terça-feira, 10 de abril de 2012

'antecedentes' do Modernismo de 22

a propósito de  exposição na Caixa Cultural, no Rio de Janeiro – “Modernismos, 90 anos” (atenção ! vai somente  até 29 abril)—que tem significativa estrutura de organização e enfoque, estabelecendo vínculos temporais e setoriais com o movimento propriamente dito,deflagrado em 1922 em São Paulo : p. ex., exibe certos ‘antecedentes’,artísticos e culturais,dados à luz anos antes, bem ligações decorrentes da Semana de Arte Moderno manifestas em Minas Gerais,Recife e em outras  expressões artísticas (como o cinema). Extremamente atraente é esta exposição.
-- coadunando com os elementos  de ‘antecedência’ propostos pela mostra, vale reportar e refletir  sobre o quanto o preconizaram duas das maiores figuras da literatura brasileira

Lima Barreto e Machado de Assis, preconizadores do Modernismo
Um anunciador, antecipador, no início do século XX. Um ‘visualizador’, precursor, no século XIX

Comecemos com proximidade a 1922. De imediato, convém realçar: o Modernismo começou  exatos 18 anos antes. Em 1904. Com Lima Barreto, na confecção dos romances Recordações do escrivão Isaias Caminha e Vida e morte de M.J.Gonzaga de Sá, escritos simultaneamente a partir desse ano (ele preferiu - por razões que ora eu estudo- publicar aquele primeiro, em 1907; este, somente em 1919) ao expressar, ainda incipientes, os primeiros elementos-indícios depois assimilados pelos modernistas, manifestos tanto  na concepção ‘filosófico-literária’ quanto na linguagem das duas obras, ambas carregados de muitas intertextualidades temáticas, ambas  representando, emblematizando e sintetizando decisiva guinada de concepção  ficcional e  a  própria evolução literária barretiana.
 Vale notar, ainda, que Isaias Caminha e Gonzaga de Sá estão, por sua vez e cada um deles, ‘ligados’ a “Clara dos Anjos”,obra que  aparece na obra ficcional de Lima Barreto, sob o mesmo título, em três versões, defasadas no tempo, e distintas entre si,nem tanto pelo enredo em si,este  mantido essencialmente o mesmo mas pelos focos e enfoques temáticos que Lima imprimiu ao longo do tempo : a primeira versão é de 1904, um romance inacabado, com apenas quatro capítulos, inserido em Diário íntimo; a segunda, um conto publicado em 1919 e incluído na coletânea Histórias e sonhos ; a terceira, um romance ‘acabado’,veiculado postumamente em 1923-34, em folhetins na Revista Souza Cruz.e publicado em livro somente em 1947. Tanto Clara..., em suas três versões, como Isaias Caminha e Gonzaga de Sá  expressam crucial desvio de uma intenção inicial de enfoque temático nas questões de negritude e situação do negro no país – a concepção inicial da novela (de obra sobre preconceito racial a obra psicológica,existencial, denunciadora de discriminação social-racial) e o projeto historicista de elaboração de uma “História da escravidão no Brasil” -- para o romanesco (a de 1907 e a de 1919,ambas obras crítico-satíricas ao mundo jornalístico e literário),mas de cunho político,com foco no cenário institucional e na sociedade brasileiros (assim foi nos romances que vieram depois e nos contos), assumindo a observação crítica, demolidora, da  vida política e institucional inerentes à República.Na construção ficcional tanto de “Clara dos Anjos”, em suas três versões,  como de Isaias Caminha- e de Gonzaga de Sá,- Lima ‘descobriu’ o caminho a seguir em sua ficção.
As três obras, mais do que a evolução literária, sintetizam a própria evolução filosófico-ideológica de Lima Barreto -- e,  no desvio  do foco étnico em favor do mundo romanesco,sem no entanto valer-se da superficialidade ou da “palavra oca,inócua”, deve-se apor a esse processo a  conotação tolstoiana (de Tolstoi,e seu célebre ensaio O que é a Arte ?, e  “percepção religiosa da arte”), de resto autor da  maior,e crucial,  influência absorvida por Lima do começo ao fim de  sua obra,em especial no que tange à  transformação de  ideais literários e o imprimir de um novo rumo à sua temática ficcional, e a seus conceito e pregação da “literatura como missão”.
Guinada, para reflexão e discussão do país e da sociedade, da concepção de literatura e também – e significativamente – da escrita e da linguagem literária,de resto elementos que se revelariam,desdobrariam e influiriam no Modernismo.
