sábado, 10 de março de 2012

Machado, Freud, as mulheres

em pleno mês da Mulher [mas faço minha a sentença de Affonso Romano de Sant'Anna : "não se contentem em reinar apenas um dia por ano..."], o segundo texto de meu triptico  'estudos (literários) da mulher'


  Desde o início de sua gestação ficcional em prosa, Machado de Assis traçou caminhos próprios e peculiares para tratar das relações entre os homens e as mulheres;  sua temática essencial consistiu em expressar as sutilezas do mecanismo psicológico no deflagrar de ações, emoções, expressões e reações no comportamento humano, muito além da visão ingênua dos românticos, do discurso dos realistas e naturalistas, injetando em sua obra muitas sementes da modernidade :  criou um estilo de literatura não apenas de observação das  pessoas mas sobretudo de  interpretação, expondo das  pequenas coisas, das passagens a princípio inocentes,  um outro lado , que  muitas vezes  aludia à presença, sempre insidiosa, do inconsciente.
  A partir do final da década de 1870, mormente depois do denominado romance de transição Iaiá Garcia, a obra machadiana, seguindo a linha da litera­tura psicológica, apresenta heróis e heroínas com seus eternos conflitos, complexos, dúvidas e hesitações. E traz, para o centro das discussões, a questão da afetividade  feminina,  fazendo surgir  uma mulher que aspira  poder escolher a forma de sentir e amar, apesar de, quase sempre , não poder dizer de seu desejo.
        Machado sempre foi um autor interessado em prospectar as  paixões humanas, em dissecar-lhes as intimidades, em levantar ques­tões e em tomá-las públicas pela voz de seus personagens.  Sobretudo percebia, com clareza, o lado trágico das relações  humanas. Este lado trági­co --- já presente em Shakespeare, p. ex.,  a principal leitura e maior influência em  Machado (a dúvida ‘hamletiana’ percorre e permeia, qual exercício posto em desafio ao leitor, toda a ficção machadiana : inclusive é o príncipe da Dinamarca a referência\recorrência primordial em Dom Casmurro, e não Otelo,ao contrário do vaticinado por Helen Caldwell [O Otelo brasileiro de Machado de Assis:. São Paulo : Ateliê Editorial, 2002 ] (e,parece,inteiramente assimilado por muitos estudiosos...)  –-  passa  pelo permanente mal-entendido dos encontros humanos, de um ser humano permanentemente acossado pelo outro, num processo originado,determinado e dinamizado pelo  ciúme e pela desconfiança implícita, pela traição e pela infidelidade..
    Muito da temática e da tramática machadianas gira em torno do ciúme e do perdão – vale dizer, do binômio freudiano de ‘culpa e perdão’: Foi ele o autor brasileiro que introduziu a perspectiva  crítica, fazendo da dúvida, do questionamento e da argumentação, ‘a la Freud’, uma constante em sua obra. .De Freud, Machado consubstanciou, sem o conhecer, os elementos e conceitos do inconsciente, do psiquismo humano, da sexualidade feminina, estabelecendo como nenhum outro escritor brasileiro de seu tempo vetores e  pontos de interseção entre a literatura e a psicanálise,  desde as primeiras obras  e atingindo seu clímax na ficção produzida a partir da década de 1880 . Como sentencia Roberto Schwarz [“Mesa redonda”, in Bosi, Alfredo et alli, Machado de Assis. São Paulo :Ática, 1982]  , “Machado é um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25 anos depois. Em Esaú e Jacó, por exemplo, antecipou-se a Freud no ‘complexo de Édipo’”.
          O amor é o grande tema, central e capital, na obra ficcional  de Machado. O  amor visto, tido e exposto como a única comunicação possível entre pessoas,quaisquer que sejam suas natureza, caracteres, etnia,classe social, e o casamento – não havia como escapar,nos tempos do Império, da ‘ideologia’ moral-social que fazia o amor prisioneiro do casamento,o qual possibilitava a constituição da família : amar era casar , para o homem,era adquirir ‘título de propriedade’ ; a mulher, prisioneira e submissa, via no amor  um meio de libertar-se, para isso,no caso da mulher machadiana, utilizando sua característica primordial: a dissimulação --  e seu derivativo mordaz, o ciúme.
        Amor ciúme – de resto, um ‘clássico’ binômio freudiano -- são os leitmotives  basilares de Machado, presentes sem exceção em todos os  contos, vez por outra inserindo assuntos difíceis de serem tratados à época ,mas sempre em defesa da base moral do amor -- como relações afetivas e conjugais entre pessoas de classes sociais diferentes, incompatibilidades e embustes sentimentais,dissimulações e disfarces , etc...Os  amores e frustrações femininos eram temas constantes, inclusive o adultério e a pros­tituição -- anteriormente decididamente não-aceitáveis na literatura (mas convém observar que José de Alencar já preconizara uma ‘subversão’ na peça “Asas de um anjo”, 1860 -censurada à época e retirada de cena - cujo tema iria inspirar e originar o romance  Lucíola,1862) .
