranqüila pode gerar a inundação. Mesmo nesse caso, porém, a convulsão é transitória; é um contrachoque ferindo a barreira governamental. Nada mais. Porque o caráter revolucionário do socialismo está apenas no seu programa radical. Revolução: transformação. Para a conseguir, basta-lhe erguer a consciência do proletário, e - conforme a norma traçada pelo Congresso Socialista de Paris, em 1900 - aviventar a arregimentação política e econômica dos trabalhadores.
Porque a revolução não é um meio, é um fim; embora, às vezes, lhe seja mister um meio, a revolta. Mas esta sem a forma dramática e ruidosa de outrora. As festas do primeiro de maio são, quanto a este último ponto, bem expressivas. Para abalar a terra inteira, basta que a grande legião em marcha pratique um ato simplíssimo: cruzar os braços...
 Porque o seu triunfo é inevitável.
Garantem-no as leis positivas da sociedade que criarão o reinado tranqüilo das ciências e das artes, fontes de um capital maior, indestrutível e crescente, formado pelas melhores conquistas do espírito e do coração...

      





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