Lima Barreto impôs na ficção e na nãoficção  — com seu estilo simples, direto e objetivo, baseada na oralidade, contrária ao rebuscamento estéril que caracterizava a época, que feria o convencionalismo literário da época, impregnado de falsas concepções estéticas, floreios , etc -- os prenúncios do Modernismo logo a seguir  rompante na cultura brasileira, cujos primeiros elementos e formas apareceram justamente pela linguagem típica da escrita barretiana. Não à toa  despertou interesse e respeito por parte de Mario de Andrade, do alto de sua ‘autoridade’ de contista e teórico da construção ficcional, e  levou p. ex. Sergio Milliet a escrever  “(...) Lembro-me da grande admiração que tinha por Lima Barreto o grupo paulista de 22. Alguns entre nós, como Alcântara Machado, andavam obcecados .O que mais nos espantava então era o estilo direto, a precisão descritiva da frase, a atitude antiliterária, a limpeza de sua prosa, objetivos que os modernistas também visavam. Mas admirávamos por outro lado sua irreverência fria, a quase crueldade científica com que analisava uma personagem, a ironia mordaz, a agudeza que revelava na marcação dos caracteres” (artigo “Noticiário’, in O Estado de S. Paulo, São Paulo,  11.11.1948); concomitantemente, nas páginas da então incipiente revista Klaxon (1921), os modernistas paulistas se propunham também a “descoelhonetizar”(ref. a Coelho Neto) a literatura brasileira, rompendo com os cânones acadêmicos., objetivos bastante semelhantes da  revista Floreal, que Lima criara em 1907 e só durou quatro números
Importante lembrar que a época era dominada por duas vogas literárias, de um lado o parnasianismo, inócuo, oco e ressonante, de outro, a linguagem empolada, o ‘clássico’ calcado em expressões cediças e de figuras de efeito, cheia de arabescos estilísticos — ambas, uma literatura  impregnada de vocábulos garimpados, do virtuosismo lingüístico e verborrágico,expressão da frivolidade dominante.No Rio de Janeiro, os intelectuais e literatos,de certa forma alheios às contradições, logo se integraram ao processo de construção e aceitação dos novos ideais republicanos — no que, delinearam o movimento literário da chamada Belle Èpoque carioca,  definida por “uma produção narcisista, descompromissada, escapista, aristocraticamente (pseudo-)refinada, de temática elitista,de muito epigonismo, exercícios academicistas, vocabulário rebuscado e sintaxe preciosa, ornamentações lingüísticas , a estética do brilho\luxo na atitude de épater le bourgeois”, tendo como escritores típicos, entre outros, Olavo Bilac, Coelho Neto, João do Rio, Afrânio Peixoto, Elisio de Carvalho,Figueiredo Pimentel (é dele a conhecida frase “o Rio de Janeiro civiliza-se!”), Medeiros e Albuquerque. Praticava-se um estilo mundano, meio jornalístico, pretensamente sofisticado,como apregoado  por   Afrânio Peixoto e sua ‘yese’ de a literatura como “sorriso da sociedade”.
No pólo oposto ao aristocratismo da escrita de então e aos nefelibatas da linguagem,  tinha-se em Lima Barreto um registro da língua ‘brasileira’ do início do século XX e um ritmo genuinamente nacional que prenunciava a linguagem modernista”. Como realça Nicolau Sevcenko, “chama muito à atenção quando se lê a obra do Lima Barreto, a atualidade dessa obra não só em termos de linguagem — uma linguagem bastante acessível, bastante próxima até da oralidade — pela qual foi muito criticado pelos seus pares e intelectuais da época. Mas não só por essa linguagem mas também pelos temas de que ele trata e pelo modo como os trata . Pode-se  ir além porque muitos problemas de Brasil que ele pensa naquela época, que ele critica, e que ele, enfim, desenvolve como reflexão, permanecem absolutamente atuais.
Convictamente decidido a romper com o figurino estilístico e literário vigente, sua escrita simples, direta e objetiva nada tinha a ver com a pompa, o floreio da retórica de então, Lima Barreto  era o anti-acadêmico por excelência. Contrariamente à maioria de seus contemporâneos, praticantes dessa escrita floreada e vazia, aristocrática e fútil, conferia à sua obra ficcional o sentido militante de uma “missão social, de contribuir para a felicidade de um povo,de uma nação, da humanidade” Em sua concepção, a literatura tinha de ser “militante”, com objetivo concreto e definido : as idéias contidas no artigo “Amplius!”( publicado originalmente no primeiro número da Floreal , em 25.10.1907 , depois em A Época, em 18.02.1916, e  incorporado como abertura da coletânea de contos Histórias e sonhos ), expressam suas concepções sobre  a arte literária.
E a propósito do Prémodrnismo : Lima, como sua figura literária maior e seu epígono,só confirma a condição,taxativa, de ser este um ciclo efetivo da historiografia literária brasileira,com características e elementos peculiares próprios, ao contrário do que sustentam alguns estudiosos,que o dizem ‘apenas uma extensão[sic] do Realismo”; e contraria a interpretação de Sergio Micceli, que diz ter sido a denominação “inventada” pelos modernistas,com um sentido de ‘diminuir’ e para,isto sim,valorizar e enfatizar o Modernismo,classificando o que o antecedeu de ‘preliminar’. Mas,em outro viés, Lima Barreto, prenunciador,anunciador e antecipador do Modernismo, por via dos elementos precursores aqui apontados, corrobora justamente o quanto o Prémodernismo,,com suas manifestações específicas e marcantes, foi um verdadeiro ciclo e,mais : verdadeiramente ‘preparador do Modernismo – este, iniciando-se portanto nele,bem antes de 22.[e vale lembrar : 2012, 90 anos do Modernismo; 90   anos da morte de Lima –01.11.1922]