    Em sua ficção, Machado  traz, juntamente com Freud,  para o centro das discussões, a questão da sexualidade feminina. A princípio, de forma velada, fiel à ‘ideologia’ das décadas de 1850-60, nos primeiros romances e contos -- a maioria das mulheres da época, vivia reclusa, tinha pouco estudo, e sua principal meta era um casamento com o que se chamava ‘um bom partido’; se houvesse amor, melhor, mas não era o principal, pois a questão do amor era secundária, era um luxo que muitas mulheres não tinham, prioritários eram as conveniências pecuniárias, o interesse econômico, a ascensão social -- mas nas obra depois de 1880 redime o amor, e numa “recomposição com a vida”  surge  uma mulher que quer poder escolher a forma de sentir e amar, apesar de algu­mas vezes não poder dizer de seu desejo, a fazer convergir para o corpo o protesto da sua sexualidade insatisfeita -- e sabemos o quanto  Freud já preconizava a infidelidade como uma saída “não neurótica” para  a infelicidade matrimonial vigente na sociedade burguesa mundial no século XIX.
   Um verdadeiro antecipador modernista, Machado não acreditava na honra baseada na castidade, tendo nas linhas e entrelinhas de seus contos e  romances chamado atenção para  as necessidades e os direitos da vida afetivo-sexual da mulher , que devia receber instrução e não ficar com­pletamente confinada à vida doméstica, tendo direito ao amor e à li­berdade.
  Machado sempre escreveu sobre mulheres e para as mulheres e não era segredo – pelo menos até 1881,quando consolidou a longa e profícua atuação nas páginas da Gazeta de Notícias -- preferir colaborar  em publicações cujo público predominante era feminino, primeiro no Jornal das Famílias,de 1864 a 1876, e a partir de 1879 em A Estação. Sua obra, de modo geral, encena vários tipos femininos, com histórias povoadas de muitas personagens e situações que mostram as alternativas com que as mulheres se defrontam na vida: assim é com  Lívia de Ressurreição,  Guiomar de A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia, Virgília e Marcela de Brás Cubas, Sofia de Quincas Borba, Capitolina de Dom Casmurro, Flora de Esaú e Jacó, Fidelia e Carmo de Memorial de Aires, além da profusão das protagonistas de inúmeros contos, que encenam vários tipos femininos e situações com as quais as mulheres se defrontam na vida comum  – como, p. ex., “Missa do galo”, “Capítulo dos chapéus”, “Singular ocorrência” , “Uma senhora”, “Trina e una”, “Primas de Sapucaia!”, “Noite de almirante”, “A senhora do Galvão”, “Uns braços”, “D. Paula”, e muitos outros  -- a maioria podendo se catalogada como   ‘estudos sobre a mulher”, ao revelar  de forma soberba a mais aguda sensibilidade  de Machado no trato de questões que envolvem moral, ética, preconceito social, autoritarismo, amor e ciúme.:
   Suas mulheres ficcionais -- orgulhosas ou tímidas, calculistas ou levianas, singelas ou complexas -- “com seus contornos roliços, seus olhos onde a gente se perde como na escuridão da noite, são criaturas feitas de capricho e de carne, sobretudo de carne, tudo instinto, sem nenhum raciocínio”.E nesse privilegiar a mulher como personagem primordial de sua ficção, desde os primeiros romances, Machado as desenha como personagens de grande densidade psicológica, alimentando de forma rica e sugestiva sua temática preferida: a traição. Traição era a uma preocupação permanente em Machado, desde Ressurreição, atingindo o clímax ‘explícito’ em Dom Casmurro – ciúmes e traição, ‘equação’ inerente a Freud.
     Importante notar, como que a reciclagem de um processo  desenvolvido por longos 36 anos (desde Ressurreição, em 1872), em sua obra conclusiva –  Memorial de Aires --  a par de continuar a privilegiá-las, valorizá-las e enaltecê-las, Machado como que ‘redime’ as mulheres : não mais a figura sensual que, impulsionada pelo desejo, pode chegar à traição – como Capitu[sic...], Virgilia, Sofia, Guiomar, Valéria, Marcela -- mas a mulher proba, que pode ser amada e admirada, distante e alheia à tentação, ‘salvas do pecado’,como Fidélia e Carmo -- nos romances pós-1880, Machado chega a reduzir o homem a um nada,ele  sem a mulher, nada vale.: em Memorial de Aires, d.. Carmo segue a linha da mulher totalmente dedicada à famí­lia, e que firmemente controla não só o espaço doméstico, como, e prin­cipalmente, o marido; daí a famosa frase: "Aguiar sem Carmo é nada".
Não mais as machadianas adúlteras, sedutoras, ambiciosas,impuras,dissimuladas,traidoras — antes de tudo, fúteis e fugazes, a ponto de preferirem os tolos ao invés dos homens de espírito...