Antes, um ‘visualizador’ no século XIX...

Mas para concluir estas anotações antecipatórias do Modernismo, vou mais longe, mais atrás no tempo: vou a ...Machado de Assis – que, ainda no século XIX, refletia e punha em discussão a relação do país com a tradição nacional e as influências estrangeiras, de resto, idéia-baluarte da concepção de “cultura brasileira” sustentada, preconizada e postulada pelos modernistas – não somente na prática da absorção de influências, obras e autores estrangeiros, nas traduções que realizou e  em centenas de citações,referências,recorrências e intertextualidades em toda sua obra,ficcional e nãoficcional (tema que pauta e compõe meu estudo “Machado de Assis e Literatura Comparada : os franceses,os ingleses,os portugueses,os alemães,os gregos, os espanhóis,italianos e latinos” – a ser publicado), como em especial em seus célebres ensaios “O passado, o presente e o futuro da literatura brasileira”( A Marmota, 1858), “Notícias sobre a atual literatura brasileira : Instinto de nacionalidade”(New World, 1873) e “A nova geração” (Revista Brazileira,1879), ), nos quais concreta e explicitamente propõe a mediação no antagonismo entre passadismo e modernidade,que os modernistas somente postulariam na 2ª. fase do movimento,ao contrário da postura aguerrida e intransigente quanto a isso na 1ª. fase.
Mas sobretudo em Machado de Assis pode-se perfeitamente denotar, qual notáveis antecipação,o ‘espírito’ – e a prática – da antropofagia cultural que viria a ser entronizada pelo modernistas, Oswald de Andrade à frente, anos depois.Pois Machado, se incorporou intensa e essencialmente influências e elementos literários estrangeiros em toda sua obra –ao mesmo tempo em que (faz parte,sabemos, da deliberada ambigüidade machadiana) nos primeiros anos de sua carreira criticava severamente a “invasão das artes estrangeiras”,inclusive propondo como solução a nacionalização da produção artística e o aperfeiçoamento do gosto do público,a serem executadas pelos escritores -- soube ‘mastigá-los e deglutí- los’, incorporando-os adequadamente a um ‘modelo’ de brasilidade (ainda que eivado de universalidade no trato de elementos e questões inerentes à própria espécie humana) e à sedimentação de uma linguagem literária brasileira (de resto, preconizada e constituída em seu primórdio por José de Alencar).



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