          [ A  tríade tolo -- mulher --homem de espírito permeia a ficção machadiana, sob uma teia dramatúrgica presente ao longo do tempo e de sua  evolução literária,transportada a 'ideologia' do livro iniciante,Queda que as mulheres têm para os tolos, para muitas das obras posteriores : a  trindade  habita intensamente a maioria dos contos do ciclo 1860 -79 , está nos romances RessurreiçãoA mão e a luvaHelena , anuncia-se em certa  metamorfose na transição representada por Iaiá Garcia, transmuta-se inteiramente em Memórias póstumas de Brás Cubas e em Quincas Borba , reaparece sob enfática perspectiva em Dom Casmurro), por fim chega a seu ocaso nos derradeiros romances Esaú e Jacó e Memorial de Aires, neste a seara  da redenção total da mulher machadiana(protagonizada por Carmo), definitivamente apartada da preferência pelo tolo ao invés e em vez do homem de espírito.
          Os tolos – para quem as mulheres têm acentuada queda, no início-- são, via de regra, estroínas, praticam as fórmulas socialmente estabelecidas, sua linguagem assemelha-se à retórica romântica dos folhetins, ostentam autoconfiança, são determinados e objetivos nas ações afetivas, até mesmo fingindo sentimentos e aparentando paixões com o fito exclusivo de conquistar a mulher ; exatamente ao contrário dos homens de espírito, que  fracassam e são excluídos  por não se coadunarem com os padrões de postura, convenções  e relacionamento sociais e por acreditarem numa vida  além e acima do jogo estratégico de aparências falsas e artificiais – mas depois , numa espécie de aprendizado pelo fracasso, irão amadurecer,assumir  uma atitude de reflexão sobre a "realidade aética da vida" vis-a- vis à desilusão com as possibilidades da vida moral ,e  por fim vão eles transmutar-se no cético.
             A transformação do homem de espírito se dá no cenário das metamorfoses processadas na criação ficcional machadiana. Não obstante o ‘aviso’ dado em Queda... , alertando para o insucesso do romanticismo, praticado em diferentes níveis e objetivos, Machado indica, nas obras iniciais, o amor romântico como solução --embora o narrador insinue ser um meio ingênuo – para depois trilhar caminhos mais audaciosos, descrevendo-o como a mola propulsora da destruição, o problema deixando de ser visto dentro dos termos de relações de classes e passando a ser encarado sob a ótica mais ampla e universal  da própria condição humana .
             A partir do início  da década de 1870,o macro-universo do entorno se transforma, o micro-universo literário deve acompanhá-lo : Machado pressente os novos tempos,convence-se da necessidade crucial de mudança, já exercita os primeiros passos, altera seu enfoque, sua temática,sua linguagem,seu estilo, sua estética literária. Intensifica o  apontar para o superficialismo das relações humanas, as pessoas (homens e mulheres) tendo de viver sujeitos a valores sociais que lhes são impostos e dos quais somente poderão se libertar com mudanças radicais de consciência, de atitude e de atos, dando início a um processo de reflexão que será plenamente desenvolvido nas obras posteriores – processo que o autor\narrador protagoniza no homem de espírito-personagem, que passa do alheamento e  distanciamento,da desesperança e da  desilusão  às gradativas adaptação e interação com a realidade , daí assumindo postura reflexiva e consciente (até transformar-se no cético) .Porém,  se o homem de espírito muda, amadurece, estabelece nova relação com a mulher, o tolo  continua com sua frivolidade e estoicismo, servil das convenções sociais e atado ainda à retórica romântica – e  novos perfis são dados a dois dos vértices do triângulo: o homem de espírito caminha da contemplação para o ceticismo,a ‘nova’ mulher machadiana deplora a frivolidade do tolo e passa a se inclinar para o homem de espírito.             
          Machado, como supremo criador, atento e obediente aos ditames sociais-‘ideológicos’ dos novos tempos, interfere no processo: o que o homem de espírito não logrou – modificar a natureza das mulheres – o autor/narrador faz, porém  mantendo tanto a “vulgaridade dos tolos” quanto   a natureza “aética” da vida social. No entanto,    como sempre fez em toda sua obra ficcional , o autor\narrador  que modifica a mulher e o homem de espírito abre mão de suas ‘prerrogativas’ , camufla  as diferenças existentes  entre injunções ficcionais e reais, incentiva o leitor a acreditar no fictício,ou no embuste\artimanha, e o induz a ilusões interpretativas, simplesmente fomentando um narrador de pouca,ou nenhuma, confiabilidade, um  'narrador volúvel' (que habita e conduz particularmente  Dom Casmurro e muitos dos contos): em suma, convoca o leitor à acurada reflexão sobre a preferência da mulher – quer a antiga quer a atual – e deixa-lhe a  responsabilidade do julgamento conclusivo.].
   Especulam  muitos dos estudiosos que  Machado era mesmo ‘feminista’  -- e a cada leitura de sua obra  nos damos conta da sutileza e da abrangência desse feminismo.Sem dúvida alguma  em Machado o feminino confirma-se como uma categoria literária. Obsessivamente observador, a aguda e profunda visão machadiana das “cousas deste mundo” o fez constatar o quanto a mulher na sociedade oitocentista  brasileira -- reclusa e dominada, doméstica e servil -- era ‘anulada’ por sua própria condição feminina: se o mundo da mulher era limitado pelas paredes do sobrado, tratou de retirar do ócio social da mulher de sua época a essência da matéria ontológica de suas personagens.

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